RESUMO: Este trabalho problematiza a atual situação do embrião em face da doutrina, dos tratados internacionais de direitos humanos – Pacto de San José da Costa Rica –, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do princípio da dignidade da pessoa humana. São analisados alguns votos proferidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3.510, concernente à utilização de células-tronco embrionárias nos moldes do art. 5º da lei 11.105, de 24 de março de 2005 – Lei de Biossegurança.
Palavras chave: Ação Direta de Inconstitucionalidade, Lei de Biosegurança, células-tronco embrionárias, coisificação do embrião, dignidade da pessoa humana.
INTRODUÇÃO
Devemos ter o cuidado de não fazer do intelecto o nosso deus, ele sem dúvida, tem músculos fortes, mas nenhuma personalidade. Não é capaz de conduzir. Pode apenas servir. O intelecto tem um olho aguçado para os métodos e ferramentas, mas é cego quanto aos fins e valores. (Albert Einstein)
A comunidade jurídica tem grande dificuldade em definir o direito do embrião à vida e à dignidade. A julgar pelo hodierno ordenamento jurídico, podemos concluir que, muito embora haja uma posição jurisprudencial que autoriza sua manipulação em pesquisas com células-tronco, não podemos nos distanciar de um fato que ainda incomoda grande parte dos operadores do direito: a coisificação do embrião. Podemos verificar, então, que o embate realizado perante a mais alta Corte de Justiça do país obteve um resultado que, por sua vez, não enfrentou a questão do direito fundamental à vida e à dignidade do embrião no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, que ganhou o número 3.510 e que reconheceu a constitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 11.105 de 24 de março de 2005, Lei de Biossegurança.
É de se questionar: em nosso ordenamento jurídico, em que pesem todas as audiências públicas realizadas por várias pessoas físicas e jurídicas, na condição de “amigos da corte”, naquele julgamento, o tema já foi esgotado? Pode-se, a partir de uma única lei, por meio de um único artigo, disciplinar toda a matéria concernente ao status jurídico do embrião?
Dessa forma, este trabalho tem o objetivo de demonstrar que a questão do embrião ainda continua sendo um enorme desafio para a ciência jurídica pátria e alienígena.
Afinal, embrião é um amontoado de células, um ser em potencial, que vai galgando etapas até o nascimento (com vida), como concebe a teoria natalista, de que compartilha o direito romano, adotada pelo Código Civil Brasileiro, ou é considerado, desde a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, uma pessoa e, portanto, detentora de toda proteção jurídica, moral e ética corroborada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, no Estado Democrático de Direito, como defende a teoria concepcionista?
O presente trabalho aponta para um incontrolável antagonismo e mesmo uma mitigação entre a legislação ordinária de alguns países europeus e a legislação infraconstitucional, a doutrina e a jurisprudência de nosso ordenamento jurídico, bem como o tratamento constitucional conferido ao tema pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 3.510.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ( BREVE HISTÓRICO)
Hodiernamente, a dignidade da pessoa humana é axioma jusfilosófico que possui posição hierárquica, na medida em que não é positivado pelo Estado, mas reconhecido por ele, por se tratar de um direito natural e inato, edificado de forma progressiva ao longo da história da humanidade.
José Afonso da Silva refere-se à dignidade da pessoa humana como “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. (SILVA, 1993)
É princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal de 1988 e apresenta-se em dupla acepção: prevê um direito individual protetivo seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos, e estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes[1].
Na lição de Norberto Bobbio, a dignidade é característica inerente ao homem, que a norma não concede, mas apenas reconhece. Kant baseava-se na idéia clássica de que cada homem é um fim em si mesmo; o valor humanista era ou deveria ser fundamento compartilhado e indiscutível do Estado.[2]
De acordo com Fernando Ferreira dos Santos:
(...) a moderna teoria constitucional preleciona do princípio da dignidade humana como juízo concreto de dever ser (razão para decisões) e não apenas critério hermenêutico; historicamente a dignidade da pessoa humana foi entendida, basicamente, sob o enfoque de três concepções: a) individualismo (cada homem realiza, indiretamente, os interesses coletivos; característica do liberalismo burguês; os direitos fundamentais serão, antes de tudo, inatos e anteriores ao Estado; são direitos de autonomia e de defesa, nas palavras de Canotilho; b) transpersonalismo (a dignidade humana realiza-se no coletivo; linhagem marxista; o homem reconhecido dotado de uma essência social que deve prevalecer; interpretação do direito que limita a liberdade em favor da igualdade); c) personalísmo (distingue indivíduo de pessoa, que não é apenas parte do todo, dotado de uma natureza que jamais a unidade coletiva pode ter; a primazia pelo valor coletivo, ou o Estado não pode, nunca, sacrificar ou ferir o valor da pessoa); ‘os princípios são ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas, são como observa Canotilho e Vital Moreira, núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais’; a dignidade humana se encontra mencionada nas Constituições dos seguintes países: Alemanha, Portugal, Espanha, Irlanda, Bulgária, Grécia, Índia, China, Namíbia, Cabo Verde, Venezuela, Peru e Colômbia; esclarece que há preceito da Constituição de Portugal que estabelece que a interpretação constitucional daquele país deve coadunar com a Declaração Universal dos Direito do Homem; cita Paulo Bonavides sobre os direitos fundamentais de terceira geração, voltados para o gênero humano e não para grupos, indivíduos ou Estado; enfatiza: a dignidade da pessoa humana é princípio absoluto, possuindo uma dimensão negativa ( a pessoa não pode ser objeto de humilhações, ofensas, garantia à identidade e condições de existência mínima), assim como uma dimensão positiva ( garante o pleno desenvolvimento da pessoa), sob sua ótica, a eutanásia e o aborto ( mesmo decorrente de estupro, pela não recepção do art. 128 do Código Penal pela CF de 1988) violariam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.[3]
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SEGUNDO KANT, HEGEL, DWORKIN E HABERMAS.
Para Immanuel Kant, o fundamento da dignidade humana repousa na autonomia do ser humano, na condição de ser racional. Esta autonomia da vontade sob a ótica de Kant deve ser compreendida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. Referida capacidade é encontrada somente nos seres racionais.[4]
Sob este contexto é que observamos o modelo kantiano, senão vejamos: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[5], ou, em outras palavras, “Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”[6]
Para Kant, o homem e, de uma forma geral, todo ser racional “existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. O que nos leva a concluir que, com relação a nós e a terceiros, devemos sempre agir com a intenção simultânea de humanidade: “ Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.[7]
Tomemos agora a teoria de Hegel, que, por sua vez, sofreu forte influência da racionalidade de Kant. Não obstante, percebemos que Hegel, conforme aponta PETTERLE (op. Cit.), avançou na concepção de dignidade em relação a Kant, na medida em que este importante filósofo enxergava o processo histórico como sendo o processo de concretização ou realização de idéia de liberdade[8], verificou-se que o reconhecimento, via mediação de vontades livres, é a chave para a concretização da liberdade, e, indo além de Kant, concebeu a esfera da eticidade (moralidade objetiva) como o plano em que se dá a “mediação social da liberdade” [9]E como se dá esse procedimento de mediação de vontades livres? Hegel apontou um caminho:[10]:
Com efeito, a natureza da humanidade consiste em esforçar-se por alcançar um acordo com os outros , e sua existência reside somente na instituição da comunidade das consciências. O anti-humano, o animal, consiste em permanecer no sentido e em não poder comunicar-se senão por meio de sentimento.
Assim, em síntese bastante apertada, observamos que a complementaridade ao pensamento de Kant é a permanente atualidade da concepção hegeliana, no sentido de que o “reconhecimento recíproco é o fundamento da dignidade, ao mesmo tempo, a conseqüência da opção por um estado juridicamente ordenado”.[11]
Após as considerações sobre o tratamento dispensado à dignidade por Kant e Hegel, vamos agora examinar o pensamento deste grande filósofo da modernidade, que é Ronald Dworkin.
Segundo Dworkin[12] “las personas tienen derecho a no sufruir la indignidad, a no ser tratadas de manera que em sus culturas o comunidades se entiende como uma muestra de carencia de respeto”.
Para Dworkin, o ponto crucial do problema está em conhecer o porquê de a indignidade causar tanta preocupação ao homem. Desta maneira, apresenta um caminho de esclarecimento, colocando a questão como uma condição essencial nos termos a saber: “la dignidad tiene tanto uma voz activa como uma voz pasiva, y que las dos están conectadas”.[13]
A referência a uma “voz ativa” da dignidade é empregada por Dworkin, no sentido de que “las personas cuidan y deberían cuidar su própria dignidad”.[14] Abordando tal significado sob a forma negativa (a da indignidade), significa afirmar que, quando alguém compromete sua própria dignidade (um dano “auto-infligido”; uma “auto-traição”) está negando a importância intrínseca da vida humana, inclusive da sua. De outra banda, em estreita conexão a essa voz ativa da dignidade, encontra-se a “voz passiva” da dignidade, empregada no sentido de que a pessoa sofre um dano a sua indignidade, dano causado por outrem. Salvo melhor entendimento, a voz ativa e a voz passiva são duas faces de uma mesma moeda: uma concepção una de dignidade, para abarcar a exigência de respeito (inclusive auto-respeito) com relação à importância intrínseca de vida humana.
Para Dworkin,[15] a inviolabilidade da vida é um valor que nos unifica como seres humanos, em que pese a magnitude do dissenso em torno dos seus distintos significados no que diz com o início e fim da vida, especialmente as controvérsias relativas ao aborto e à eutanásia, bem como as questões relativas ao uso das novas tecnologias da engenharia genética no âmbito da biomedicina[16] .De qualquer forma, o núcleo de sua reflexão está focalizado em uma transição, qual seja, da vida enquanto valor universal à vida enquanto bem jurídico-constitucional. À guisa de uma síntese do posicionamento do autor, a dignidade da pessoa humana aponta na direção da “libertad individual y no de la coerción, em favor de um régimen jurídico y de uma actitud que nos aliente, a cada uno de nosotros, a adaptar decisiones sobre la muerte individualmente”.[17].
Por fim, apresentaremos, também em apertada síntese, o pensamento de Jurgen Habermas sobre a dignidade da pessoa humana, senão vejamos:
O ponto central do pensamento habermasiano concerne a um procedimento individual no contexto social, ou seja, a personalidade consiste na interação de relacionamentos que as pessoas realizam entre si. Diante desta concepção, Habermas critica o pensamento Kantiano [18]:
En su version destranscendentralizada, la “vontad libre” de Kant ya no es uma propiedad de seres inteligibles caída del cielo. La autonomia es más bien uma conquista precária de las existências finitas, existenciais que solo teniendo presente su fragilidad física y su dependencia social pueden obtener algo asi como “fuerzas”.
