O estudo da tutela penal do idoso no Brasil constitui-se numa delicada e apaixonante missão, já que se trata de um tema atual e de extrema relevância na seara do Direito Constitucional Penal contemporâneo, ante a ocorrência de reflexos nunca experimentados por grande parcela da população mundial.
Isso porque, os avanços tecnológicos da medicina, a queda da taxa de mortalidade infantil e de natalidade, com o conseqüente aumento da expectativa de vida do homem (lato sensu), notadamente, do final do século XX para cá, fez com que o perfil demográfico brasileiro sofresse significativa modificação. Nosso país que outrora era constituído em sua maioria por pessoas jovens, hoje constitui uma verdadeira “nação envelhecente”.
Nesse contexto, o idoso foi tornando-se mais vulnerável frente ao aumento da criminalidade, não obstante a falta de políticas públicas e amparo legislativo adequado, a par da existência de uma rica e garantista Constituição Federal, sofrendo prejuízos de grande monta, não somente no aspecto patrimonial ou pecuniário, mas em sua dignidade como ser humano que é.
Por isso, justifica-se a presente pesquisa científica, a fim de que se possa promover a proteção integral do idoso, com a valorização de sua dignidade humana, não obstante fomentar o asseguramento de todos os direitos que não podem ser expropriados ou tolhidos com fulcro em um critério eminentemente etário.
Os objetivos específicos consistirão, em síntese, na análise dos critérios jurídicos para a definição de idoso; abordagem acerca da importância da tutela penal do idoso no Brasil; ponderação sobre a evolução histórico-legislativa da proteção do idoso no direito alienígena e no direito interno; meditar sobre os aspectos inerentes à dignidade da pessoa humana como corolário da ordem democrática e social de direito; tecer, ao final, breves linhas sobre a necessidade de modificação do atual paradigma.
No que pertine à metodologia científica a ser utilizada, trata-se de um estudo fundamentado em levantamento bibliográfico e estatístico, que se desenvolverá a partir do método hipotético-dedutivo.
Ao iniciarmos o estudo da tutela penal do idoso no Brasil, emerge como tema a ser enfrentado a delimitação conceitual de idoso, visto que não ser incomum as pessoas se apanharem meditando sobre quem vem a ser o idoso, mesclando sua definição com a velhice ou mesmo com a deficiência física.
Hodiernamente, não se olvida de que o envelhecimento é um processo biológico natural, individual e subjetivo, cujas conseqüências se dão de maneira desigual em cada indivíduo, tendo em vista que cada um se desenvolve em um determinado tempo, e também é com base nesse tempo é que ele poderá se sentir envelhecido.
Por esta razão, não mais se admite a utilização de vocábulos como ancião, ou ainda expressões que, ao nosso sentir, traduzem uma conotação negativa ou mesmo pejorativa à pessoa em idade avançada, como a terminologia velho, fruto da ideia do “descarte do idoso” e cultuamento do belo e formoso. Para chegarmos a esta conclusão, basta voltar nossos olhares para a proliferação de clínicas estéticas que prometem o rejuvenescimento ou a manutenção do viço corporal. Evidente que não é esta a concepção que deve prevalecer!
Sem delongas, o que inviabilizaria o atingimento do objetivo deste trabalho, passamos à abordagem dos critérios para a definição normativa ou jurídica de idoso no Brasil.
Para a elucidação da definição legal ou jurídica de idoso, nos valeremos do elucidativo escólio de Norberto Bobbio (1997, p. 17), que indica três perspectivas fundamentais a serem inexoravelmente observadas: a cronológica, a biopsicológica e a econômico-social.
Segundo o critério cronológico, considera-se idoso a pessoa que se encontra com mais idade do que um patamar etário previamente estabelecido, configurando-se, pois, elemento objetivo, de fácil aferição concreta, a exemplo, do limite para fazer jus à aposentadoria por idade, concessão de imunidade fiscal, benefícios previdenciários, facultatividade de voto etc.
Em segundo plano, encontra-se o critério biopsicológico, por meio do qual se deve buscar uma avaliação individualizada da pessoa, isto é, de seu condicionamento psicológico ou fisiológico. Com efeito, a análise do mencionado critério deve recair sobre as condições físicas e psíquicas de seu organismo, e não sobre sua faixa etária.
