1. Considerações iniciais
Tem-se por certo que a heteronomia da vontade foi introduzida à filosofia por Kant, quando quis referenciar que a vontade não está determinada pela razão do sujeito, mas, sim, por algo alheio a ela. Dessa forma, o presente artigo tem por escopo fazer uma reflexão sobre a heteronomia da vontade na sociedade moderna, de cunho liberal, e sua co-relação com os demais ramos do direito, analisando de forma critica a transformação da heteronomia da vontade em princípio.
2. Da liberdade contratual
O princípio da liberdade contratual ainda é o preceito basilar da teoria dos contratos, com fundamento na autonomia da vontade. As partes são livres ao contratar na medida em que podem seguir os ditames de sua razão, sem estar aprisionadas pelas normas legais.
Alguns autores modernos não apenas são contrários a esse “dogma da vontade” (Willensdogma) como contestam que a simples vontade humana seja capaz de justificar a existência dos negócios jurídicos contratuais, ou mesmo negam o livre arbítrio, a que se prende a questão da liberdade do querer humano. Observa-se, no direito moderno, que o homem consente e contrata de acordo com a declaração de vontade contida na lei (art. 112 do novo Código Civil brasileiro). Aí está o âmbito de todo o seu querer.
Efetivado o negócio jurídico, esse passa a ser ato jurídico perfeito, desde que não contenha vício de vontade dos contratantes (art.104 do novo Código Civil).
Os motivos que levam alguém a realizar um negócio constituem a justificação jurídica da vontade contraente, em tudo o que diz respeito ao sentido da determinação psíquica de dispor da coisa ou do direito, e também em conseqüência da função social que a troca de bens e de direitos pode realizar economicamente entre os indivíduos.
Por certo, a obrigação do negócio jurídico deriva do preceito da boa-fé, e assim entendem muitos juristas modernos. Aqui cabe lembrarmos-nos de Kant, que em sua visão filosófica, diz que a força obrigatória dos pactos é um postulado da razão pura e não pode ser demonstrado (dogma). O certo é que há uma determinação psíquica, gerando um ato de vontade que não é possível negar, embora a força interna que o gerou seja, em última análise, resultado ou vitória do motivo predominante.
Pode-se dizer que é do ato que se promete um serviço pessoal, ou uma prestação patrimonial, formando uma unidade de consentimento oriunda do querer de duas ou mais pessoas, o que os juristas denominam consenso (princípio do consensualismo). Essa palavra não deve ser entendida necessariamente como expressão do livre arbítrio, ou como formal e absoluta liberdade individual (autonomia da vontade em sentido amplo), mas precisamente como um ato não violentado, nem sob o império das forças externas nem como expressão de forças internas anormais.
José Lourenço (2003) preceitua que a autonomia da vontade resume-se na seguinte proposição essencial:
toda obrigação, para ser sancionada pelo direito, deve ser livremente consentida, isenta de vícios de consentimento e sociais, ter por objeto lícito e possível e forma prescrita e não defesa em lei. Portanto, para a autonomia da vontade, temos: a) os indivíduos são livres de estabelecer, ou não, negócios jurídicos; b) o conteúdo do negócio jurídico pertence livremente a determinação das partes pactuantes; c) nulo será o ato negocial se não houver um consentimento livre; d) no caso do conflito interespacial de leis, os pactuantes são livres de eleger a lei aplicável às suas relações negociais; e) concluído o negócio jurídico, ele é inatingível, a menos que as próprias partes pactuantes o rescindam voluntariamente, caso a lei o permita; f) o negócio concluído livremente incorpora-se ao ordenamento jurídico, tendo os agentes o direito de pedir a intervenção estatal para a execução da obrigação não cumprida (proteção jurídica); g) o juiz, ao aplicar o negócio jurídico, é obrigado a se ater à intenção comum das partes pactuantes.
Notadamente, os limites à autonomia da vontade são necessários. Pode-se afirmar que não foi muito longa a preponderância absoluta da idéia da autonomia da vontade irrestrita, nos termos de Serpa Lopes (1996). Os juristas logo perceberam que a liberdade no exercício das vontades individuais, longe de ser, como disse Cambacerés (1994), “la faculte de choisir les moyens de son bonheur”, se convertera, muitas vezes, na desgraça de um dos contratantes, em face de sua posição de desigualdade ante a outra parte. É inexato pretender, como acentuava Marcel Dijol, repetindo Fovillé, que nas obrigações particulares “la liberté demeure seule en face de la liberté” porque de nenhum modo é possível considerar livremente celebrado um negócio jurídico se concluído entre contraentes num desnível de posições.
Nessa perspectiva, observam-se, no liberalismo, três reflexos cristalinos: a) a descentralização da produção jurídica, pela liberdade de se estabelecer negócio jurídico, entregou aos fortes o poder de dominar os fracos economicamente e circunstancialmente (Max Weber 1994); b) a massificação das relações negociais eliminou a possibilidade de sua constituição pela teoria clássica do contrato, tornando-a impotente “para fazer face às exigências de uma sociedade que não se esteia mais no indivíduo isolado” (Meucci 1994); e c) a organização da economia em grandes empresas e concentrações econômicas assegura-lhes um poder tão forte que “o ato do seu exercício se realiza pelas formas de coerção e autoridade próprias das atividades públicas em serviços monopolizados” (Lissere 1994).
Com efeito, o resultado negativo do exercício da liberdade negocial foi condensado magnificamente numa frase de Lacordaire (1999) que se tornou famosa: “entre o forte e o fraco, é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”. A experiência demonstrou, muitas vezes, o acerto desse pensamento.