De acordo com este entendimento, para Habermas, o embrião será considerado pessoa a partir do nascimento em que ele considera como “o ato de acolhimento social” na medida em que “en el contexto público de interacción de un mundo de la vida compartindo intersubjetivamente”[19], o que nos leva à natureza racional-social da pessoa humana.
Sendo asssim, para Habermas, o embrião, enquanto estiver no útero da mulher, (no “claustro materno”) não é ainda considerado uma pessoa. Se-lo-á apenas após o nascimento, quando puder interagir com outras pessoas por meio da comunicação no seio de um processo paulatino em que aprenderá a se identificar como tal e na condição de integrante de uma comunidade moral. Por conseguinte,[20] sob a pespectiva habermasiana, o ser natural converte-se em indivíduo e pessoa (dotada de razão) apenas no contexto público de uma sociedade de falantes.
Porém, relacionar estes fatos como condição primeira para que a dignidade da pessoa humana seja reconhecida não condiz com o pensamento habermasiano, senão vejamos: Se, por um lado, Habermas rechaça a antecipação do processo de socialização (ainda admitindo que os pais possam falar sobre e, de certa maneira, com o feto em gestação), por outro, afirma que a vida humana pré-natal goza de proteção porque temos deveres (morais e legais) com relação à vida.[21]
Diante do que foi exposto, verificamos que não se evidencia uma relação de exclusão entre as teorias apresentadas, mas uma complementaridade [22]. A dimensão comunicativa e intersubjetiva, liga a uma simetria de relações entre seres morais que atuam comunicativamente como membros de uma comunidade, complementa a dimensão de dignidade de Hegel, enquanto reconhecimento nas instituições sociais da família, da sociedade civil e do Estado. Da mesma forma, a contemporânea concepção de Dworkin, atrelada à importância intrínseca da vida humana, está afinada com a dimensão ontológica de Kant, de dignidade como qualidade inerente à pessoa humana e cujo fundamento repousa na autonomia do ser humano, na condição de ser racional.
A DOUTRINA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO EMBRIÃO
A questão das pesquisas que envolvem a utilização de embriões excedentes e crioconservados em laboratório nos faz pensar que entramos definitivamente no ritmo alucinado da pós-modernidade, quando tudo é permitido fazer, pelo menos é o que estamos assistindo no que tange à metodologia aplicada e à simplicidade com que é tratada a dignidade desses embriões, que são considerados, apenas, como um “amontoado de células” sem funcionalidade (coisificação) e abandonados à própria sorte pelo mundo das ciências jurídicas, como veremos, a seguir, nessa quadra do século XXI. Diante desse cenário, verificamos que a única utilidade acrítica reconhecida é que os mesmos não devem ir diretamente para a lata do lixo.
De acordo com a Dra. Márcia Mattos Gonçalves Pimentel, PhD em Genética Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro:
(...) Embora , ao final do séc. XX, muitos processos biológicos ainda se apresentam como um enigma para os cientistas, a Biologia como Ciência possui leis e princípios que não podem ser modificados. No que diz respeito ao momento em que tem início a vida humana, alguns fatos biológicos são incontestáveis. São eles: Primeiro: O indivíduo humano começa a existir biologicamente a partir do momento em que ele tem um corpo, e a formação do corpo, de qualquer pessoa inicia-se no momento da fecundação. Ou seja, o primeiro passo para a formação de um novo indivíduo é a fusão de duas células altamente especializadas, denominadas gametas. Desta forma, todo ser vivo começa sua existência a partir de uma única célula quando, então, tem início um processo contínuo de multiplicação e diferenciação celular, até que, ao tornar-se adulto, o indivíduo terá cerca de 100 milhões de células. Segundo: Uma conseqüência da fusão do óvulo com o espermatozóide é que estas duas células perdem a capacidade de operar independentemente uma da outra, passando a trabalhar como uma unidade chamada zigoto ou embrião unicelular. (...) Terceiro: Os genes começam a expressar suas informações, sintetizando RNA mensageiro a partir do DNA, logo após a fertilização. A ativação dos genes no embrião ocorre antes da primeira divisão celular, que se dá de 15 a 20 horas após a fertilização. O zigoto, portanto, começa a existir e a operar como unidade desde o momento da fecundação (...). Quarto: O zigoto possui um genoma (conjunto gênico) absolutamente único, que lhe confere uma identidade biológica. Cada embrião é uma combinação gênica singular. Nunca ocorreu nem ocorrerá outro genoma igual.[23]
Neste mesmo contexto, ensina Antônio Chaves:
“É a fecundação que marca o início da vida. Quando os 23 cromossomos masculinos de espermatozóide se encontram com os 23 do óvulo da mulher, definem todos os dados genéticos do ser humano, qualquer método artificial para destruí-los põe fim à vida.”[24]
E ainda de acordo com o Conselho da Europa em sua Recomendação n. 1.110/89 entende que desde o momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo, aquela diminuta célula já é uma pessoa e, portanto, intocável.[25]
Também neste sentido o geneticista francês Jérome Léjeune afirma que :
“Aceitar o fato de que, após a fecundação, um novo indivíduo começou a existir já não é questão de gosto ou de opinião. A natureza do ser humano, desde a concepção até a velhice, não é uma hipótese metafísica, mas, sim, uma evidência experimental.”[26]
Cientificamente a fecundação do óvulo pelo espermatozóide é o estágio em que começa uma nova vida humana, dando início a um ciclo que só termina com a morte. A fusão dos gametas determina de maneira absoluta as características do novo ser que, apesar das profundas mudanças que sofre durante o processo de desenvolvimento e permanência intra-uterina, não perde as características que marcam a sua individualidade, já é o ser gerado que há de nascer e ser homem. É um ser irrepetível.[27]
Como visto, com a fertilização, inicia-se a aventura da vida humana, com uma nova vida que é diferente da vida do pai e da mãe. Por isso, qualquer ofensa à vida do embrião, que lhe acarrete danos irreparáveis ou lhe coloque fim à vida, deve ser objeto de responsabilização civil e, eventualmente, penal. ´
É preciso ponderar que os óvulos fecundados in vitro ou congelados devem ser equiparados ao óvulo fecundado no ventre materno ou fecundados in vitro e introduzidos no ventre materno. Estes também possuem carga genética própria, e o fato de não terem sido introduzidos no ventre materno não lhes retira a característica de ser humano irrepetível, de modo a não autorizar o seu descarte ou o seu armazenamento por tempo ilimitado, nem que sejam utilizados para experiências que desrespeitem a sua dignidade, a ponto de serem coisificados e transformados em meio e não em fim em si mesmo. Portanto, os direitos da personalidade do embrião podem ser verificados e devem ser respeitados desde a concepção, pois o ser individualizado que está sendo gerado tem direito a nascer com vida e, para isso, deve ter acesso a uma gestação adequada, ao pré-natal adequado, e ao respeito à sua individualidade.[28].
A prática cotidiana da fecundação in vitro conduziu à superovulação (estimulação ovariana tendente ao crescimento de diversos folículos durante um ciclo), à coleta de 4 (quatro) óvulos, 2 em média, por mulher. (...) Pata evitar o risco de gravidezes múltiplas, as equipes médicas limitam o número de embriões transferidos a 3 ou 4, de forma que sempre restam embriões excedentários.”
Sendo assim, o número excedente de embriões, que não é destinado a imprimir a gravidez à mulher, fica congelado, persistindo o problema na destinação que lhes é dada, com a utilização para fornecimento de células-tronco, o seu descarte, sua doação ou crioconservação.[29]
A nova Lei de Biossegurança, em seu art. 5º, e incisos I e II, autoriza a utilização de células-tronco dos embriões excedentários, para fins de pesquisa e terapia, verbis:
“Art. 5º : É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de célula-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizadas no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II- sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, congelados, na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data do congelamento”.
No entanto, referida norma legal não merece prosperar de acordo com a lição de Maria Helena Diniz:
“ Do ponto de vista da ética, o embrião é um ser humano potencial, desde o momento da fecundação. Tem dignidade e merece respeito. Portanto, sua destruição é indefensável e a manipulação a que pode ser submetido deve ser limitada, sendo aceitáveis somente procedimentos que sejam benéficos (terapêuticos), o que é difícil determinar neste momento. A doação deve ser considerada adoção pré-natal. O uso em pesquisa contraria as normas e diretrizes em seres humanos, desde o Código de Nuremberg, que propõe o impedimento de experimentos cujo desfecho possível seja a morte. O congelamento destes embriões, com a finalidade de transferência em outros ciclos e com isto aumentar a chance de gravidez, ou com a finalidade de obter uma segunda gestação, também é passível de objeções. Porém, torna-se eticamente aceitável quando passa a ser a maneira destes embriões chegarem à vida. Esses embriões sejam ou não pessoas humanas atuais ou potenciais, vivem somente graças à ciência e à técnica. E a intenção é que vivam, ainda se saiba que suas possibilidades certamente são limitadas”.[30]
Não obstante, apesar de boa parte da doutrina defender o direito à vida e à dignidade do embrião humano, a partir do fenômeno da fecundação extra-uterina, agregou-se, ainda, à problemática, a questão do status jurídico dos embriões in vitro, visto que, sob o enfoque civilista clássico, não é possível encontrar um enquadramento legal aos mesmos. Nesse sentido, Meirelles [31]aponta que o embrião in vitro não é prole eventual (prole não concebida), não é nascituro (ser concebido no ventre materno) e não é pessoa natural, exatamente porque sua realidade é outra: já está concebido, tem vida, tem seus elementos genéticos próprios, e, se não for implantado no útero, restará a deriva, aguardando a decisão de um terceiro quanto a sua sorte.O novo fenômeno da concepção extra-uterina, portanto, está a merecer tratamento de legislação específica, bem como uma superação da crise de paradigma existente no contexto da jurisdição constitucional, sobretudo quanto aos instrumentos de efetivação das normas insculpidas na Carta Magna de 1988, efetivação esta que merece ser urgentemente adotada em respeito ao Estado Democrático de Direito.
OS TRATADOS E AS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS
Houve um determinado momento histórico em que a humanidade se sentiu premida a buscar garantias legais de proteção individual contra a figura opressora do Estado. [32]Foi na época da Segunda Guerra Mundial, quando se tornou notório ao mundo que países como a Alemanha e o Japão utilizavam vidas humanas em massa (prisioneiros de seus campos de concentração) como cobaias em experimentos científicos de toda ordem. A permissividade das atrocidades cometidas nos laboratórios de pesquisa mantidos pelo governo e perpetradas pelas equipes de cientistas médicos escoimava-se numa situação caótica de quase “inexistência do Direito” resultante do estado de guerra.