Evidente, porém, que a subjetividade implícita contida nesse critério, pode conferir incertezas nas relações jurídicas, como bem ressaltado pela emitente professora Pérola Melissa Braga (2005, p. 44). Além do que seria tormentoso estabelecerem-se parâmetros físicos e mentais para se avaliar quem se “enquadraria” como sendo ou não pessoa idosa. Por isso, Braga (2005, p. 45) aduz ser “muito difícil uma adoção de critério puramente biopsicológico”.
O último critério apontado por Bobbio (1997, p. 17), é o denominado econômico-social, o qual considera, fundamental e prioritariamente, o patamar social do indivíduo, possuindo como premissa básica, o fato de que o indivíduo hipossuficiente carece de maior proteção pelo Estado, se contraposto ao indivíduo auto-suficiente.
No entanto, não obstante o acima aduzido, parece-nos que o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) perfilhou-se ao critério cronológico, haja vista considerar idosa a pessoa que se encontrar com idade igual ou superior sessenta anos de idade (limite etário preestabelecido), cuja observância dar-se-á por todas as que atingirem respectiva faixa etária ou nesta se enquadrarem (artigo 1º), ao passo que o entendimento hoje majoritário, que prima pela preservação da dignidade humana é aquele que procura considerar os critérios cronológico e biopsicológico, de modo que não se olvide analisar as características humanas individuais, aplicando-se, aqui, mais uma vez, a máxima jurídica de atribuir tratamento igual aos semelhantes e desigual aos dessemelhantes.
A população mundial atravessa um momento de transição demográfica, consubstanciada no envelhecimento populacional, cuja repercussão não atinge somente os países desenvolvidos da Europa ou América do Norte, mas também países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. O processo de envelhecimento vem sendo notado pelo aumento da expectativa de vida, o que influenciará nossa realidade social em curto período de tempo.
Conforme Denise Gasparini Moreno (2007, p. 172), por volta do ano de 2020, o povoamento mundial, que enfrentará um processo de envelhecimento, será superior a 1 bilhão de idosos e que em 2025 atingirá a faixa de 1 bilhão e 200 milhões. E, mais adiante, citando a Organização Mundial da Saúde (OMS), a autora assinala que no ano de 2050, o mundo estará com mais de 1 bilhão e 500 milhões de idosos (2007, P. 172).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou recentemente um estudo intitulado “Revisão 2004 da Projeção da População”, noticiando que, no início da década, o grupo formado por pessoas com idade entre 0 a 14 anos representava 30% (trinta por cento) da população brasileira, enquanto o grupo constituído por pessoas com idade superior a 65 anos representava apenas 5% (cinco por cento), devendo, no ano de 2050, os dois grupos estar igualados no percentual de 18% (dezoito por cento) da população brasileira (RITT, 2008, p. 17).
Em tempos atuais, segundo o IBGE (2002, p. 11), uma em cada dez pessoas tem idade igual ou superior a 60 anos. Em 2050, a expectativa é de que esta relação seja de uma para cada cinco pessoas no mundo, de maneira conjunta, e de uma para três, nos países desenvolvidos. Este mesmo estudo aponta, ainda, que nos países da América Latina, o Brasil assume a posição intermediária no número de idosos, correspondendo a 8,6% da população total (2002, p. 12).
Em 2005, o IBGE (2006, p. 237) anunciou que os idosos correspondiam a quase 10% (dez por cento) da população brasileira.
Verifica-se, portanto, que existirão no território brasileiro mais pessoas com idade acima de 50 anos do que abaixo dessa idade (RITT, 2008, p. 17), onde estatísticas oficiais revelam que em 2020 o Brasil será o 6º país com a maior população de idosos do mundo, com 33 milhões, isto é, 14% (quatorze por cento) da população mundial (IBGE, 2006, pp. 237-238), e que por volta do ano de 2050, a expectativa média de vida do brasileiro será ao nascer de 81,3 anos, similar a expectativa média de vida da população japonesa hodiernamente (RITT, 2008, p. 17).
