O tema em epígrafe passa por um acalorado debate doutrinário e acadêmico hodiernamente, sendo certo que, sem sombra de qualquer dúvida porventura existente no mundo jurídico, contribui intensamente para a consolidação do Estado Democrático de Direito, a supremacia da Constituição e a confirmação dos direitos fundamentais.
Podemos iniciar este breve ensaio dizendo que, no ordenamento jurídico pátrio, desde a década de 1970, o Supremo Tribunal Federal já vinha aplicando o que a doutrina chama de modulação de efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei, ou, também, de normas inconstitucionais constitucionais.
Parece soar estranho aos nossos ouvidos e a nossa compreensão ver uma norma ser declarada inconstitucional e ainda assim gerar eficácia no mundo jurídico; contudo, apesar de a regra geral em nosso ordenamento jurídico ser a da nulidade ipso jure e ex tunc, ante a constatação de vício de nulidade desde sua criação, não é este o entendimento que a doutrina pátria e estrangeira dispensam ao tema. Como já dizia Pontes de Miranda, “um dos problemas de mais relevo prático e mais elegante que se possa encontrar, hoje, em direito constitucional é o da concepção da natureza da sentença sobre anticonstitucionalidade da lei no tocante à sua eficácia”.
Como dito acima, desde a década de 1970, já se encontram vozes no STF defendendo a possibilidade da mitigação do princípio da nulidade, aplicado no Brasil desde a Constituição de 1891 até a Carta Magna de 1988. No Recurso Extraordinário nº 78.594/SP, julgado em 07/06/1974, a 2ª turma do STF enfrentou um caso onde um funcionário assumiu as funções de oficial de justiça com base em uma determinada lei estadual que viria a ser declarada inconstitucional pela Corte Suprema. Ocorre que, aplicada a teoria da nulidade plena ao caso, todos os atos realizados pelo “oficial de justiça” seriam nulos de plano. Em seu voto, o Relator, Min. Bilac Pinto, afirmou que “os efeitos desse tipo de declaração de inconstitucionalidade- declaração feita contra lei em tese- não podem ser sintetizados numa regra única que seja válida para todos os casos”. Para solucionar o litígio, o STF entendeu que os atos até então praticados pelo funcionário público seriam válidos, não obstante a inconstitucionalidade da lei que lhe deu investidura.
Também no julgamento do Recurso Extraordinário nº 79.343-BA, em 31 de maio de 1977, o Relator, Min. Leitão de Abreu, apoiado na doutrina Kelseniana, propugnou a anulabilidade da lei e a natureza constitutiva da decisão judicial que proclama a inconstitucionalidade.
Desde então, o Supremo Tribunal Federal passou a adotar, em situações excepcionais, a técnica da modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade, sobretudo por questões de segurança jurídica e proporcionalidade.
Pois bem, até o ano de 1999, as decisões do STF eram feitas com suporte em construções jurisprudências, sempre que se enfrentava o problema da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público ante a falta de norma que regulamentasse a matéria. Com o advento da lei 9.868, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República em 10 de novembro daquele mesmo ano, com o intuito de processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade de competência originária do STF, sofreu o ordenamento jurídico pátrio, profunda modificação, sobretudo em seu art. 27, que dispõe em sua parte final sobre a faculdade concedida ao STF de realizar a modulação de efeitos nas suas decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de uma norma (ampliação de poderes).
Deflagra-se, assim, imenso debate doutrinário acerca da (in)constitucionalidade da lei 9.868/99, não só formalmente mas materialmente. Vários são os argumentos sobre a inconstitucionalidade desta lei ordinária, senão vejamos:
a) O novel texto legal rompe com a tradição clássica do ordenamento jurídico brasileiro e traz para o bojo desse ordenamento a figura denominada por alguns doutrinadores de “inconstitucionalização intenrrompida” uma vez que se permite ao STF reconhecer uma norma como inconstitucional, mas podendo mesmo assim projetar os seus normais efeitos para o futuro, por tempo indeterminado, fazendo com que haja a constitucionalização temporária do que é inconstitucional.
b) Que a Constituição de 1988 apenas prevê o princípio da nulidade, ou seja, a orientação de que a lei inconstitucional não pode produzir qualquer efeito. Não há no texto constitucional brasileiro qualquer norma que permita a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
c) Talvez o mais substancial argumento acerca da inconstitucionalidade da lei 9.868/99 esteja inserido no campo da Teoria Geral do Direito, ou seja, seguindo o modelo piramidal Kelseniano, toda norma jurídica necessita de uma outra norma hierarquicamente superior que lhe seja o fundamento de validade. Kelsen explica que
“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas do lado de outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato da validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar, finalmente na norma fundamental – pressuposta”.
Então, se uma norma é reconhecidamente inconstitucional, como poderia uma mera lei ordinária (lei 9868/99) ser o fundamento de validade da norma declarada inconstitucional (que é de mesma hierarquia ou até superior à lei 9.868/99)? Ou seja, como poderia uma lei ordinária ser fundamento de validade de outra lei ordinária ou emenda constitucional? Claro que isto não se mostra possível.
Em suma: uma simples lei ordinária não pode servir de fundamento de validade para normas situadas no mesmo plano hierárquico e mesmo em plano superior- no caso das emendas constitucionais aprovadas com violação das cláusulas pétreas.
Apesar de toda esta argumentação sobre a inconstitucionalidade do artigo 27 da lei 9.868/99 e da adoção pelo constituinte pátrio do princípio da nulidade como regra geral, grande maioria da doutrina pátria e estrangeira vem inclinando para uma maior flexibilização deste princípio. Assim é nos países europeus, como Alemanha (que adotou a teoria da incompatibilidade), Portugal e Áustria, que já reconhecem o efeito ex nunc na modulação de efeitos nas decisões de inconstitucionalidade de seus Tribunais Constitucionais.
Nos E.U.A. não é diferente, como se depreende do voto do Min. Gilmar Mendes, firmado no acórdão exarado na Medida Cautelar em Ação Cautelar nº 189-7 SP de 06/02/2004, in verbis:
“No direito americano, o tema poderia assumir feição delicada tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema, isto é, modelo marcadamente voltado para a defesa de posições subjetivas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem atribuição de eficácia retroativa, especialmente nas decisões judiciais que introduzem alteração de jurisprudência (prospective overruling). Em alguns casos, a nova regra afirmada para decisão aplica-se aos processos pendentes (limited propspectivity); em outros, a eficácia ex tunc exclui-se de forma absoluta (pure prospectivity). Embora tenham surgido no contexto das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospectivity têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orientação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma lei antes considerada constitucional. (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743). A prática da prospectivity, em qualquer de suas versões, no sistema de controle americano, demonstra, pelo menos, que o controle incidental não é incompatível com a idéia da limitação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade.”
Conclusão:
No Brasil, a regra geral é de nulidade da lei declarada inconstitucional, antes e depois da existência do artigo 27 da lei 9.868/99, e a aplicação da modulação de efeitos nas decisões de inconstitucionalidade é admitida somente em situações excepcionais, apesar da apontada inconstitucionalidade do art. 27 da referida lei. Mesmo na confirmação dessa hipótese, o Supremo Tribunal Federal não estará impedido de aplicar a modulação de efeitos, uma vez que a própria jurisprudência da Suprema Corte já a vinha admitindo muito antes da lei 9.868/99 e seu artigo 27.
Bibliografia
APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2008.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Controle de constitucionalidade e a lei 9.868/99. São Paulo: Lumem Juris, 2001.
KELSEN, Hans.Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: ATLAS, 2005.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
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