1. Constitucionalismo no Brasil e no mundo
A priori, imperioso esclarecer o que vem a ser o constitucionalismo, e, para tanto, torna-se necessário analisar o aspecto sociológico, bem como a perspectiva jurídica desse movimento que, sem dúvida, revolucionou o sistema constitucionalista do Brasil e do mundo.
Sendo assim, nessa linha de pensamento Kildare Gonçalves Carvalho conceitua (2005, p. 165):
Em termos jurídicos, reporta-se a um sistema normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos detentores do poder; sociologicamente, representa um movimento social que dá sustentação à limitação do poder, inviabilizando que os governantes possam fazer prevalecer seus interesses e regras na condução do Estado.
Por outro lado, vale ressaltar que esse movimento sofreu grande influência dos pensamentos iluministas eclodidos nos séculos XVIII e XIX, já que os filósofos daquela época tinham ideais garantistas e de limitação do poder arbitrário do monarca, pois, como é sabido, ainda no século XVIII vigorava a monarquia absolutista como forma de governo, tornando-se necessária, portanto, a criação de cartas escritas conclamando e efetivando os anseios da sociedade.
No que concerne ao Estado brasileiro, o movimento constitucionalista eclodiu paralelamente com as modificações que aqui ocorreram, já que todas as constituições, desde a primeira até a mais recente, refletiram os movimentos sociais de cada época.
A exemplo disso tem-se a Constituição de 1824 que espelhou a fase liberal-centralizadora correspondente ao Império; a Constituição de 1891 que representou a fase republicana preconizada por Rui Barbosa; a Constituição de 1937 que retratou o período de idéias contrárias ao constitucionalismo liberal e, por fim, as Constituições de 1946 e 1988 que refletiram o pensamento liberal-social, ressaltando, entretanto, o período de 1967/1969 em que houve expressivo retrocesso ao modelo centralizador e estatizante.
Sendo assim, conclui-se que constitucionalismo foi um movimento muito importante para a criação da constituição escrita no Brasil e no mundo, consagrando direitos e garantias a todos os cidadãos, sem qualquer distinção, afastando, por conseguinte, os ideais imperiais e centralizadores da época.
2. Conceito de Estado Democrático de Direito
Por inferência do que preconiza o art. 1º da Carta Magna, a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, substituindo a expressão de Estado de Direito consagrado pelas antigas Constituições, no qual todo o poder emana do povo, pelo povo e para o povo, instituindo, destarte, uma fórmula política de Bem-Estar e Justiça Sociais.
Essa evolução do modelo estatal, portanto, se mostrou de extrema relevância para o constitucionalismo brasileiro, sedimentando um governo independente e, sobretudo, representativo dos anseios da sociedade.
Ante a expressão ideológica Constituição Federal, Miguel Reale assevera (1998, p.02):
Pela leitura dos Anais da Constituinte infere-se que não foi julgado bastante dizer-se que somente é legítimo o Estado constituído de conformidade com o Direito e atuante em conformidade com o Direito, porquanto se quis deixar bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída, por exemplo, a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os princípios democrático.
Neste toar, depreende-se que a figura do Estado Democrático de Direito aparece como aprimoramento do Estado Social de Direito, que, por conseguinte, foi resultado da superação histórica do Estado Liberal de Direito.
E, esse Estado de Direito, como afirmado em tópico anterior, apareceu historicamente como Estado Constitucional, com conceito tipicamente liberal, preconizado pelos movimentos constitucionalistas, no qual havia a submissão ao império da lei, à divisão dos poderes, e, ainda, representava os anseios da sociedade como um todo.
Nessa linha, colaciona Oscar Vilhena Vieira (2006, p. 24): “A principal distinção entre a moderna linguagem dos direitos, do século XVIII, e da época medieval é a idéia de universalidade e reciprocidade intrinsecamente ligado aos direitos”.
O Estado de Direito clássico ou também chamado de liberal teve o condão de conclamar os primeiros direitos e garantias do cidadão, bem como renegou todo e qualquer tipo de opressão, representando um combate ferrenho face ao poder incondicional dos monarcas absolutistas, vez que, inspirado na ideologia do liberalismo político e econômico, conteve os abusos do poder central.
Neste prisma, esse modelo de organização social restringia a atuação estatal ao mínimo indispensável a preservar os direitos e garantias asseguradas pela Lei Maior, consoante se extrai dos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 171):
Na esteira destas considerações importa consignar, que esta função defensiva dos direitos fundamentais não implica, na verdade, a exclusão total do Estado, mas, sim, a formalização e limitação de sua intervenção, no sentido de uma vinculação da ingerência por parte dos poderes públicos a determinadas condições e pressupostos de natureza material e procedimental, de tal sorte que a intervenção no âmbito da liberdade pessoal não é vedada de per si, mas, sim, de modo que apenas a ingerência em desconformidade com a Constituição caracteriza uma efetiva agressão.