Ademais,
“se em 2000 o Brasil tinha 1,8 milhão de pessoas com 80 anos ou mais, em 2050 esse contingente poderá ser de 13,7 milhões, o que demonstra toda a importância que o idoso terá na sociedade brasileira, com repercussão cada vez maior nas políticas públicas” (RITT, 2008, p. 18).
Como se vê, a maneira com que o Estado tutela o idoso é preocupante, ainda mais porque índices oficiais comprovam que a maioria dos casos de violência perpetrada contra o idoso se dá no interior de suas próprias residências e, ainda, que ele (idoso) continue a sustentar seus filhos, netos e toda a família, sendo que, não raras vezes, é tratado com desprezo e desrespeito por seus familiares (RITT, 2008, p. 18), o que aponta como sendo os maiores agressores seus próprios familiares ou ainda pessoas que convivem com ele (RITT, 2008, p. 37).
Segundo Ritt (2008, p. 18), essa realidade de violência doméstica e familiar é resultante da cultura vivenciada atualmente, em que a utilidade do idoso, após a aposentadoria, se ainda existir, é baseada somente no sustento dos demais filhos e netos, com os proventos recebidos da Previdência Social.
No entanto, verifica-se que a denúncia dos agressores pelas vítimas idosas também se tornam em um fator preocupante e que deve ser levado em consideração, uma vez que invariavelmente estes residem com seus agressores e dependem de seus cuidados para sobreviver.
Essa revelação torna imprescindível a discussão sobre os meios de se assegurar a proteção penal do idoso e de sua dignidade no Brasil, o que traz a lume o questionamento acerca da eficácia ou não do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) como instrumento avançado de combate e prevenção da violência perpetrada contra o idoso, inclusive, a doméstica e familiar, acrescentando Ritt que protegê-lo da violência doméstica e familiar “[...] é uma das formas de garantia de sua dignidade humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil” (2008, p. 19). Porém, considerando que não temos o intento de esgotar a matéria que além de extensa, suscita veementes controvérsias, nos absteremos de abordar os aspectos relativos ao Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03).
Prosseguindo, leciona Frank Schirrmacher citado por Caroline Ritt, que a humanidade está próxima de uma revolução política, econômica e cultural, decorrente da significativa modificação demográfica, com o envelhecimento rápido da população mundial, acrescentando que a sociedade de modo geral não está preparada para tal realidade, uma vez que nossa realidade social foi construída com fulcro na expectativa de vida experimentada no século XIX, e nossas instituições, o Estado, as empresas, as empresas, o sistema previdenciário e até mesmo o casamento, como conhecemos, “[…] vêm de uma época em que apenas 3% das pessoas ultrapassavam a barreira dos 65 anos” (RITT, 2008. p. 49).
Esta revolução, por sua vez, deve vir acompanhada da modificação dos atuais paradigmas, alterando-se a substancialmente a mentalidade social que hoje é preconceituosa e lastreada em valores sem fundamento. Deve-se, também, valorizar a vida humana independentemente do critério etário, uma vez que a pessoa idosa é digna de amparo e respeito por toda a sociedade.
Consoante afirmam Veronese e Costa apud RITT (2008, p. 52),
“[...] o problema da violência não é fruto somente de questões vinculadas à economia e seus fracassos, ela está também relacionada com a falta de solidariedade, do egoísmo, da quebra de valores e da busca desenfreada de bens materiais. Chegamos a um estágio de nossas vidas em que não mais valorizamos o ser e sim o ter, e neste contexto vamos nos perdendo enquanto filhos, mães, pais, enfim, como seres humanos”.
Desse modo, chega-se a conclusão de que o desamparo político atrelado ao isolamento social do idoso, a falta de respeito, a cultura de discriminação, são fatores que levam à violência contra o idoso, o que indubitavelmente demonstra a necessidade da reestruturação da sociedade aliada à efetiva atuação estatal, a fim de que se construa uma visão humanista, de garantia dos seus direitos, impedindo que “[...] toda a nossa construção civilizatória se volte contra si mesma, porquanto, é imperioso que conquistemos a nossa real humanidade, reconhecendo a si mesmo e ao outro” (RITT, 2008, p. 52).