Então os países vencedores da Segunda Guerra instauraram um Tribunal Internacional – de Nuremberg (1945) - responsável pelo julgamento das denúncias dos “crimes de guerra”[33]e acabaram instituindo, ao seu final, o Código de Nuremberg (1947), documento internacional com previsão de princípios para a realização de experiências científicas em seres humanos. Tratou-se, pela primeira vez, da necessidade do consentimento individual informado das pessoas submetidas às pesquisas científicas, que, por sua vez, não podiam afastar-se de três premissas fundamentais: da utilidade, da inocuidade e da autodecisão do participante.
Proibindo enfaticamente a sujeição humana a propósitos políticos, eugenésicos ou bélicos, bem como a qualquer espécie de crueldade ou tortura, tinham como prevalecentes os interesses da pessoa em detrimento dos interesses da ciência e da sociedade.[34]
A alusão feita ao Tribunal Internacional de Nuremberg (1945), bem como à posterior edição do Código de Nuremberg (1947), mostrou-se oportuna na medida em que comprova, em face da antecipação representada pelas suas decisões (anteriores à Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH), que efetivamente existem direitos que ao Estado cabe apenas reconhecer e não criar, “não se justificando qualquer ação contra a dignidade humana sob a alegação de estarem as autoridades a aplicar e cumprir as leis de seu país, apesar de reconhecidas como injustas, tirânicas e atentatórias aos direitos e garantias universais plasmados no direito natural.[35]
Só mais tarde, mais precisamente em 10 de dezembro de 1948, foi promulgada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos do Homem, instrumento de caráter internacional que teve por objetivo o reconhecimento dos direitos essenciais dos seres humanos, elencando, seu corpo de trinta artigos, princípios específicos para sua proteção. Importa salientar que tal documento simplesmente proclama a existência (e não cria) de direitos humanos essenciais e com caráter de universalidade, fazendo-o, pois, sob a designação de “declaração”.[36]
Referida Declaração trouxe, já em seu primeiro artigo, a maxima de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.[37]
O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Também conhecido por “Convenção Americana de Direitos Humanos”, foi aprovado na Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos, ocorrida na Costa Rica, em 1969, tendo o Brasil como um de seus subscritores. No entanto, sua efetiva entrada em vigor ocorreu em 1978, em virtude de o número mínimo de onze ratificações exigido ter sido atingido.
Preenchendo requisito interno de validade, a referida convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, em 26 de maio de 1992 (por meio do decreto legislativo nº 27), sendo ordenada sua integral observância em 25/9/1992 (por meio do decreto executivo de nº 678, de 6/11/1992), de forma que se incorporou definitivamente ao ordenamento jurídico-legal.[38]
O pacto, já no § 2ª do seu art. 1º, é taxativo ao determinar que, para efeitos da convenção, “pessoa é todo ser humano”. Como se pode ver, não há qualquer menção no texto da norma sobre a distinção entre vida intra-uterina e extra-uterina.
Já no art. 3º, há a determinação de que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
No art. 4º da convenção, ao tratar do direito à vida, prevê em seu § 1º que toda pessoa tem direito ao respeito pela sua vida, a qual deverá ser protegida, em geral, desde a concepção, ressalvando, ademais, o § 5º a proibição da aplicação da pena de morte (para os Estados que ainda não a aboliram) à mulher em estado de gravidez.[39]
Segundo Fabio Konder Comparato, a extensão do art. 4º, tal como redigido, proíbe as práticas de produção de embriões humanos para fins industriais (utilização de seus tecidos na fabricação de cosméticos, por exemplo) bem como da clonagem humana para finalidades não reprodutivas e, portanto, com destruição do embrião.[40]
Para finalizar, a expressão em geral, que parece representar a abertura de uma brecha para os países que tentam descriminalizar o aborto, Hélio BICUDO é contundente: “É evidente que não. A Convenção de 1969 quis afirmar, simplesmente, que o direito à vida deve ser protegido ordinariamente, comumente (em geral) a partir do momento da concepção.[41]
O JULGAMENTO DAS CÉLULAS TRONCO EMBRIONÁRIAS PELO STF NA AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 11.105 /2005 – LEI DE BIOSSEGURANÇA E OS VOTOS PROLATADOS
Resumo do Caso
O caso em discussão é uma ação direta de inconstitucionalidade e teve início por iniciativa do então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles, que questionou a constitucionalidade do artigo 5º da Lei Federal nº 11.105 ("Lei de Biossegurança"), de 24 de março de 2005.
Segundo a inicial, o permissivo do artigo 5º contraria dispositivos constitucionais, entre eles a inviolabilidade do direito à vida e a dignidade da pessoa humana, por considerar que o embrião é pessoa, porque a vida começa na concepção e é um continuo desenvolver-se. Nesse sentido, o embrião teria protegido a inviolabilidade de seus direitos desde a fecundação. No mesmo sentido, o Chefe do Ministério Público concluiu pela declaração de inconstitucionalidade, mediante aprovação de parecer também de autoria de Cláudio Lemos Fonteles.
Em contrapartida, a presidência da República defende a constitucionalidade do texto impugnado. Argumenta pela constitucionalidade com base no direito à saúde (direito de todos e responsabilidade do Estado) e na livre expressão da atividade científica. Nesse sentido, afirma que as pesquisas permitidas são amparadas pela Constituição, contando com o apoio do então Advogado Geral da União e do Congresso Nacional.
Participaram como amici curiae as seguintes associações:
a) CONECTAS DIREITOS HUMANOS;
b) CENTRO DE DIREITOS HUMANOS – CDH;
c) MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE;
d) INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO – ANIS,
e) CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB.
Além disso, o Ministro Relator Ayres Britto, motivado pela relevância social do tema, determinou a realização de audiência pública. Nessa audiência pública, puderam opinar 22 (vinte e duas) autoridades científicas sobre as diversas questões levantadas no desenvolvimento da ação.
Também entre os amici curiae, e entre os cientistas ouvidos na audiência pública, delinearam-se duas correntes bastante nítidas. Uma conservadora, pedindo pela declaração da inconstitucionalidade e consequente proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias, e uma liberal, que, sustentando a improcedência do pedido inicial, defendia a liberdade para a realização das referidas pesquisas.
OS VOTOS DOS MINISTROS
Voto do Relator. Min. Ayres Britto
O Ministro Ayres Britto inicia seu voto identificando, no dispositivo legal cuja constitucionalidade é questionada, quatro núcleos deônticos que configuram a norma com as seguintes características: I) A parte inicial do caput do artigo 5º, que autoriza a utilização das células-tronco embrionárias humanas para fins de pesquisa e terapia; II) a parte final do caput do mesmo artigo 5º, em conjunto com os incisos I e II e o § 1º , que dispõem as condições cumulativas para que o uso das células-tronco, autorizado pela parte inicial do artigo, seja possível; III) A obrigatoriedade do encaminhamento de todos os projetos do gênero para exame de mérito dos comitês de ética e pesquisa competentes, em atendimento ao § 2º; e IV) A proibição de qualquer espécie de comercialização do material coletado, equiparando tal ato ao crime de "Comprar ou vender órgãos ou partes do corpo humano", previsto pelo art. 15 da Lei Federal 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, em atendimento ao disposto no § 3º.
As condições cumulativas para a possibilidade do uso das células-tronco para fins de pesquisa e terapia são: a) o não aproveitamento para fins reprodutivos dos embriões humanos produzidos por fertilização in-vitro; b) A necessidade de que sejam os embriões inviáveis para reprodução; ou, c) que se sejam os embriões congelados há 3 (três) anos ou mais – marco em que se tem finda tanto a disposição do casal quanto a obrigação de armazenamento por parte das clínicas de fertilização artificial; e, d) O consentimento do casal-doador para que o material seja destinado para a investigação científica.
A partir dessa leitura do dispositivo legal, o Ministro conclui que o conjunto normativo por ele estabelecido tem como pressuposto a intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto, mesmo fora do corpo feminino.
Feitas essas considerações, o Ministro Ayres Britto delimita o conceito de "pessoa física, ou natural" àquelas que sobrevivem ao parto humano, como dispõe o código civil ao afirmar que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida. Entendendo que a personalidade tem uma dimensão biográfica, além de uma dimensão biológica.
Assim, ele conceitua essa dimensão biográfica como o indivíduo numérica ou empiricamente agregado à sociedade, como sujeito que não precisa mais do que a própria faticidade como razão para ser centro de imputação jurídica. Nesse sentido, vida humana revestida do atributo da personalidade se dá entre o nascimento com vida e a morte.
Segundo o ministro, essa atribuição da personalidade apenas aos indivíduos que nasceram vivos não se contrapõe à Constituição, já que a Constituição não define quando começa a vida humana.
Com isso, o ministro Ayres Britto se torna capaz de formular a questão que segundo seu entendimento, está presente na ADI 3510, qual seja:
A questão não reside em se determinar o início da vida, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo direito infraconstitucional e em que medida(§ 24 do Voto).
Começa então a análise dessa questão, admitindo como pressuposto para analisar a adequabilidade da Lei o respeito à dignidade da pessoa humana, que, aduz, "é princípio tão relevante para a nossa Constituição que admite transbordamento" (§ 26 do Voto), no sentido de que protege mesmo no plano infraconstitucional a tudo que se revele como início e continuidade de um processo que deságue no indivíduo pessoa e cita alguns exemplos como à proibição da doação de órgãos e tecidos do feto, por parte da gestante, a não ser quando essa doação não represente perigo à saúde do feto, e a criminalização do aborto.
No entanto, ressalta o ministro, não se pode deduzir da proibição do aborto o reconhecimento da existência de duas pessoas durante a gravidez humana. O que ocorre é que, embora nenhuma forma de vida pré-natal seja uma pessoa, essa forma de vida é portadora de uma dignidade [por transbordamento] que é importante reconhecer e proteger. Corroborando tal entendimento, refere-se à tentativa de inclusão na constituição a proteção da vida desde à sua concepção, feita pelo então parlamentar Carlos Virgílio, que, porém, não foi considerada convincente o bastante para ser incluída no texto final aprovado.
Entende o ministro, que ''feto'', ''embrião'' e ''pessoa'' são três realidades distintas que não se confundem. A pessoa humana é o produto final da metamorfose, dos outros dois organismos, mas que a eles não se antecipa:
Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana (§ 29 do Voto).
