Sumário: 1. Breve ponderação acerca do sobreprincípio ‘segurança jurídica’ ; 2. Segurança jurídica na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional; 3. Súmula Vinculante como instrumento de segurança jurídica ; 4. Modificações jurisprudenciais e o sobreprincípio da segurança jurídica; 5. Coisa julgada e segurança jurídica; a) Edição de nova lei que prevê a mesma hipótese de incidência tributária da lei anterior declarada inconstitucional: é possível? ; b) Supremacia constitucional e coisa julgada: breve análise do parágrafo único, art. 741, CPC .
O presente estudo visa a contribuir para com a compreensão acerca do sobreprincípio da segurança jurídica em matéria tributária à luz dos ensinamentos do Professor Paulo de Barros Carvalho.
Através dos estudos do Professor Paulo de Barros Carvalho, é possível depreender que princípios são fontes que, por serem estruturadas em valores socioculturais positivados pelo legislador, possuem a capacidade de emanar conteúdo significativo hígido à instrução da cadeia normativa. [1]
Desta rápida análise, decorrem três observações preliminares: primeira – os princípios carregam em sua essência carga valorativa social e cultural, de sorte que é um resultante da experiência humana em determinado tempo e espaço; segunda – os princípios que importam ao Direito são os que consubstanciam normas, os que prescrevem condutas, de maneira que apenas aqueles que estão positivados são objeto da análise da ciência jurídica (até por que não se entende - como se entendia outrora - que os princípios fazem parte de conjunto suprapositivo de valores), quer dizer, apenas o que o legislador positivou como princípio pode ser objeto de análise jurídica; terceiro – os princípios são preceitos axiológicos que fundamentam a norma, de maneira que desenvolve o papel de ser vetor de feitura e compreensão da norma.
Particularmente no concerne ao Direito Tributário – este que se revela como alta categoria de direito por repercutir na esfera econômica, social e política -, é facilmente perceptível a intensa carga principiológica que lhe toca.
Neste sentido, há princípios que, dada a sua relevância nas sociedades pós-modernas, são de importância insofismável, como é o caso do princípio da liberdade, da igualdade e da segurança jurídica. Com efeito, tais princípios aportam relevância axiológica poderosa, norteando direta ou indiretamente todas as relações jurídico-tributárias atinentes às sociedades contemporâneas.
Neste mister, o princípio da segurança jurídica denota importância incontestável, haja vista seu papel de assegurar a estabilidade nas relações jurídico-tributárias. É justamente em decorrência da elevada importância do primado da segurança jurídica que o Professor Paulo de Barros Carvalho fala em sobreprincípio: é regramento que está posto no altiplano do ordenamento jurídico, de maneira que dele emanam comandos normativos que serão aplicados direta ou indiretamente em outras normas pertencentes ao ordenamento, até que essas normas sejam aplicadas concretamente, nos casos concretos de relação jurídica tributária. Dito de outra forma, o sobreprincípio é concretamente realizado através de outros princípios.
Nas palavras de Paulo de Barros, “há princípios e sobreprincípios, isto é, normas jurídicas que portam valores importantes e outras que aparecem pela conjunção das primeiras”[2]. Os princípios são a concretização dos sobreprincípios ou dito de maneira inversa, os sobreprincípios são realizados pela atuação dos princípios.
Inequívoca, portanto, a valia do sobreprincípio da segurança jurídica, pois é ele que assegura a especificação do fato e da conduta regrada, bem como a previsibilidade do conteúdo da coatividade normativa. [3]
A segurança jurídica é corolário do Estado Democrático de Direito, sendo instituto conquistado através de lutas sangrentas contra o poder ilimitado do Estado.
Para assegurar a efetividade de tal sobreprincípio, vários princípios foram insculpidos na Magna Carta e no CTN, consubstanciados em um conjunto de número finito, porém indeterminável, podendo-se destacar os que seguem.