Em um breve escorço histórico, buscaremos trazer a lume os diplomas legais que se destacaram na tutela jurídica do idoso, notadamente, no que diz respeito à proteção penal dos bens jurídicos que lhe são inerentes.
Redigido por Manu, primeiro legislador indiano, entre os séculos II a.C. e II d.C., sob forma poética e imaginosa, o Código de Manu ou trouxe em seu contexto, disposições referentes aos idosos, algumas os considerando como pessoas de capacidade reduzida, outras os protegendo (RULLI NETO, 2003, p. 93).
Cite-se, como exemplo, o Livro VIII, Estância 70, que estabelecia que o testemunho do idoso somente seria admitido quando inexistentes outras testemunhas não idosas[1], sendo o idoso tratado do mesmo modo na Estância 71[2], ao passo que no Livro IX, Estância 230, trouxe dispositivos que estabeleceram medidas de valorização ou proteção ao idoso, ainda que mínimas.[3]
Por esta regra, o idoso seria preservado na medida em que somente seria submetido a penas menos severas que as cominadas às pessoas não idosas.
Sobreleve-se, porém, que a progressividade histórica da proteção penal dos idosos remete-nos ao surgimento do Estado de Direito e, sobretudo na instituição dos direitos humanos, onde a dignidade do ser humano figura como “valor fonte” de todos os demais valores sociais, na expressão do saudoso jusfilósofo Miguel Reale (1994, p. 306).
Esta, aliás, foi uma das grandes conquistas de nossa “Constituição Cidadã”, que, sobretudo, primou pela consagração do regime do Estado Democrático e Social de Direito, razão que motiva tecer breves linhas acerca da evolução histórica dos direitos humanos fundamentais.
Nesse sentido, o surgimento do Estado contemporâneo remonta ao final do século XVIII, com o propósito de fulminar o arbítrio dos governantes, insurgido pela reação de colonos ingleses na América do Norte e pela insurreição do Terceiro Estado, na França.
Nesta ótica, o Constitucionalismo revelou-se de grande importância na tutela do ser humano, tendo em vista tratar-se de um “[...] arranjo institucional que assegura a diversificação da autoridade, para a defesa de certos valores fundamentais, como a liberdade, a igualdade e outros direitos individuais” (CARVALHO, 2008, p. 233), consistindo, ainda, na divisão de poder, evitando-se o arbítrio e a prepotência.
Isto influenciou no final do século XVIII, o afloramento do constitucionalismo caracterizado pela idéia de separação dos poderes, de garantia dos direitos dos cidadãos, crença na democracia representativa, bem como na demarcação entre a sociedade civil e Estado e ausência do Estado no domínio econômico, o que se intitulou de Estado Absenteísta ou Estado de Direito Absenteísta.
Demais disso, revoluções se sucederam com a finalidade de se estabelecer um “governo de leis e não de homens”, tal como figurou na Constituição de Massachussets de 1780, em seu art. 30. Foi quando surgiu, então, para o mundo, o que se denominou de “Estado de Direito”, constituído num Poder Político subordinado ao direito objetivo, que por sua vez, perpetuou a legalidade e legitimidade deste.
Não se pode olvidar, porém, que os direitos humanos não foram reconhecidos de uma única vez, sendo frutos “[...] da fusão de várias fontes, desde as tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos filosóficos jurídicos, das idéias surgidas com o cristianismo e com o direito natural” (MORAES, 2002, p. 19-27).
Apresentam-se como os mais importantes precedentes históricos das declarações dos Direitos Humanos Fundamentais, a Magna Carta Libertatum, outorgada pelo rei João Sem Terra em 15 de junho de 1215, que dentre outras coisas, previu a proporcionalidade entre delito e sanção, previsão do devido processo legal, livre acesso à Justiça, liberdade de locomoção, bem como a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1689).
No entanto, a consagração normativa dos Direitos Humanos Fundamentais coube à França, em 26 de agosto de 1789, com a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, destacando-se de seu contexto, a consagração dos Princípios da Igualdade, Liberdade, Propriedade, Legalidade, Reserva Legal, entre outros (AZEVEDO, 2006, p. 16).
Nesse diapasão, Paulo Bonavides revelando a importância da Revolução Francesa de 1789, asseverou que “[...] a universalidade se manifestou pela vez primeira, com a descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem de 1789” (2000, p. 516).