Estes “novos” Estados possuíam a definição rígida de direitos e garantias individuais, a separação dos poderes com a instituição de órgãos representativos e independentes como forma de especialização funcional, a supremacia da Constituição, vez que esta é fundamento de validade das demais normas do ordenamento jurídico e, por derradeiro, o princípio da legalidade administrativa, como valores primordiais.
Assim, pois, com essa nova tendência de pensamento, o Estado passou a controlar até mesmo a condutas de seus próprios agentes políticos, edificando um Estado de Legalidade, visto que a norma materializa a vontade do corpo social.
Também é verdade, que os pensamentos dos teóricos contratualistas exerceram forte influência no que se refere à supremacia da Lei no Estado Liberal de Direito, consoante se extrai das lições do filósofo Jean-Jacque Rousseau (1999, p. 47):
Quando afirmo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um homem como indivíduo nem uma ação particular. Assim, a lei pode perfeitamente estatuir que haverá privilégios, mas não pode concedê-los nomeadamente a ninguém. Pode criar diversas classes de cidadãos, e até especificar as qualidades que darão direitos a essas classes, porém não poderá nomear os que nela serão admitidos. Pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real; numa palavra, toda função que se refere a um objeto individual não está no âmbito do poder legislativo. Partindo dessa idéia, vê-se com clareza que já não é preciso perguntar a quem compete fazer as leis, visto serem atos da vontade geral, nem se o Príncipe este acima da lei,visto ser membro do Estado, nem se a lei pode ser injusta, porquanto ninguém é injusto para consigo mesmo, nem como se é livre e ao mesmo tempo submisso às lei, já que estas são mera expressões da nossa vontade.
Considera-se, ainda, que entre os pilares deste Estado de Direito, a garantia dos direitos individuais foi a consagração de maior relevância, mesmo porque o próprio Estado garantidor foi tolhido de suprimir ou, até mesmo, diminuir qualquer direito consubstanciado.
Com efeito, algumas das garantias processuais de notável diligência nos dias de hoje foram implementadas nesta época, a exemplo do direito de petição, do “habeas corpus” e do postulado do devido processo legal.
Contudo, observa-se, que não foram garantidos apenas direitos favoráveis à sociedade, posto que a reverso do que almejava naquela oportunidade, o Estado de Direito também legitimou direitos nefastos ao cidadão, uma vez que justificou regimes de governo nos moldes tiranos e ditatoriais, a exemplo da Alemanha, nazista, e da Itália, fascista.
Partindo dessa premissa, pode-se afirmar que o Estado de Direito em alguns momentos, destoou dos anseios da sociedade, pois, ao mesmo tempo em que assegurou os pleitos individuais, também, por vezes, restringiu a vontade popular, não abolindo por completo os resquícios centralizadores do absolutismo.
Importa considerar, então que, muito embora houvesse garantias individuais estabelecidas na Constituição, com o passar dos tempos surgiram no meio social ideais de transformação dos padrões tradicionais, principalmente para limitar os poderes conferidos ao legislador, sem, no entanto, abdicar ao corolário da legalidade.
Nesta perspectiva, com fito de corrigir o abstencionismo e as injustiças sociais oportunizados pelo pensamento liberalista, o Estado de Direito se tornou mais presente, assumindo papel ativo como agente intervencionista, materializando as garantias sociais, deixando de ser um Estado de garantias formais, compatibilizando o bem-estar coletivo, pautado no ideal de igualdade e justiça social, em detrimento do individualismo clássico liberal, tornando-se, assim, o Estado Social de Direito.
Nesse diapasão, com o advento de um modelo evolutivo do Estado liberal, houve compatibilidade entre os ideais capitalistas vigentes naquela época e a consecução do bem coletivo, haja vista que estes Estados Sociais propiciaram avanços positivos no que pertine à proteção do indivíduo frente ao poderio econômico, tendo em vista que fizeram incorporar no bojo de suas Constituições direitos sociais endereçados a igualar as camadas sociais díspares, a exemplo dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Em seus ensinamentos, Paulo Bonavides (1997, p. 395) explica:
A constituição do Estado Social na democracia é a Constituição do conflito, dos conteúdos dinâmicos, do pluralismo, da tensão sempre renovada entre a igualdade e a liberdade; por isso mesmo, a Constituição dos direitos sociais básicos, das normas programáticas, ao contrário, portanto, da Constituição do Estado Liberal, que pretendia ser a Constituição do repouso, do formalismo, da harmonia, da rígida separação de poderes, do divórcio entre o estado e a sociedade.
Desta feita, observa-se que o Estado Social foi fruto de uma sociedade industrial, consubstanciando os novos valores sociais ali produzidos, em contrapartida do Estado Liberal que foi produto da Revolução burguesa.
