Notas Introdutórias
O labor doutrinário perde valia se não reflete aplicabilidade pragmática. Contudo, há inúmeros casos trazidos pela casuística apresentada à apreciação judicial, que poderiam certamente apresentar fundamentação teórica mais consistente e consonante ao anseio social de justiça, ao invés de imputar desmedidamente a responsabilização penal.
O caso objeto de análise desse estudo diz respeito à visão inovadora quanto à aplicação do âmbito de responsabilidade alheio, inserido no complexo teórico da imputação objetiva de Claus Roxin, justamente no alcance do tipo, isto é, quando apesar de constatada a criação de um risco juridicamente relevante e proibido que se realizou de forma específica no resultado, há a exclusão da imputação, em decorrência do tipo penal não visar reprimir condutas como aquela, ou seja, não objetivava impedir acontecimentos de tal ordem (ROXIN, 2002, p.352).
Desta forma, cabe primeiramente analisar a teoria do âmbito de responsabilidade alheio e, a posteriori, o caso recorrente na práxis judicial.
O âmbito de responsabilidade alheio
O âmbito de responsabilidade alheio concerne a mecanismo de aferição de imputação objetiva, em que averigua se a responsabilidade pela ocorrência ofensiva a bens jurídicos penalmente tutelados decorre mesmo da conduta do agente ou se já fora transportada para a responsabilidade de outrem, a quem era incumbido a proteção ou mesmo a evitação do evento danoso.
Nesta trilha, Guilherme Guimarães Feliciano explana que “nos riscos transladados ao âmbito de responsabilidade alheio, o sujeito cria um risco reprovável que se materializa em um resultado; nada obstante, quando o risco se realiza, o dever de evitar o resultado já está trasladado ao âmbito de competência de um terceiro” (FELICIANO, 2005, p.143)
Exemplo usual trazido pela doutrina atine à conduta de um caminhoneiro, que dirige seu caminhão sem as luzes traseiras, indispensáveis à visualização do veículo à noite. Policiais observam esta irregularidade e sinalizam para que o motorista pare. Após a abordagem, um dos policiais coloca na parte traseira uma luz vermelha, como medida preventiva a evitar acidentes. No entanto, antes do caminhão sair do local para colocação do equipamento veicular, o policial retira a luz vermelha, que alertava outros motoristas. Em razão disto, outro caminhão que vinha no mesmo sentido vem a colidir com o caminhão parado, vindo a ensejar a morte do passageiro do caminhão em movimento. (ROXIN, 2002, p.376)
No exemplo apresentado, diz respeito, logicamente, a um comportamento culposo inicialmente desencadeado pelo motorista do caminhão parado. Todavia, conforme a teoria da imputação objetiva, o resultado não estar-se ia no âmbito de responsabilidade deste, mas do policial, que retirou a luz vermelha intempestivamente.
A hipótese casuística do art.171 § 3º
Apesar desta aplicação ventilada na seara dos delitos culposos, nos enveredamos a arriscar sua utilização no âmbito dos delitos dolosos, sobretudo em hipótese casuística em que a jurisprudência, em regra, manifesta-se pela condenação ou em casos pontuais absolve o agente por vias transversas, v.g., utilização do erro de proibição, afim de adequar a justiça concreta ao evento analisado.
O caso comumente vislumbrado no cotidiano forense concerne ao estelionato qualificado, em que, não raras vezes, o aposentado ou pensionista pelo INSS vem a falecer, mas outra pessoa continua recebendo o benefício, apesar da comunicação ao cartório de registro civil da ocorrência do óbito, configurando, conforme o posicionamento majoritário estelionato qualificado contra a autarquia federal.
Contudo, a aplicação do âmbito de responsabilidade alheio afigura-se plenamente válido, pois, não obstante a criação de um risco juridicamente relevante e proibido, qual seja, os saques indevidos pelo agente, e a realização do risco no resultado, isto é, o prejuízo ao Instituto Nacional do Seguro Social pelos saques efetuados, a responsabilidade fora transferido para o âmbito de responsabilidade do cartório, que deveria ter comunicado obrigatoriamente ao INSS, a ocorrência do óbito a ele informada, como decorre do art. 68 da Lei 8.212/91, desde que constitua mora por parte do cartório de registro civil, isto é, após o dia 10 do mês anterior.
Assim, para o traslado da responsabilidade, necessário se faz que a conduta do cartório destoe do que o é exigido pelos regramentos legais e institucionais. Desta feita, a subsistência da conduta violadora do dever objetivo do cartório de comunicar apresenta-se como pressuposto à exclusão de imputação da conduta do agente que recebeu indevidamente os pagamentos.
Considerações Finais
Reconhecemos a visão ousada e inovadora deste posicionamento doutrinário esboçado neste artigo. Contudo, é imperativa a necessidade de eliminação da imputação quando a responsabilidade por um ato cabia a outrem, que tinha o dever jurídico de evitar o resultado.
Desta forma, impende salientar que para a atribuição de um resultado à conduta do agente é preciso que o hermeneuta abstenha-se do instinto natural de devolver a agressão ao bem jurídico àquele que agiu de má-fé, quando o próprio direito positivado atribuía a responsabilidade a outrem.
Neste conduto de exposição, imputar o resultado ao beneficiário que se aproveita da falha grotesca do sistema seria o mesmo que um flagrante preparado, viciado em sua origem, pois em ambos a deflagração da ação ou omissão extrapola os limites dos próprios fins preventivo-especiais da pena que viesse a ser cominada.
Entretanto, não coadunamos em hipótese alguma com o enriquecimento ilícito pelo agente que sacou o valor indevido, devendo ser cobrado como as próprias dívidas ativas, sobretudo com a cobrança de multa a ser normatizada não obstante o argumento a respeito de sua irrepetitibilidade decorrente de sua natureza alimentícia. Mas, observa-se que a fragmentariedade imanente às raízes do Direito Penal pugna pelo afastamento de casos como estes do âmbito penal, em decorrência de sua índole de ultima ratio.
Como proposta de lege ferenda, abstendo-se da aplicação do âmbito de responsabilidade alheio como apresentado neste estudo, caberia a aplicação de institutos de parcelamento e quitação do débito, acrescido de multas, da mesma forma como resolvido no tocante aos crimes contra a ordem tributária e previdenciários, que suspenderia e, por conseguinte, extinguiria a punibilidade, em virtude da restauração do bem jurídico lesado, cumprindo de maneira adequada os fins do Direito Penal.
Referências Bibliográficas
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005.
ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal – Tradução e Introdução de Luiz Greco. São Paulo: Renovar, 2003, pág. 332.
Precisa estar logado para fazer comentários.