De outra banda, José Afonso da Silva afirma ser o objetivo da corrente filosófica vigente em 1789 a “[...] liberação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal” (1999, p. 161).
Malgrado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ter sido a primeira consagração normativa dos Direitos Humanos Fundamentais, foi a Carta das Nações Unidas de 1945 quem cuidou de efetivar esses direitos, demonstrando ao mundo a preocupação com a dignidade da pessoa humana.
A partir daí adveio a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, desenvolvida pela Organização das Nações Unidas. Saliente-se que, com a criação da ONU, muitos tratados internacionais foram assinados por inúmeros países, com a finalidade de se proteger os interesses fundamentais do ser humano, como a Convenção Européia de Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.
No Brasil, os Direitos Humanos passaram a evoluir de acordo com as Constituições brasileiras. Hodiernamente, os direitos individuais estão expressamente consagrados na Carta Política de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, face à indubitável preocupação com os valores primordiais inerentes ao ser humano.
Com efeito, foi a partir da promulgação da Magna Carta de 1988, que o Estado brasileiro ratificou os principais tratados de proteção aos Direitos Humanos Fundamentais, razão pela qual se viu inserido no cenário internacional de proteção aos respectivos direitos.
Por constituir a vida humana um valor supremo a ser preservado, emerge como um dos principais enfoques do presente estudo, a análise dos fundamentos dos direitos do ser humano.
Neste enfoque, importante se faz a colocação de Rogério Gesta Leal citado por Ritt (2008, pp. 68-69), que os direitos inerentes ao ser humano não podem estar, exclusivamente, no fundamento jurídico, uma vez que o direito positivado não cria direitos da pessoa humana, somente lhes dá vigência, enquanto sua existência é fundamentada no direito natural, necessariamente pré-jurídica. Portanto, não se ignora que o ser humano representa sua própria existência, onde se torna inviável perquirir sua essência sem o socorro à história da civilização.
Partindo dessa concepção, podemos ainda asseverar que todos os indivíduos possuem qualidades exclusivas, as quais devem ser conservadas pela sociedade e pelo Estado. Tais qualidades, por sua vez, são disseminadas como dignidades intrínsecas ao ser humano.
A origem etimológica do vocábulo dignidade advém da terminologia latina dignus, traduzindo o sentido de “[...] aquele que merece estima e honra, aquele que é importante”, segundo Maria Celina Bodin de Moraes apud Ritt (2008, 71).
Conforme assinala Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 114),
“[...] a dignidade, com qualidade extrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciável da natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente”.
Observa Sarlet (2004, p. 30) que na antiguidade clássica, a concepção da dignidade da pessoa humana guardava correlação, em regra, com a posição ocupada pelo indivíduo na sociedade, bem como pelo seu reconhecimento perante os demais membros da comunidade, o que à luz de tal entendimento, concebia-se a existência de pessoas mais ou menos dignas.
Por outro turno, já na Idade Média, o Iluminismo inspirado na corrente filosófica Humanista, trouxe o entendimento de que a dignidade humana estava correlata aos direitos individuais do homem, como também pelo exercício democrático do poder (RITT, 2008, p. 75).
No entanto, foi Immanuel Kant quem trouxe a concepção de dignidade humana embasada na autonomia do indivíduo, autonomia esta inserida como fundamento da dignidade humana. Sob a ótica de Kant, o ser humano não pode ser tratado nem por ele próprio como um objeto, devendo sempre ser considerado como fim e nunca como meio, sendo repudiada qualquer forma de instrumentalização do ser humano, bem como a completa e egoísta disponibilização do outro (RITT, 2008, pp. 75-76).
Por fim, o marco histórico sobre a concepção da dignidade da pessoa humana paira sobre a Segunda Guerra Mundial, que de uma forma repugnante, demonstrou a aceitação de milhares de pessoas à idéia de extermínio da espécie humana, como uma política válida.
Nesse diapasão, como forma de reação às barbáries perpetradas pelo Nazismo e Fascismo, a Itália, após o término da guerra, consagrou a dignidade da pessoa humana no plano internacional. Destarte, consagrou o princípio em apreço no plano interno, como valor supremo dos ordenamentos jurídicos e norteador da atuação do Estado e organismos internacionais (RITT, 2008, p. 77).