Com isso estabelecido, ele retoma a dissecação do texto legal, com o intuito de deixar explícito, que os embriões por ela referidos são aqueles que são derivados de uma fertilização sem o acasalamento humano e, portanto, do lado externo do corpo da mulher, em provetas ou tubos de ensaio. Situação em que não mais coincidem concepção e nascituro até à eventual introdução do ovócito no colo do útero de uma mulher. Permanecendo in-vitro, o embrião é insuscetível de progressão reprodutiva, não há continuo desenvolver, contrariamente à alegação feita na petição inicial.
Deixando claro que Lei de Biossegurança não autoriza a retirada de embriões do corpo feminino, mas um procedimento externo, que tem como finalidade o aproveitamento dos embriões para a pesquisa, ao invés do "descarte puro e simples como dejeto clínico ou hospitalar" (§ 37 do Voto), o ministro se pergunta se haveria uma base constitucional para que um casal possa recorrer a técnicas de reprodução assistidas que incluam a fertilização in-vitro.
Com base no art. 226, § 7º da Constituição da República, entende Ayres Britto que é um direito do casal o livre planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Com isso, resta claro que a decisão sobre o tamanho de sua família, bem como sobre a possibilidade de sustentá-la materialmente e amorosamente é uma decisão a ser tomada pelo casal. O mesmo dispositivo Constitucional dispõe ainda, que é "vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas", donde se conclui que o poder público é proibido de se contrapor à autonomia do casal.
Elabora, então o ministro, uma outra questão, que entende imprescindível para a solução jurídico-constitucional da ação analisada:
O recurso a processos de fertilização artificial implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher produtora dos óvulos afinal fecundados? Todos eles? Mesmo que sejam 5, 6, 10? (§ 42 do Voto)
Respondendo que não existe tal dever, tanto por inexistir tal imposição em nenhuma lei brasileira, bem como por ser tal exigência incompatível com o próprio instituto do planejamento familiar anteriormente mencionado. Tal imposição representaria uma obrigação à mulher de ter que gerar filhos para seus maridos.
E nesse sentido, é que o ministro Ayres Britto entende que mais do que a natureza da concepção ou início biológico do homem, mais do que a conceituação jurídica de pessoa humana, o que está em questão no presente caso é a natureza da maternidade. Com isso, considera a argumentação suficiente para entender que o planejamento familiar é uma decisão autônoma do casal, e que a utilização de um processo de fertilização in-vitro é seu direito e que não lhes é exigível a nidação compulsória.
Dessa forma, restariam três alternativas em relação à situação regulada pela Lei de Biossegurança, quais sejam: o armazenamento perpétuo dos embriões congelados, o descarte do material não utilizado, ou a solução apresentada pela Lei de Biossegurança em seu artigo 5º, qual seja a utilização para fins de pesquisa científica e terapia.
Retorna então o ministro para a associação da Lei de Biossegurança com a Lei Federal nº 9.434/97, por entender que ambos os dispositivos têm como fundamento a mesma fonte Constitucional, qual seja o § 4º do art. 199:
A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, vedado todo tipo de comercialização.
Assim, a regra Constitucional possibilita à legislação infraconstitucional sair em socorro da preservação da saúde. E a Lei, nesse sentido, atribuiu à morte encefálica a condição de marco da cessação da vida humana. O funcionamento do cérebro é, nesse sentido, entendido como o divisor de águas da condição de pessoa natural.
Tem-se, assim, um paralelo perfeito entre as duas legislações, já que ao embrião referido faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, que seriam o cérebro humano em gestação. Sendo assim, é “algo” que jamais será “alguém”.
Com isso, o ministro Ayres Britto já conclui que o artigo 5º da Lei de Biossegurança em questão não é inconstitucional (§ 61 do Voto). No entanto, ele não se dá por satisfeito e continua sua argumentação para demonstrar que o oposto, a proibição da utilização das células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, é que seria inconstitucional.
Tendo como base a inclusão do artigo 199 § 4º, fonte constitucional do art. 5º da Lei de Biossegurança, no capítulo da saúde, que, por disposição do art. 6º, é direito fundamental, que é direito de todos e dever do Estado, de acordo com o caput do art 196 da Constituição, em consonância com o artigo 5º, IX, que dispõe:
Art. 5º.
[…]
IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
De tal maneira que o termo "ciência", enquanto atividade individual, em qualquer de suas modalidades, faz parte do catálogo de direitos fundamentais da pessoa humana.
Considerando também que o art. 218 da Constituição afirma que "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica", e que "A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências".
E por fim, considerando o preceito desenvolvido por sua argumentação elaborada até aqui, que a utilização dos embriões inviáveis para a pesquisa científica e terapia não é desrespeito aos embriões [desrespeito seria descartá-los como lixo hospitalar, ou armazená-los congelados perpetuamente], mas, sim, reverência aos que deles precisam para se curar.
Não resta outra conclusão senão a da inconstitucionalidade da proibição da utilização dos embriões inviáveis para a pesquisa científica e terapia, que representaria, nos dizeres do Ministro, uma verdadeira "desumana omissão de socorro" (§ 69 do Voto).
Por essas razões cumuladas, o Ministro Ayres Britto julga totalmente improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Voto do Min. Eros Grau
O Ministro Eros Grau inicia seu voto com um esclarecimento. Segundo seu entendimento, a polêmica em torno do disposto pela Lei n. 11.105 não trata de uma oposição entre ciência e religião, mas de uma oposição entre religião e religião, por considerar que a postura de alguns que dizem falar em nome da Ciência são portadores de mais certezas do que os líderes religiosos. Nesse sentido, ele se coloca a questão sobre quais interesses se manifestam nessa situação e responde:
Não nos iludamos: levantado o véu, o que há por sob ele – não obstante, é verdade, as melhores intenções de grande número dos que acompanham este julgamento – é o mercado. (§ 6º do Voto)
No entanto, afirma o Ministro, à Corte cabe apenas controlar a constitucionalidade do artigo 5º e §§ da Lei de Biossegurança. Não obstante a decisão ser conformada pelas pré-compreensões de cada um de seus membros, a decisão será fundamentada de forma estritamente jurídica.
Contrariando o entendimento do relator, com base em algumas possibilidades legais: "o nascituro pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e até mesmo ser adotado", o Ministro Eros Grau afirma-se certo de que o nascituro é pessoa. Citando Teixeira de Freitas, afirma ainda que: "todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos são pessoas" (§ 14 do Voto). Nesse sentido, é a capacidade do exercício de direitos que está sujeita à condição suspensiva do nascimento.
Considera ainda o Ministro que o embrião, fazendo parte do gênero humano, já é uma parcela da humanidade e tem sua proteção garantida pela Constituição, que lhe assegura o direito à vida. Segundo o Ministro, no aborto, há destruição da vida.
Assim, com base nas razões que até aqui apresentou, ao Ministro não restam dúvidas:
A utilização das células-tronco obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in-vitro e não utilizados no respectivo procedimento afronta o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.(§ 16 do Voto)
No entanto, o próprio Ministro afirma que essas razões não conduzem à declaração de inconstitucionalidade do dispositivo ora questionado.
Isso porque embrião, nesse contexto, conota um ser em processo de desenvolvimento vital. Mas o embrião é ser humano durante as primeiras semanas de desenvolvimento intra-uterino. E, no contexto da Lei n. 11.105/05, o embrião é o óvulo fecundado fora de útero. No contexto da Lei de Biossegurança, embrião não corresponde a um ser em processo de desenvolvimento vital. É, na verdade, um ser paralisado à margem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo.
Ou seja, uma vez que não há vida humana no óvulo fecundado fora de um útero que o artigo 5º da Lei chama de embrião, não há que cogitar vida humana a ser protegida ou dignidade atribuível a alguma pessoa humana.
Dessa forma, conclui o Ministro, sua linha de raciocínio conduz à conclusão pela constitucionalidade do dispositivo questionado (§ 25 do Voto). Entretanto, afirma ainda o Ministro que devem ser feitas outras considerações. A pesquisa e terapia permitidas pelo artigo 5º não podem, em coerência com a Constituição, ser praticadas de modo irrestrito.
Isso porque, embora ao Supremo Tribunal Federal não caiba mais do que o controle da constitucionalidade, o caráter aberto da ADI os autorizaria a declarar inconstitucionalidade por agressão ao bloco de constitucionalidade. O temor da reificação da vida poderia conduzir à declaração dessa inconstitucionalidade.
No entanto, considera o Ministro, esse mal deve ser combatido pela prolação de decisão aditiva visando a superar a incompletude do dispositivo legal.
A decisão aditiva acrescenta novo sentido normativo à lei, a fim de que determinado preceito legal seja depurado, adequado aos padrões de constitucionalidade. (§ 31 do Voto), estabelecendo, em termos aditivos, requisitos a serem atendidos na aplicação dos preceitos.
Voto do Min. Gilmar Mendes
O Ministro Gilmar Mendes inicia seu voto argumentando pelo papel do Supremo Tribunal Federal em julgar questões polêmicas, como a que ora se analisa. Segundo ele, o Tribunal possui legitimidade democrática para exercer a função. E é, a exemplo do parlamento, a casa do povo.
A questão a ser analisada é a constitucionalidade da utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa científica. Entretanto, o Ministro alerta que questões sobre o que é a vida não possuem resposta racionalmente aceitável de forma universal, mas que independentemente do termo inicial da vida, sabe-se que há elemento vital digno de proteção jurídica, citando Habermas: "ainda que não receba status de sujeito de direito, pode ser considerado indisponível."
Nesse sentido, a questão que se coloca não é decidir quando ou de que forma a vida humana teria início ou fim, mas decidir qual o papel do Estado na proteção desse organismo pré-natal, em relação às tecnologias cujos resultados são imprevisíveis para o próprio homem.
Segundo o Ministro, com base no pensamento de Hans Jonas e na distinção entre Homo Faber e Homo Sapiens, o Estado deve reger sua atuação com base no princípio da responsabilidade. Esse princípio significa um conselho de que se deve conservar para o homem que nenhuma das circunstâncias poderá suprimir seu mundo e sua essência contra os abusos de seu poder.
Não se trata, nesse sentido, de criar obstáculos, mas da exigência de responsabilidade. Pergunta-se, então, se a Lei de Biossegurança regulamenta as pesquisas com a prudência exigida por um tema tão complexo.
Considera o Ministro que a lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização. Nesse sentido, a lei foi cuidadosa, mas o Ministro se diz perplexo diante da existência de apenas um artigo a regular um tema tão importante. Segundo ele, ao deixar a regulamentação à competência do poder Executivo, a lei é deficiente e, por isso, poderia violar o princípio da proporcionalidade.