Neste prisma é que foi efetivamente implementada a tão sonhada legalidade democrática, tendo relevância maior da que possuía no Estado Liberal de Direito, e, além disso, esse Estado Material de Direito amparou direitos e garantias individuais.
Nessa mesma linha de pensamento, Roberto Mendes Mandelli Júnior dispõe acerca da atuação das Constituições programáticas em testilha (2003, p. 29):
Enquanto nos Estados Liberais havia uma predominância dos direitos de liberdade, já nos Estados Sociais estes direitos necessitam conviver com os direitos de igualdade não menos importantes que os primeiros. Com o advento dessa reforma, os novos valores fundamentais produzidos pela sociedade industrial abrangem o pleno emprego, a segurança existência e a conservação da força de trabalho.
Tais direitos corresponderam às reivindicações das classes menos favorecidas, havendo, assim, garantias de cunho assistencial, cultural e social, direitos esses denominados, pela doutrina, de segunda geração.
Salienta-se, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.51):
A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida de não mais evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas sim de propiciar um direito de participar do bem-estar social. Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado.
Ocorre que, embora o Estado Social tenha sido uma evolução do Estado Liberal, aquele, ainda, não foi capaz de assegurar de forma concreta, eficaz e igualitária os direitos e garantias fundamentais, haja vista que a participação popular não saiu do plano meramente ideológico, tornando necessário, portanto, o surgimento de um “novo” modelo estatal assecuratório efetivo de tal direito.
Nessa mesma linha de pensamento afirmou José Afonso da Silva (2003, p. 118):
Conclui-se daí que a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, como vimos, foi a construção do Estado Social de Direito, que, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político.
Assim, com a deficiência do Estado Social de Direito tornou-se imperativo o implemento de outros elementos de organização aptos a consagrar a Justiça Social fustigada, com o objetivo de atender, efetiva e concretamente, os anseios do povo, fato que materializou no momento em que se atribuiu novas dimensões às garantias individuais, bem como aos direitos difusos implementados.
Nesse contexto, é que emana outra forma de Estado, chamado Estado Democrático de Direito, institucionalizado com base em fundamentos e objetivos concretos resguardando, primordialmente, a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos. Nessa linha, Kildare Gonçalves Carvalho contextualiza (2005, p. 375):
Vinculado à idéia de democracia, tem na sua base o princípio da maioria, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade. Entretanto, democracia é palavra que designa não apenas uma forma de governo, mas deve ser entendida também com o regime político, forma de vida e processo.
Ainda, conceituando Estado Democrático, assegura José Afonso Da Silva (2003, p. 120):
É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor da justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir.
Para complementar:
A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.
Os primeiros ideais de Estado Democrático de Direito apareceram nas sociedades européias em meados do século XVIII, como decorrência de três grandes movimentos político-sociais, a Revolução Inglesa (1689), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).
Mas, foi no movimento revolucionário político e social francês que eclodiu o lema de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, reagindo contra a ausência de participação das camadas sociais nos atos e decisões do Estado, haja vista que seria impossível constituir uma sociedade justa que não fosse democrática e livre.
Nessa perspectiva, conceitua-se Estado Democrático de Direito como sendo um modelo estatal evoluído, o qual garante a concretude dos direitos fundamentais do homem; ou seja, não basta ser um Estado de Direito garantidor de leis, unicamente, mas também, um Estado onde haja efetiva participação popular, promovendo justiça social, e, fundado, sobretudo, na dignidade da pessoa humana.
3. Conclusão
Concluindo-se, então, que o conceito de democracia é bem mais abrangente que o de Estado de Direito, pois o primeiro tem como fundamento a realização de valores sociais, tais como igualdade, dignidade e liberdade, já o segundo é simplesmente a nomenclatura jurídica do Estado liberal, concluindo-se que o Estado Democrático é uma evolução do Estado de Direito.
Neste prisma, infere-se, por fim, que o conceito de Estado Democrático de Direito não é simplesmente uma junção formal de Estado Democrático e Estado de Direito, é muito mais que isso, é o amparo da lei pelo princípio da legalidade, bem como o amparo de valores sociais supremos, conferindo ao cidadão instrumentos apropriados para tanto.
4. Bibliografia
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
BONAVIDES, Paulo. Constituição e Democracia. Estudos em Homenagem ao Professor J.J Gomes Canotilho. Editora Malheiros. São Paulo, 2006.
CARVALHO, kildare. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 11ª edição – Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2005.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 20 º ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacque. O contrato social (Tradução Antônio Pádua Danesi).
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2º ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional. 22º ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe, Pós-Graduanda em Direito Público pela Universidade Tiradentes - UNIT
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Silvia Fernanda Carvalho. O Estado Democrático de Direito - corolário do movimento constitucionalista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 set 2011, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25474/o-estado-democratico-de-direito-corolario-do-movimento-constitucionalista. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.