Com o agravamento das desigualdades econômicas, a concepção de um indivíduo senhor de seus próprios interesses nos negócios jurídicos, em que aparentava convencionar livremente, mostrou-se falsa, em face das seguintes razões: a) o indivíduo age por vezes irracionalmente; b) é impossível prever o futuro, cada vez mais aleatório; c) o negocio jurídico estabelece-se, freqüentemente, sob o império da necessidade, entre pactuantes de forças econômicas incomensuráveis.
Em vista de tal situação fática, houve a necessidade de mudanças da norma jurídica e do valor social da liberdade negocial. Os juristas passaram a cogitar desse problema, que denominaram “degradação da teoria contratual do Código de Napoleão”. De forma cientifica, o direito retomou uma idéia medieval dos canonistas, que, combatendo a injustiça usuária, condenavam a exploração de outrem sob o véu do negócio jurídico contratual, proibindo o empréstimo a juros, defendendo o justo preço e firmando a teoria do justo salário. Criou - se, na prática, a revisão dos contratos com base nas teorias da lesão e da imprevisão.
3. Da heternonomia da vontade como princípio
Como ensina Serpa Lopes (1996), hoje há o reinado do dirigismo contratual, Josserand apresenta – o sob dois aspectos: o dirigismo compressivo (ou restrito) e o dirigismo expansivo. Dá - se o dirigismo compressivo quando se proíbe a inserção de certa cláusula nos negócios jurídicos em geral; dirigismo expansivo quando se impõe aos pactuantes obrigações não criadas por eles, ou ainda a própria obrigação de pactuar. É o que observamos, por exemplo, em nosso ordenado, o direito do consumidor, no contrato de trabalho, na colocação de imóveis urbanos.
Dessa maneira, duas características da autonomia da vontade destacam-se ao longo desse estudo: a) é um princípio do contrato jurídico em geral; e b) inexiste em sua forma mais pura, ou seja, a liberdade de atuação em qualquer negócio jurídico nunca foi irrestrita, mas sempre se rendeu a outros valores, gerando a chamada “crise do dogma da autonomia da vontade”, numa visão dialética e valorativa.
Essa segunda característica nos faz relembrar que os doutrinadores são unânimes em afirmar que o principio da autonomia da vontade nunca existiu no estado puro; a par da liberdade irrestrita, sempre houve uma área, perfeitamente delineada, na qual a liberdade individual inexiste. Essa área chama - se “heteronomia da vontade”. Os juristas sempre tiveram pleno conhecimento de sua existência, porém a caracterizavam apenas como um aspecto negativo da autonomia irrestrita, originado do princípio jurídico segundo o qual “tudo o que não é proibido por lei (heteronomia) é permitido (autonomia)”.
Mas, na verdade, não é a heteronomia o aspecto negativo, pois não se pode chamar assim aquilo que é produto do direito positivo. O fato é que o dado negativo do ordenamento jurídico é a autonomia. Logo, para conhecer os limites da liberdade – os limites negativos da autonomia da vontade -, é preciso definir, de forma positiva, a heteronomia.
O termo “heteronomia” refere-se ao que se deixa sujeitar, à condição de pessoa ou de grupo que recebe de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho – a razão e a lei. Mais especificamente, a heteronomia jurídica, para Maria Helena Diniz (2003); é “a sujeição do destinatário da norma ao seu comando, independente de sua vontade”. Ou, como prefere Lalande (1998), “a condição de uma pessoa ou de uma coletividade receber do exterior a lei à qual submete”. A heteronomia da vontade é a área dos atos jurídicos cuja norma reguladora é externa aos seus elementos. A vontade dos agentes não é considerada. A norma, conjuntiva ou alternativamente, impõe regras para o estabelecimento ou não do negócio jurídico e determina quais serão os agentes ativos e passivos, bem como o seu conteúdo.
Portanto, a heteronomia da vontade pode ser anterior ao negócio jurídico, quando impõe a realização do negócio pelo agente – caso em que se tem, na lição de Josserand (1998), o dirigismo expansivo -, ou concomitante com o negócio jurídico, quando limita ou impõe conteúdo ao mesmo – configurando-se, então, o dirigismo compressivo ou restritivo.
4. Considerações finais
Além de não haver liberdade que não limite a si própria, não podem os contraentes, afim de que o contrato goze da tutela da lei, ignorar os valores fundamentais que estão na base do sistema legislativo, nem as limitações imediatamente destinadas a salvaguardar as justificadas expectativas da outra parte e os legítimos interesses de terceiros, assim como não pode o legislador descurar dos limites à liberdade individual necessários para corrigir as profundas e freqüentes desigualdades substanciais entre os contratantes.
Hoje, o contrato não é apenas a expressão da vontade área de interesse vital dominada pelo direito; é também instrumento de cooperação entre as pessoas, no plano de valores a que o direito deve servir. Por isso mesmo, o papel da lei, nesse caso, não tem um simples sinal negativo, como se poderia inferir dos termos do art. 405 do Código Civil português. A lei é continuamente chamada a colaborar com vontade das partes na disciplina da relação contratual, mesmo porque os interessados não conseguem, na maior parte das vezes, evitar lacunas na convenção. Vontade dos contraentes e lei integram assim, quase sempre, em estreita união o todo incindível que disciplina o contrato.
Por esses prismas aqui delineados, a sociedade em si mesma e o estado soberano que a representa diante do indivíduo dão confiança a este, para que se possa exercer sua vontade jurídica, de forma limitada, pelo bem comum, abrindo espaço para aquilo que chamamos heteronomia da vontade.
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Advogada. Pós- Graduada em Direito Civil e Processo Civil. Membro associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Lívia de Souza Just Vieira. A heteronomia da vontade como princípio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2010, 08:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22308/a-heteronomia-da-vontade-como-principio. Acesso em: 22 nov 2024.
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