O Estado, entende o Ministro, tem o dever não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção dos direitos, mas também é seu dever proteger tais direitos contra agressão por atos de terceiros. Não observar o dever de proteção a esses direitos corresponde à lesão do direito ensejado por atos de terceiros.
Para efeito de comparação, o Ministro Gilmar Mendes elenca diversas normas no Direito estrangeiro, que, ao tratar do mesmo tema, segundo sua observação, são significativamente mais cuidadosas. Cita, entre outras, a legislação alemã, a legislação australiana, a legislação francesa e a mexicana, que adotam, segundo ele, restrições imprescindíveis, como a Cláusula de subsidiaridade, que determina que as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas só podem ser realizadas após terem sido esgotadas todas as experimentações com células de animais, quando as células-tronco embrionárias humanas seriam a única opção.
Além disso, essas legislações, extremamente restritivas, segundo o entendimento do Ministro, estabelecem a criação de um Comitê de Ética Central para as pesquisas com células-tronco embrionárias e que, com essas medidas, impede a possibilidade de abusos e transgressões.
No entanto, a legislação brasileira deixa de abordar aspectos considerados essenciais, de tal maneira que é impossível negar a deficiência da lei brasileira. Insiste o Ministro na crítica à exiguidade de artigos regulamentando a matéria na lei brasileira – apenas um – entendendo que a lei é lacunosa por não instituir um comitê central de ética devidamente regulamentado e por não conter cláusula de subsidiaridade.
No entanto, entende o Ministro que a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal questionado geraria um vácuo normativo ainda mais danoso e propõe, como alternativa viável, a interpretação do dispositivo conforme a constituição.
Assim, finaliza o Ministro, declarando a constitucionalidade do art. 5º da Lei Federal nº 11.105/2005 e seus incisos e parágrafos, mas condicionado à interpretação segundo a qual a permissibilidade das pesquisas deve ser condicionada à prévia autorização e aprovação por Órgão Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde. Atendendo assim ao princípio da proporcionalidade.
Voto do Ministro Joaquim Barbosa
O Ministro Joaquim Barbosa inicia seu voto assentando que a discussão no presente caso é sobre a constitucionalidade da permissão do uso de células-tronco embrionárias para a pesquisa científica. De tal maneira, entende o Ministro que não se trata de uma eventual decisão sobre o momento do início da vida. Questão que nem a ciência está apta a determinar.
Nesse sentido, entende que o cerne da questão é verificar se a exceção à tutela conferida ao direito à vida é legítima, frente à Constituição da República. Explica o Ministro, que, como já havia afirmado em outro julgamento, a tutela da vida humana apresenta graus diferenciados em relação às diversas fases do ciclo vital. É por essa razão que a lei distinge, por exemplo, os crimes de aborto, de infanticídio e de homicídio, imputando inclusive penas diferentes para essas condutas. Cumpre verificar, nesse sentido, não quando tem início a vida, mas se a exceção proposta pelo art. 5º da Lei de Biossegurança atende aos princípios estabelecidos na Constituição.
Então afirma o Ministro que, em sua opinião, a resposta sobre se há compatibilidade é positiva. A finalidade da lei foi regulamentar e permitir o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Dessa forma, trata-se de uma decisão legislativa entre dois valores:
Temos, de um lado, a tutela dos direitos do embrião, fruto de técnicas de fertilização in-vitro, inviáveis ou congelados por desinteresse dos genitores em implantá-los no útero, e, de outro, o direito à vida de milhares de crianças, adultos e idosos portadores das mais variadas doenças ainda sem tratamento e sem cura. Nessa ponderação de valores referentes ao mesmo princípio – inviolabilidade da vida. (§10º do Voto)
Ressalta o Ministro a importância das limitações e requisitos impostos pela lei, que outorga a faculdade da utilização das células-tronco embrionárias condicionada a três fatores: a inviabilidade do embrião; a permissão expressa dos genitores e a vedação da comercialização dos embriões.
Entende assim o Ministro que estão respeitados três primados fundamentais da República, quais sejam, a laicidade do Estado e a liberdade de crença e religião; o respeito à liberdade privada; e o respeito à liberdade de expressão da atividade intelectual e científica.
Entende que a questão sobre a destinação dos embriões excedentes é uma responsabilidade dos pais, de tal maneira que:
Ninguém poderá obrigá-los a agir de forma contrária aos seus interesses, aos seus sentimentos, às suas idéias, aos seus valores, à sua religião, e à sua própria convicção acerca do momento em que a vida começa. Preservam-se, portanto, a esfera íntima reservada à crença das pessoas e o seu sagrado direito à liberdade. (§ 18 do Voto)
Elabora ainda o Ministro um estudo sobre o Direito comparado, sintetizando que as legislações estrangeiras que tratam sobre o tema têm ao menos três pontos em comum, e que tais pontos são também respeitados pela legislação brasileira. Conclui então que a legislação brasileira é adequada e razoável em relação à legislação estrangeira.
Por fim, ressalta o Ministro, o desafio histórico que se coloca à humanidade frente ao desenvolvimento tecnológico, que faz com que a ética antiga já não seja mais adequada, sendo necessário e positivo que discussões nesse sentido ocorram. Por isso mesmo, o melhor caminho para a proteção à vida é a existência de uma legislação consciente e de órgãos com competência técnica para implementá-la.
E conclui que a permissão para a pesquisa científica como disposta pela lei em questão não padece de inconstitucionalidade, julgando dessa maneira totalmente improcedente o pedido, acompanhando o voto do Ministro Relator.
Voto do Ministro Cezar Peluso
O Ministro Cezar Peluso inicia seu voto ressaltando a gravidade do tema, tanto em relação à questão jurídico-constitucional quanto à polêmica gerada pelo tema e pelos temores sobre as possibilidades do desenvolvimento tecnológico, como os rumos a que levaram os estudos sobre a fissão nuclear.
A seguir, se dedica a refutar argumentos apresentados, mas que seriam irrelevantes para o caso. Afirma o Ministro que a analogia entre a morte encefálica e o início da vida não é aplicável, já que a morte encefálica é ficção jurídica; que a potencialidade das pesquisas com as células-tronco adultas não interfere em nada no caso; que as normas infraconstitucionais não apresentam um parâmetro adequado para analisar o grau de importância do embrião; que a equiparação ao aborto é improcedente, já que o aborto pressupõe a existência de vida intra-uterina; o argumento ad terrorem sobre a possível comercialização dos embriões representa verdadeiro contrassenso, já que a Lei de Biossegurança veda expressamente essa prática e que as referências à paternidade responsável servem unicamente para justificar os procedimentos de fertilização in-vitro.
Isso posto, o Ministro coloca a questão central a ser respondida pelo Supremo Tribunal Federal que é se a tutela constitucional da vida se aplica à classe dos embriões e, mais especificamente, à dos embriões inviáveis e congelados.
Nesse sentido, entende que, para receber a total proteção outorgada pela Constituição, é necessário que exista vida de pessoa humana e que a falta dessa condição invalida o fundamento da inicial. Porém, o atributo de humanidade já está presente tanto no embrião quanto nas demais fases do desenvolvimento, de tal maneira que lhe é garantido um tratamento digno.
Não parece, também, aos olhos do Ministro, relevante a discussão sobre o início da vida, uma vez que, muito embora revestidas de aparente autoridade científica, qualquer posição nesse sentido é necessariamente arbitrária. No entanto, considerar que a vida e sua proteção são desde a fecundação, ainda que fora do útero, levaria à inconstitucionalidade da produção de múltiplos embriões para a fertilização in-vitro, o que praticamente não é contestado por ninguém.
Assim, avaliando se a Lei de Biossegurança oferece tratamento digno ao embrião, só se pode concluir que mantê-lo congelado ou descartá-lo é claramente menos digno do que a destinação para as pesquisas científicas.
Não se pode entender o embrião como agente do seu próprio desenvolvimento, já que essa postura desconsideraria a função biológica e o papel jurídico-normativo correspondente do útero, que seria, nesse caso, reduzido a mero meio adequado. Entende o Ministro que a mulher não é apenas o local da procriação, a introdução do embrião no útero é condição necessária para o desenvolvimento do embrião. Como os embriões excedentes do processo de fertilização in-vitro não são sujeitos de direito à vida, não resta nenhum óbice legal para que os pais possam destiná-los à pesquisa ao invés do congelamento perpétuo ou do descarte sem proveitos.
Ressalta o Ministro, ainda, que não se admite nenhum tipo de experiência eugênica pelo permissivo legal analisado. O entendimento dos opositores das pesquisas, por uma questão de coerência, deveriam ser também contrários ao procedimento de fertilização in-vitro, já que o desenvolvimento do embrião é interrompido ou suspenso pelo congelamento de modo tão artificial quanto o modo como começou.
Assim é que os embriões devem ser tratados com certa dignidade e são a eles garantida certa proteção, embora não se possa atribuir-lhes a condição de pessoa.
Por esses fundamentos, julga improcedente a ADI, ressaltando que dá interpretação conforme à Constituição aos artigos relativos aos embriões
Voto da Ministra Carmen Lúcia
A Ministra Carmen Lúcia inicia seu voto respondendo a um questionamento sobre a legitimidade do poder judiciário para julgar a causa, já que a lei era desejada pelo povo, apoiada pela comunidade científica e votada pelo legislativo. Explica Carmen Lúcia que o juiz é escravo da Constituição, e que, por esse motivo, tem não só legitimidade, mas o dever de julgar inconstitucionais todas as normas que a contrariarem.
O autor da ação afirma que, como a vida se inicia na fecundação, o art. 5º da Lei de Biossegurança afrontaria o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. No entanto, a Ministra entende que o Supremo Tribunal Federal não precisa dizer quando começa a vida para julgar a ação.
Para isso, a Ministra passa a analisar o conteúdo do artigo, cujo caput permite a utilização dos embriões para pesquisa e terapia. Entende ela pela impossibilidade de utilização de espécie humana para fins comerciais, eugênicos ou experimentais, pois isso ofenderia a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, ela ressalta a preocupação do legislador em atender à liberdade de pesquisa estabelecendo limites que a compatibilizam com os princípios constitucionais.
A Ministra realiza ainda uma distinção entre terapia e tratamento para dizer que existem terapias experimentais e que essas, com o uso do ser humano seriam inconstitucionais, mas não pelos embriões, e, sim, pelas pessoas que seriam cobaias. Nesse sentido, explica ela que as terapias com células-tronco embrionárias seriam ainda apenas experimentais e que, por isso, a permissão para o uso terapêutico das células-tronco seria permitido apenas após o desenvolvimento de terapias não experimentais.