Com efeito, verificou-se que a postura adotada pela Itália no pós-guerra influenciou diretamente na consagração (positivação) constitucional por diversos países do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento basilar do Estado.
Por tal razão Rogério Gesta Leal apud Ritt (2008, p. 78) afirma que a dignidade da pessoa humana torna-se um verdadeiro “[...] referencial amplo e móvel que pressupõe e alcança todo e qualquer homem na condição de justificativa do desenvolvimento da própria existência”.
Quiçá por isso Caroline Ritt coloca que o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana está relacionado com os direitos fundamentais ou humanos, valendo-se dos ensinamentos de Ana Paula de Barcellos, para quem o indivíduo somente será respeitado em sua dignidade se observados e realizados os direitos fundamentais, mesmo que a dignidade humana não se exaura em tais direitos (2008, p. 78).
Não obstante, após esta sucinta análise acerca da origem principiológica, porém, sem almejar voos mais altos, podemos fazer a delimitação conceitual de dignidade da pessoa humana, a guisa do entendimento esposado por Ingo Wolfgang Sarlet, como sendo:
“a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (2005, p. 37).
E não é só.
No Brasil, o poder constituinte originário de 1988, erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana, em um dos fundamentos do Estado Democrático (e Social) de Direito, conforme se infere do artigo 1º, III, da Carta da República, a exemplo do que ocorreu em outros países, dentre eles a Alemanha (após a odiosa Ordenança de 1943, que visando diminuir ou mesmo extirpar o número de pessoas não pertencentes à “raça ariana”, descriminalizou-se o aborto praticado por estrangeiras, tipificando respectivo delito somente em relação às alemãs), reconhecendo categoricamente que “[...] é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2001, p. 66). Denota-se, pois, a adoção pela Carta Magna de 1988 da filosofia kantiana alhures reportada.
Nesse sentido, arremata Maria Celina Bodin de Moraes apud Ritt (2008, p. 80):
“No direito brasileiro, após mais de duas décadas de ditadura sob o regime militar, a Constituição democrática de 1988 explicitou, no artigo 1º, III, a dignidade humana como um dos “fundamentos da República”. A dignidade humana, então, não é criação da ordem constitucional, embora seja por ela respeitada e protegida. A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-se entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. Com efeito, da mesma forma que Kant estabelecera para a ordem moral, é na dignidade humana que a ordem jurídica (democrática) se apóia e constitui-se”.
Demais disso, a já mencionada Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, denominada de Pacto de São José da Costa Rica, vigente no plano interno desde 1992, pela edição do Decreto nº 678, também traz a dignidade da pessoa humana como valor a ser preservado pelos Estados signatários, conforme a redação do artigo 11, item 1.
Explana, ainda, a melhor orientação doutrinária, que os princípios constitucionais devem operar-se inexoravelmente como vetores de interpretação normativa, tanto pela sociedade em geral, como pelo Poder Público, razão pela qual são dotados de plena eficácia jurídica no ordenamento pátrio. Assim, pondera com brilhantismo Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 70):
“Num primeiro momento – convém frisá-lo – a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocadamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalou Benda – a condição de valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na sua qualidade de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual, para muitos, se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa”.
Tomando-se por base os argumentos precitados e o que dispõe o ordenamento constitucional brasileiro, podemos assertar que o respeito da dignidade da pessoa humana, sobretudo, no que se refere às prestações positivas do Estado, assume a posição de norma-princípio, devendo ser observada como pressuposto do regime jurídico de qualquer Estado ou sociedade perfilhada à ordem democrática.
Cumpre-nos, portanto, fomentar a observância do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, pela sociedade de modo geral e pelo Estado Brasileiro, como valor fundamental da nação, garantindo-se-lhe aplicabilidade efetiva a todos, inclusive, aos idosos, face aos índices alarmantes de violência perpetrada contra estas pessoas, bem assim para o radical processo de envelhecimento populacional enfrentado pela República Federativa do Brasil e que será majorado nas próximas décadas.
Outrossim, deve imperar a observância do postulado da dignidade da pessoa humana, na atuação da função estatal legiferante (constitucional e infraconstitucional), primeiro para que possamos constituir um verdadeiro Estado Democrático (e social) de Direito, e, secundariamente, para que exista a proteção efetiva dos direitos inerentes ao idoso, de modo especial, na seara criminal.
Finalizando, pontuamos que embora exista inquietação na literatura sobre qual vem a ser o critério ou critérios que melhor definam o idoso, o que aqui não critica, ao revés, se exalta, visto que somente assim quebraremos paradigmas e construiremos uma sociedade mais justa e quiçá solidária, tem-se que a orientação que melhor se apresenta atualmente é aquela em que se pondera, de forma conjunta, os critérios cronológico e biopsicológico, de modo que não se escuse de analisar as características singulares ou particulares do indivíduo, atribuindo-se-lhe, a nomenclatura “idoso” após realizada a esta individualização, devendo também aqui invocar-se o mandamento apregoado por Ruy Barbosa, consistente atribuir-se tratamento igual aos semelhantes e desigual aos dessemelhantes, na medida de suas dessemelhanças.
A célere e sensível modificação demográfica global fez soar o sinal de alerta para as questões relativas à tutela penal dos idosos, considerando-se também que, no Brasil, índices estatísticos têm demonstrado que a maioria dos casos de violência praticada contra os idosos tem ocorrido no interior de suas próprias residências, revelando, portanto, a importância que o idoso terá na sociedade brasileira, com repercussão cada vez maior nas políticas públicas.
A ausência de amparo político, legislativo e social, roborada pela falta de respeito atrelada à cultura de discriminação, são fatores que levam à crescente violência perpetrada contra o idoso, revelando a necessidade da concreta e célere reestruturação social e atuação estatal, de maneira a influir na construção de uma visão humanista e garantista dos direitos dos idosos, obstando toda a forma de conduta discriminatória e atentatória à igualdade e dignidade humana, resgatando valores que se perderam ao longo do tempo, hodiernamente, baseados na cultura do corpo, do belo e formoso, e do descarte do idoso, o que se desgarra dos valores que solidificam o arcabouço jurídico brasileiro e que se sustenta nas bases do ideário Democrático e Social de Direito. Devemos, pois, sob a ótica iluminista-humanista, reconhecer a nós mesmos e ao próximo.
A influência na mudança do pensamento social e da legislação infraconstitucional, colocando o homem como o centro de todas as coisas, em consonância com a elucidativa concepção grega na Antiguidade, propiciará o nascimento de um novo Humanismo, imperioso para que possamos extirpar todas as formas de violência, desigualdade e discriminação perpetradas contra o idoso.
A letra fria da Lei não é o bastante para que possamos, enfim, modificar o atual paradigma. Por isso, não devemos nos calar diante da latente e vexatória situação de violação dos direitos fundamentais do idoso, diuturnamente vislumbrada em nossa “pátria amada, idolatrada, salve, salve!”.
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[1] “Em tais casos, na falta de testemunhas qualificadas, poderá ser acolhido o testemunho de uma mulher, de uma criança, de um idoso, de um discípulo, de um parente, de um escravo ou de um doméstico” (In RULLI NETO, 2003, p. 97).
[2] “Mas, como uma criança, um idoso, e um doente podem não dizer a verdade, o juiz dará pouco valor ao seu depoimento, com se fôra de um homem cujo espírito estivesse alienado” (In RULLI NETO, 2003, p. 97).
[3] “A pena imposta pelo rei às mulheres, às crianças, aos velhos, aos loucos, aos pobres, e aos doentes, consistirá no castigo com chibatadas de chicote ou de vara fina de bambu” (In RULLI NETO, 2003, p. 99).
Analista de Promotoria (Assistente Jurídico) do Ministério Público do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual de Londrina - UEL-PR. Professor universitário da disciplina Direito Processual Penal na Universidade do Oeste Paulista - UNOESTE, de Presidente Prudente-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRO, Eduardo Buzetti Eustachio. Uma análise sobre a tutela penal do idoso à luz da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25105/uma-analise-sobre-a-tutela-penal-do-idoso-a-luz-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
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