Ressalta a Ministra a potencialidade das células-tronco embrionárias em face das células-tronco adultas, por serem as células-tronco embrionárias capazes de produzir qualquer tecido adulto, enquanto as outras não se diferenciariam em neurônios, por exemplo. Ademais, a lei não exclui a pesquisa com células-tronco adultas.
Explica também que violar implica em infringir com violência e que o direito à vida não pode ser entendido a partir da ideia de um direito absoluto. Ou seja, como as células não se dão a viver, porque não implantadas no útero, ou porque são inviáveis, não há que se falar em vida nem em direito violado.
Segundo a Ministra, a norma questionada não só é compatível com a Constituição, como ainda tem o propósito de cuidar de um fator humano que não poderia mais ser utilizado para os fins a que inicialmente se destinou. Pelo princípio da solidariedade, é importante ressaltar que as pesquisas devem-se pautar pelos parâmetros da necessidade, só se podendo utilizar material genético humano quando necessário para o conhecimento, a saúde e a qualidade de vida humanas.
De acordo com a inicial, a dignidade da pessoa humana teria sido ofendida porque o uso das células-tronco embrionárias violaria o direito à vida que nelas já se continha, mas o que a lei faz é, na verdade, promover uma forma de dignificação da vida, ao possibilitar, para além do exercício do direito de livre expressão científica, descobertas que podem trazer inúmeros benefícios aos homens. Isso tudo em detrimento da alternativa, que seria o lixo.
É importante, por fim, ressaltar que, como se trata de material humano, já portador de alguma dignidade, as células-tronco não podem ser objeto de comercialização, como determina o art. 5º da Lei de Biossegurança, que visa ainda a assegurar o controle e a fiscalização, respeitando ao princípio da responsabilidade. A lei questionada não só atende à Constituição, como também às normas internacionais muitas vezes mais rigorosas.
Não se pode também impedir o andar das pesquisas por causa da incerteza de resultados. Cada passo dado é um passo em direção à melhoria e à dignificação da pessoa humana. A decisão, no entender da Ministra, é sobre a liberdade com responsabilidade ética da pesquisa científica e é importante, porque, sem ela, o ser humano poderia ter seu desenvolvimento impedido.
Nesses termos, a Ministra Carmen Lúcia julga improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade por considerar válidos os dispositivos questionados.
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski
O Ministro Lewandowski inicia seu voto tecendo explicações técnicas sobre o tema em debate na ADI, quanto às especificidades das células-tronco embrionárias e sua pluripotência. Explica, ainda, que as pesquisas com esse tipo de células têm gerado polêmica por envolver a destruição de um organismo humano vivo. Tais possibilidades ensejam questões sobre a natureza, o início e o fim da vida humana, além dos limites da manipulação do patrimônio genético.
Entende o Ministro que o início da vida pode variar em função da perspectiva gnoseológica; levando a conclusões distintas, dependendo da ótica adotada, e que, no plano jurídico-positivo, há razões para adotar-se a tese de que a vida tem início à concepção. Afirma ele que a vida é protegida desde a concepção e que a negação do estado de pessoa ao embrião não significa que não exista a obrigação de respeito e tutela.
Assim, defende que o debate deve centrar-se no direito à vida como um bem coletivo e que compreende o direito à saúde. Devemos ser precavidos ante as imprevisibilidades provocadas pelo desenvolvimento técnico-industrial. O direito à vida não pode ser encarado sob uma perspectiva meramente individual, mas como um direito comum a todos.
Além disso, o Ministro acredita que a Dignidade da pessoa humana também não pode entendida como um mero direito individual pessoal, mas que se trata verdadeiramente de uma metanorma a ser observada como parâmetro também em relação aos direitos sociais.
A partir disso, o Ministro ressalta que o art. 5º da lei de Biossegurança não veda a geração de embriões exclusivamente para a pesquisa nem impõe limite numérico à sua produção e faz um estudo de direito comparado sobre as precauções tomadas por outros sistemas jurídicos. Alerta ainda que o único texto normativo a regular a reprodução assistida no Brasil é a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, que veda a produção de embriões para qualquer finalidade diversa da reprodução humana.
Voto do Ministro Marco Aurélio
O Ministro Marco Aurélio inicia seu voto com uma crítica ao voto do Ministro Gilmar Mendes, por ter feito recomendações legislativas. Segundo ele, tal atitude extrapolaria as competências do Supremo Tribunal Federal, que estaria assumindo um papel de legislador positivo. Caberia ao Supremo Tribunal Federal, portanto, analisar apenas a constitucionalidade da lei em promulgada e não qual lei deveria ter sido promulgada.
A partir disso, ele levanta os requisitos legais para a permissão das pesquisas com células-tronco, dispostos pelo art. 5º da Lei de Biossegurança, e afirma que, para se julgar o caso, seria necessário apenas questionar onde reside a ofensa à Constituição que justifique a declaração de inconstitucionalidade do citado art 5º à CRFB.
No entanto, em respeito às opiniões contrárias, analisa a questão, afirmando que devem ser colocadas em segundo plano paixões de toda ordem e que o exame a ser feito deve ser estritamente técnico-jurídico. Afirma que, somente em casos extremos, o Tribunal deve realizar a interpretação, adentrando no subjetivismo. Porém, segundo o Ministro, a aprovação "acachapante da lei, que foi aprovada por 96% dos senadores e 85% dos Deputados, atestaria a razoabilidade da mesma".
Prossegue o Ministro, afirmando que, quanto à questão do início da vida, não exibe balizamento que não seja só opinativo, podendo-se adotar vários enfoques, enfoques inclusive que se sucederam ao longo da história como opiniões majoritárias. Cita Santo Agostinho, para dizer que o homem não tem a capacidade de determinar o ponto durante o desenvolvimento do feto em que ele adquire alma.
No caso presente, entretanto, não está envolvida a viabilidade, pois o art. 5º da Lei de Biossegurança fala apenas no aproveitamento de embriões gerados in-vitro e inviáveis ou congelados há 3 anos, entre diversas outras restrições.
Assim, como os embriões em questão jamais virão a se desenvolver, jamais serão fetos. E por isso, levando em consideração que a interpretação da Constituição como protegendo a vida de forma geral, inclusive a uterina em qualquer fase, já é controvertido, o que se dirá a respeito dos embriões gerados por fertilização in-vitro, já sabidamente inviáveis.
Nesse sentido, como não se pode obrigar a mulher a gerar todos os embriões fecundados in-vitro, pois tal obrigatoriedade contrariaria o direito ao livre planejamento familiar assegurado pela Constituição, as alternativas seriam a possibilidade de descarte dos embriões ou o seu possível aproveitamento em pesquisas científicas e uso terapêutico. Devendo prevalecer o entendimento pela possibilidade de aproveitamento com base no ideal de solidariedade.
Assim, entre obrigar ao descarte dos embriões ou permitir a pesquisa, a opção mais digna, posto que as células-tronco possuem características insubstituíveis, tem-se que a óptica dos contrários às pesquisas não merece prosperar.
O Ministro relata, por fim, uma pesquisa de opinião realizada sobre o tema no Brasil, em que 95% das pessoas que opinaram se mostraram favoráveis à liberação das pesquisas, entendendo que esse apoio da população à lei deve ser levado em consideração no caso.
Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio acompanha o voto do Ministro Relator Ayres Britto para julgar improcedente o pedido formulado na inicial, assentando a harmonia do artigo questionado com a Constituição.
BREVES COMENTÁRIOS SOBRE OS VOTOS
1). O Relator, ministro Ayres Britto, consignou em seu voto a “tentativa de inclusão na constituição da proteção da vida desde a sua concepção, feita pelo então parlamentar Carlos Virgílio, que, porém, não foi considerada convincente o bastante para ser incluída no texto final aprovado.”
Mas, no contraponto, reconhece o Relator que “Diante disso poderíamos afirmar que há na CF/88 base constitucional para que um casal possa recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização in vitro”.
2). No voto do ministro Eros Grau, considera ainda o Ministro que o embrião, fazendo parte do gênero humano, já é uma parcela da humanidade e tem sua proteção garantida pela Constituição, que lhe assegura o direito à vida. Segundo o Ministro, no aborto, há destruição da vida. Assim, com base nas razões que até aqui apresentou, ao Ministro não restam dúvidas: a utilização das células-tronco obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in-vitro e não utilizados no respectivo procedimento afronta o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. (§ 16 do Voto)
No entanto, deixa a critério da própria lei que está sendo atacada por vício de constitucionalidade a tarefa de definir a condição jurídica do embrião em detrimento da própria Constituição Federal, verbis:
“Isso porque embrião nesse contexto conota um ser em processo de desenvolvimento vital. Mas o embrião é ser humano durante as primeiras semanas de desenvolvimento intra-uterino. E no contexto da Lei n. 11.105/05, o embrião é o óvulo fecundado fora de útero. No contexto da Lei de Biossegurança, embrião não corresponde a um ser em processo de desenvolvimento vital. É na verdade um ser paralisado à margem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo.”
3). Já o ministro Marco Aurélio acredita que se deve “colocar em segundo plano paixões de toda ordem, de maneira a buscar a prevalência dos princípios constitucionais. Opiniões estranhas ao Direito por si só não podem prevalecer, pouco importando o apego a elas por aqueles que as veiculam. O contexto de exame há de ser técnico-jurídico” (MELLO, p.4). Mas o que se depreende em ulterior análise de seu voto é a impressão de que o ministro retirou o fator jurídico na apreciação do mérito da ação, quando cita o biólogo David Baltimore, verbis:
Não sei falar a respeito do aspecto jurídico do assunto, mas do ponto de vista científico é uma discussão sem sentido. Afinal, os embriões humanos foram descartados porque o casal já teve o número de filhos que queria ou por qualquer outra razão. O fato é que os embriões serão destruídos de qualquer modo. A questão é saber se serão destruídos fazendo o bem a outras pessoas ou não. A meu ver, a resposta é óbvia. (BALTIMORE apud MELLO, p. 8).
Assim, quando o ministro apresenta, na defesa de seu voto, um cientista que releva e diminui o aspecto jurídico é de se concluir que sua decisão foi dirigida a outros campos do conhecimento.
4). A ministra Ellen Gracie traz em seu voto que não há obrigatoriedade do STF em ditar correntes científicas e filosóficas vitoriosas. Entretanto não há como o resultado de uma votação desse feito não afirmar certa filosofia, levando-a ao engessamento da discussão, como se a corte a apontasse onde estaria a verdade. Mais clara é a idéia da ministra quando afirma:
ficou sobejamente demonstrada a existência, nas diferentes áreas do saber, de numerosos entendimentos, tão respeitáveis quanto antagônicos, no que se refere à especificação do momento exato do surgimento da pessoa humana. (GRACIE, p.2).
Após todas as manifestações dos diversos saberes, caberá à Corte Suprema decidir onde está a razão, onde está a verdade que os compõem. Reconhece que estes atos representam apenas uma opção legislativa, conquanto não fira a Constituição.
Não obstante, utiliza em seu voto estudos científicos para “remover o objeto da experimentação científica do escopo do discurso moral para inseri-lo num mundo técnico.” (GRACIE, p.6).
Denota-se assim a intenção excessiva de simplificar a matéria, ou seja: Como se elimina a moral do processo de verificação dos fenômenos de uma sociedade? A transformação social que se busca viria das leis artificiais ou do contato com aspectos morais da natureza humana? Seria a técnica a fornecedora da verdade, como apontou a ministra?
5). O ministro Ricardo Lewandoswski é extenso em seu voto e enumera todo o processo biológico pertinente na produção de embriões in vitro:
As células-tonco embrionárias de que trata esta ADI são aquelas obtidas a partir da fertilização in vitro, primacialmente um método de reprodução assistida, que objetiva superar a infertilidade de casais mediante uma fecundação extra-corpórea. A técnica consiste, grosso modo, na aspiração, mediante laparoscopia, de alguns oócitos da cavidade abdominal feminina, os quais são transferidos do corpo da mulher para o tubo de ensaio ou uma “placa de Petri”, que contém um meio de cultura, adicionando-se, a seguir, os espermatozóides [...] (LEWANDOWSKI. p. 3).
Além disso, o ministro destina reflexões epistemológicas acerca da ciência, no sentido de que “embora a ciência e a tecnologia tenham trazido avanços e bem-estar às pessoas, não constituem atividades neutras, nem inócuas quanto aos seus motivos e resultados. Elas tampouco detêm o monopólio da verdade, da razão ou da objetividade, valores, de resto, também cultivados por outras áreas do conhecimento humano” (LEWANDOWSKI, p. 6).
Citando Marx, aponta que “a ciência e a tecnologia estão historicamente situadas. A ciência não deixa de ser uma ideologia, que reflete a visão de quem a produz, não correspondendo com o mundo real, embora se tente fazer acreditar nisso (LEWANDOWSKI, p. 8-9).
Ainda nesta linha o ministro cita Gramsci:
“não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como uma noção objetiva; ela aparece sempre revestida por uma ideologia e, concretamente, a ciência é a união do fato objetivo com uma hipótese, ou um sistema de hipóteses, que supera o mero fato objetivo”. (GRAMSCI apud LEWANDOWSKI, p. 9).
Desta forma, acrescenta que a ciência a que se refere não se resume àquela praticada nos laboratórios ou eletrônicas, mas a todo tipo de ciência, inclusive à ciência jurídica, concluindo:
“É por isso que incumbe aos homens, enquanto seres racionais e morais, sobretudo nesse estágio de evolução da humanidade, em que a própria vida no planeta se encontra ameaçada, estabelecer os limites éticos e jurídicos à atuação da ciência e da tecnologia, explicitando e valorando os interesses que existem por detrás delas, para, assim, escapar à “coisificação” ou “reificação” de que falam Habermas e Lukács, na qual as pessoas, de sujeitos dessas atividades, passam a constituir meros objetos das mesmas.” (LEWANDOWSKI, p. 11).
Para justificar esta posição de que o homem não pode ser mero objeto da ciência jurídica o ministro entra no campo da Bioética e aponta a Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos, que trazem princípios relativos à dignidade, à identidade e à integridade humanas, além de reforçar os direitos garantidos pelas cartas internas de cada país. (LEWANDOWSKI, p. 15).
Apesar da generalização desses princípios, a verdade é que o ministro não soube explicar, por exemplo o que significa a dignidade da pessoa humana em uma pesquisa com embriões. Será possível avaliar os impactos dessa pesquisa, concluindo sobre a preservação ou não da dignidade humana?
Para finalizar, o ministro Lewandowski tenta apontar o iníco da vida:
Talvez não seja o Judiciário o foro adequado para debater esse tormentoso tema, visto não estar aparelhado – e nem vocacionado – para entreter discussões que, no fundo, têm um caráter eminentemente metafísico, com relação às quais as instituições acadêmicas e as escolas de teologia, com certeza, encontram-se melhor preparadas. (LEWANDOWSKI, p. 18).
Então é de se indagar: Qual a função do Supremo Tribunal Federal em face da Constituição Federal de 1988?
6). No voto da ministra Carmem Lúcia, revela a mesma que, “ embora houvesse uma tentativa de obter do tribunal uma resposta sobre o início da vida, as análises se baseavam apenas no ferir ou não de preceitos constitucionais.(ROCHA, p. 6).
Tal entendimento traz uma dúvida na medida em que, se há um princípio que protege a vida, como é possível afirmá-lo sem entender se há vida ou não?
Afirma ainda que “não há violação do direito à vida na garantia da pesquisa com células-tronco embrionárias, uma vez que as células permitidas para a utilização em pesquisa estão inviáveis para a geração de uma vida, já que não serão implantadas no útero materno. (ROCHA, p. 18).
É de se observar que, embora entenda que não cabe ao Superior Tribunal a função de determinar o início da vida, seu voto está recheado de definições sobre o tema, p. ex., quando expõe que, uma vez que serão descartadas as células e assim não poderão gerar uma vida, verifica-se que a célula em si não é vida.
É o que se depreende da página 19 de seu voto, verbis:
A célula-tronco embrionária, mencionada na Lei n. 11.105/2005, tem exatamente a natureza de substância humana. Logo, não apenas não haveria incompatibilidade entre a norma constitucional e a norma legal questionada, como ainda se poderia afirmar que a lei cuida de um fator humano que não mais pode ser utilizado para os fins a que inicialmente ele se destinou, pois os incisos I e II do art. 5º, daquele diploma legal, estabelecem que será permitido para pesquisa e terapia as células-tronco embrionárias inviáveis ou congeladas no período legalmente assinalado.
E vai além quando considera que “célula-tronco embrionária é uma substância humana” e menciona a norma do art. 199, § 4º da CF, que permite a utilização de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante e pesquisa.
Afirma ainda que “essa matriz humana” é uma das substâncias humanas que a Constituição permite possam ser manipuladas com vistas ao progresso científico da humanidade. (ROCHA, p.20).
Sobre o exposto, é de se questionar: se as células-tronco embrionárias são desprovidas de vida e são consideradas pela ministra mera substância humana, como podem ser as mesmas utilizadas em pesquisas e terapias que visem um tratamento de saúde digno do ser humano, como princípio constitucional?
CONCLUSÃO
O tema escolhido para este artigo não é de fácil compreensão por se tratar de um condomínio de entendimentos filosóficos acerca da metafísica clássica e moderna sobre o momento inicial da vida humana. Filósofos, juristas, cientistas de várias áreas da biotecnologia, religiosos e leigos ainda continuam a perseguir uma resposta definitiva sobre o prelúdio da vida.
No século XX, sob o império do Iluminismo e do positivismo jurídico, o mundo jurídico viu o desenvolvimento do direito natural e, com ele, o entendimento de que o que é inato ao homem não pode ser imposto por qualquer forma de organização institucional (Estado) sob pena de se comprometer todo o brilho das revoluções que se notabilizaram em assegurar o direito do homem em detrimento dos interesses de governantes despóticos e tiranos.
Surge assim um novo modo de organização política, social e econômica dos povos, em que o resultado destas ciências é o próprio Estado, que está a serviço da sociedade, impondo o fim da era do Estado medievo.
Estas são as raízes do Estado Democrático e Social de Direito que, desde as Revoluções Francesa e Norte-Americana, vem proporcionando ao mundo ocidental a possibilidade de superação de seus próprios fins, bem como de seu desenvolvimento humanístico. É bem verdade que, alguns mais desenvolvidos que outros, mas com o mesmo objetivo de erradicar a desigualdade material, estabelecendo-se a justiça social.
Mas, nesta árdua e edificante conquista que o homem moderno conseguiu impor em direção ao seu próprio conhecimento científico, atrelado ao desenvolvimento de seu senso comum, às vezes se contrapõe a valores axiológicos, que são preteridos em nome deste mesmo desenvolvimento. Estaríamos falando do pós-modernismo?
Assim é que, em nome de uma principiologia por atacado todo e qualquer pretenso direito é elevado a norma imediatamente realizável sem, contudo, se submeter a uma filtragem constitucional de leis infraconstitucionais.
O art. 5º da lei 11.105/2005, Lei de Biossegurança, que foi objeto de enorme embate perante o Supremo Tribunal Federal, é um exemplo dessa pós-modernidade quando define o status jurídico do embrião humano e traz em seu texto, no mínimo, a violação da continuidade do princípio da proporcionalidade e o entendimento daquela corte de que o direito à vida do embrião humano é relativo.
Em quase a totalidade dos votos, pode-se extrair que vida não há no embrião, mas um ente petrificado, crioconservado, sem nenhuma viabilidade de aproveitamento a não ser para utilização em pesquisas que visem dar um tratamento de saúde digno a outro ser humano.
Ora, se vida não há, como esse embrião poderá ensejar um tratamento digno de saúde, conforme princípio constitucional?
Falar em pós-modernidade no campo da ciência jurídica é, no mínimo, uma imprudência face ao antagonismo perante a evolução que o Direito Constitucional, arduamente, conquistou ao longo destes últimos séculos de modernidade. E falar também em pós-modernidade em países que não conheceram a modernidade ou conheceram tardiamente contribui para a inefetividade do Estado Democrático (Social) de Direito.
Voltando aos votos dos ministros do Tribunal Federal, constatamos ainda a ocorrência de um ativismo judicial claramente vencido pela corrente substancialista, mas com elevada dose de discricionariedade. Afinal, pode o juiz aplicar o Direito subjetivamente de acordo com suas ideologias? Existe efetividade do Estado Democrático de Direito onde há discricionariedade?
Diante de tamanha responsabilidade do Plenário do STF, que até foi negada por alguns, talvez o voto que mais tenha se aproximado de um verdadeiro sentido de justiça foi o do ministro Gilmar Mendes quando buscou fundamentar seu voto no princípio da proibição de proteção ineficiente, este, sim, complementar ao princípio da proporcionalidade, sinalizando para uma nova concepção de entendimento, que os outros votos não conseguiram alcançar.
Assim, podemos chegar às conclusões que se seguem.
A definição constitucional sobre a dignidade do embrião humano não foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal.
O solipsisimo judicial imperou em todos os votos, exceto no voto do ministro Gilmar Mendes, que ousou complementar o princípio da proporcionalidade por meio do princípio da responsabilidade.
A vida embrionária é relativa, e o embrião foi “coisificado” pelo Supremo Tribunal Federal.
Por derradeiro, que este histórico julgamento não seja visto como um novo caso semelhante àquele demonstrado no filme “O Dossiê Pelicano” e que ficou estigmatizado como efeito “o efeito Julia Roberts”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed, São Paulo: Malheiros, 2008.
______. Teoria do Estado. 7 ed. SãoPaulo: Malheiros, 2007.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HOBBS, Thomas. Leviatã. Trad. Rosina D´Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009.
______. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2006.
LOUREIRO, Claudia Regina de Oliveira Magalhães da Silva. Introdução ao Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2009.
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição Brasileira. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2007.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. Pietro Nassetti. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.
SARLET, Ingo Wofgang. A Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed.,1993.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
______ & MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e teoria geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
VACONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas. 2006.
WALKER, Ralph. Kant e a lei moral. São Paulo: UNESP, 1999.
[1] ALVES, 2001 (apud LOUREIRO, 2009), afirma: “A palavra dignidade tem sua origem etimológica no termo latino dignitas, que significa ‘respeitabilidade’, ‘prestígio’, ‘consideração’, ‘estima’, ‘nobreza’, ‘excelência’, enfim, indica ‘qualidade daquilo que é digno e merece respeito ou reverência’(...). Importante observar que ao lado desse substantivo abstrato-DIGNIDADE- que expressa, pois, uma qualidade ou atributo de um determinado sujeito, deve-se considerar, também o termo DIGNIFICAÇÃO- derivado do verbo dignificar, ou seja, tornar digno- que expressa um processo de busca ou de aprimoramento da dignidade desse mesmo sujeito. Esse processo de dignificação terá, necessariamente, como pressuposto as concepções do sujeito acerca do que considera como uma ‘vida digna’, conceito que, nas sociedade democráticas e pluralistas contemporâneas, com sua multiplicidade de valores culturais, de visões religiosas de mundo e de posicionamentos morais não se apresentará certamente de maneira unívoca”.
[2] BOBBIO, 1997 (apud LOUREIRO, op.cit.).
[3] PEREIRA, Marcos Roberto, 2001 (apud LOUREIRO, op. Cit., p. 79), grifos meus.
[4] KANT, Immanuel, 1986, p. 79 e 67 (apud PETTERLE, 2007, p. 63).
[5] Idem, p. 59 (apud. PETTERLE, op. Cit.,p. 63)
[6] Idem, p. 59-60 (apud. PETTERLE, op. Cit., p. 63).
[7] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa:Edições 70, 1986, p.68 ( Apud. PETTERLE, p. 64).
[8]WEBWR, Tadeu. Ética e filosofia Política: Hegel e o formalismo Kantiano. Porto Alegre EDIPUCRIS, 1999, p. 63, 97 e 109. “ Para Hegel, a possibilidade de dar-se a si próprio a lei implica a mediação das vontades dos outros; busca-se o universal através da mediação (...) A concretização da liberdade exige, portanto, reconhecimento (...) Hegel insiste mais no desdobramento objetivo das vontades”, p. 75
[9] PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição Brasileira. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2007, p. 66.
[10] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito: a Idéia e o ideal; Estética: o Belo Artístico e o Ideal; Introdução à história da Filosofia. Traduções de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino, Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores). Título original: [Die Phaenomelogie dês Geistes; Vorlessungen ueber die Aesthertik; Vorlesungen ueber die Geschichte der Philosophiel, p. 38. Em página 14, afirma o seguinte: “Se o embrião é, sem dúvida, homem em si, no entanto ele não é para si. O homem é para si tão-somente como razão formada, que a si mesma se fez o que já é em si unicamente essa é a sua realidade efetiva. Mas tal resultado é, ele próprio, imediatamente simples, pois é a liberdade consciente de si que repousa em si e não pôs de lado a oposição para deixá-la abandonada, mas ao contrário, reconciliou-se com ela”. Mais adiante esclarece que “ (...) a razão é o agir de acordo com o fim”. (apud PETTERLE, op. Cit.)
[11] SEELMAN, Kurt. Pessoa e Dignidade da Pessoa Humana na Filosofia de HEGEL.Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgand (Org.). Dimensões da Dignidade.Op.cit., 2005, p. 59 (apud PETTERLE, op. Cit., p. 70.)
[12] DWORKIN, Ronald. El Dominio de La Vida. Una Discusión Acerca Del Aborto, La Eutanaia y La Libertad Individual. Tradução de Ricardo Caracciolo e Victor Ferreres. 1ª reimp. Barcelon: Ariel, 1998, p. 305, apud PETTERLE, op. Cit.)
[13] Idem, p. 307 (apud PETTERLE, op. Cit.). Como explicar o direito a ser tratado com dignidade em situações fáticas em que a própria pessoa sequer reconhece qualquer violação a sua dignidade? Um exemplo bem ilustrativo do problema é o das pessoas que comprometeram a sua própria dignidade, como é o caso de alguém que viva sob completa falta de limpeza, inclusive com relação a sua própria higiene pessoal. Segundo exemplo: o das pessoas que sacrificam a sua independência na busca de vantagens imediatas. Um terceiro exemplo: a situação do escravo que sequer reconhece a extrema indignidade de viver sob escravidão.
[14] Idem, p. 310 (apud PETTERLE, op. Cit.)
[15] DWORKIN, Ronald. 1998, p. 311 (apud PETTERLE, op. cit., p. 75).
[16] DWORKIN, Ronald. 2005, p. 609 (apud PETTERLE, op. cit., p.75).
[17] DWORKIN, Ronald. 1998, p. 312, 313 e 314 (apud, PETTERLE, op. Cit., p. 75).
[18] HABERMAS, Jurgen. Comentários à Ética do Discurso. Lisboa: Piaget, 2001, p. 16 a 19 (apud PETTERLE, op. Cit.). O método da argumentação moral, da ética do discurso, substitui o imperativo categórico kantiano, já que “as únicas normas que têm o direito a reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência dos participantes envolvidos no discurso prático”. E como se dá esse método do discurso prático? Os intervenientes, quando argumentam, partem do princípio de que são todos indivíduos livres e iguais e estão na “busca cooperante da verdade, na qual apenas interessa a força do melhor argumento”. Em síntese, trata-se da busca do consenso, no plano discursivo, durante o processo de comunicação. O discurso prático é uma “forma exigente da formação argumentativa da vontade”.
[19] Idem, p. 52 (apud PETTERLE, op. Cit.).
[20] PETTERLE (op. Cit, p. 77).
[21] HABERMAS, Jurgen. El Futuro de la Natureza Humana,, p. 54 (apud PETTERLE, op. Cit., p. 77).
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: Construindo uma Compreensão Jurídico-Constitucional Necessária e Possível. In: Sarlet, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade. (apud., PETTERLE, op. Cit.,p. 78)
[23] NALINI, José Renato. A evolução protetiva da vida na constituição brasileira. In: A vida dos direitos humanos. Bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 263-283.( apud. LOUREIRO, Claudia Regina Magalhães, 2009, p. 87).
[24] Antônio Chaves. Direito à vida e ao próprio corpo. 2.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 16 (apud, LOUREIRO, op. Cit.)
[25] Teor do Considerando n.6 da Recomendação n. 1.110/89 do Conselho da Europa:”Considerando que é correto determinar a tutela jurídica a ser assegurada ao embrião humano desde a fecundação do óvulo, como é previsto na Recomendação n. 1.046.” ( apud LOUREIRO, op. Cit.)
[26] Geneticista francês Jérome Léjeune. In: Antonio Chaves. Direito, p. 16-17 (apud LOUREIRO, op. cit.)
[27] NERY, Rosa Maria Barreto B. Andrade. A proteção civil da vida humana. In: A vida., p. 441-466. (apud LOUREIRO, op. Cit.)
[28] LOUREIRO, op. Cit., p. 93.
[29] PETRACCO, 2004, p.5 (apud LOUREIRO, op. Cit.) informa: “No Brasil, a adoção de embriões é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), desde que se mantenha o anonimato e não haja fim lucrativo”.
[30] PETRACO, op. Cit (apud LOUREIRO, op. Cit.).
[31] MEIRELLES, 2000 (apud LOUREIRO, op. Cit.)
[32] VACONCELOS, 2006, p. 91.
[33] Em 1º de outubro de 1946, o Tribunal de Nuremberg concluiu o julgamento de dezoito nazistas, absolvendo três, condenando à morte doze e à prisão perpétua outros três, todos acusados por crimes contra a humanidade (MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito constitucional comparado e a inviolabilidade da vida humana. In: PENTEADO, Jaques de Camargo; DIP, Ricardo Henry Marques (Org.). A vida dos direitos humanos: Bioética médica e jurídica, p. 27.
[34] Em 1964, em Assembléia da Associação Médica Mundial, através da Declaração de Helsinque (cuja última revisão foi em 1989), referidos princípios foram re-ratificados. Embora referido documento não tenha status de um tratado internacional, é considerado pela comunidade científica verdadeira Declaração Universal dos Direitos do Homem no âmbito da pesquisa (SILVA, 2002, apud VASCONCELOS, op. Cit.)
[35] MARTINS, Ives Gandra da Silva. 1999, p. 128 (apud., VASCONCELOS, op. Cit. p. 93)
[36] É assim que Michel SCHOOYANS expressa seu posicionamento acerca da DUDH: “é uma declaração de direitos, e não uma atribuição de direitos aos homens, porque estes direitos os homens possuem por natureza, sejam eles reconhecidos ou não; a declaração é igualmente universal porque tais direitos todos os homens os possuem, e ninguém está autorizado a exercê-los em detrimento de outrem” (SILVA, op. Cit. p. 250, apud VASCONCELOS, op. Cit.)
[37] Primeira parte do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
[38] VASCONCELOS, op. Cit., p. 95.
[39] idem
[40] COMPARATO, F. k. 2001, p. 366 (apud, idem,, ibidem. p. 69).
[41] BICUDO, 1997 (apud idem, ibidem.)
Pós-graduado em Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: THOMOPOULOS, Paulo Constantino. A coisificação do embrião e o princípio da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 mar 2011, 07:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23705/a-coisificacao-do-embriao-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Andrea Kessler Gonçalves Volcov
Por: Lívia Batista Sales Carneiro
Precisa estar logado para fazer comentários.