O princípio da legalidade, cláusula pétrea, está assegurado no art. 5º, II, da CF e art. 150, I, da Constituição Federal. Através de tais dispositivos, depreende-se que apenas mediante lei (lato sensu) pode ser exigido ou aumentado tributo. De tal sorte, apenas em virtude da vontade do povo (através de seus representantes) haverá instituição ou majoração de tributos:
Art. 5º, II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
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Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
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Art. 9º, CTN. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - instituir ou majorar tributos sem que a lei o estabeleça, ressalvado, quanto à majoração, o disposto nos artigos 21, 26 e 65;
Ao lado do princípio da legalidade, figura o princípio da isonomia, outro pilar da civilização moderna, também é corolário da segurança jurídica. Através de tal princípio, busca-se evitar que soluções discrepantes sejam dadas aos contribuintes. Importante sempre destacar que a isonomia apenas é conseguida através da igualdade entre os iguais e da desigualdade entre os desiguais. Em simples palavras, não é possível almejar a isonomia conferindo mesmo tratamento tributário a um contribuinte que possui maior volume de riqueza e a outro contribuinte que nada possui. Cada situação exige uma posição diferente do Estado e apenas enxergando o indivíduo de forma particular é possível atingir o equilíbrio.
Do mesmo modo, o princípio da isonomia impede que sejam proferidas decisões diferente em face de casos idênticos. Assim, um importante consectário deste princípio é a súmula (será analisada posteriormente), pois impõe tratamento uniforme aos casos iguais.
Tal princípio figura no ordenamento jurídico brasileiro como cláusula pétrea, no art. 5º, caput, bem como no art. 150, II, da CF:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
Já o inciso III do mesmo dispositivo constitucional assegura o princípio da não surpresa e o da irretroatividade (o qual consubstancia o princípio da anterioridade de exercício e da noventena). Tal princípio garante ao contribuinte a previsibilidade da exação realizada pelo ente tributante:
Art. 150, CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
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Art. 9º, CTN. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...] II - cobrar imposto sobre o patrimônio e a renda com base em lei posterior à data inicial do exercício financeiro a que corresponda;
Já o princípio do não confisco, insculpido no art. 150, IV, CF, protege o contribuinte contra atos da Administração tendentes a limitar o direito à propriedade, que é um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito. Certo, a função dos tributos, sob a ótica da sociedade, é a socialização das despesas e dos ganhos com o sujeito passivo, não sendo possível cobrar do particular mais do que a sua capacidade de contribuir:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
Ainda acerca do princípio do não confisco, insta salientar que ele se aplica de acordo com o caso concreto, de sorte que não existe um valor ou uma alíquota fixa que pode ser dita como confiscatória. Apenas o caso concreto e a relação entre o fisco e o contribuinte é que vão dizer quando a arrecadação tributária toma contornos de confiscatória.
Conforme analisado até o momento, a segurança jurídica pode ser concretizada através de vários instrumentos decorrentes do sobreprincípio, como princípios, regras, normas legais e normas jurídicas.
Neste sentido, a jurisprudência, como consolidação de normas judiciais que é, “configura a diretriz, a ‘ratio decidendi’, a resposta idêntica que se dá a mesma questão geral comum – que pode unir os mesmos casos em um mesmo grupo”, de sorte que é, indubitavelmente, uma maneira de garantir a segurança jurídica.
Nesta senda, a súmula vinculante figura como um conjunto de enunciados que consubstanciam o entendimento jurisprudencial firmado pela instância julgadora. Justamente por isso, na súmula se encontra uma das vias de garantir que certo posicionamento relativo à determinada norma será seguido.
Realmente, a súmula é instrumento de concretização do princípio da isonomia, o qual decorre do sobreprincípio da segurança jurídica. De tal sorte, é insofismável reconhecer que a isonomia é, também, uma das formas através das quais se efetiva a segurança jurídica.
Corrobora com o entendimento a ilustre jurista Teresa Arruda Alvin, para quem, “a jurisprudência consolidada garante a certeza e a previsibilidade; garante a igualdade entre os jurisdicionados; evidencia a submissão moral de respeito à sabedoria acumulada pela experiência e constrói uma presunção em prol do acerto do precedente”.[4]
Às voltas da compreensão deste ilustre instrumento que é o sobreprincípio da segurança jurídica, desponta um questionamento copiosamente convidativo: quais as consequências de eventuais modificações jurisprudenciais em matéria tributária?
A dúvida é pertinente, uma vez que as alterações de entendimento e posicionamento jurisprudencial fazem parte da essência da ordem jurisdicional.
Para melhor analisar o tema, pode ser proposta a questão da hipótese de mudança de orientação da Suprema Corte (RE 161.031 e RE 174.478) relativamente à maneira de vislumbrar as reduções de base de cálculo concedidas em matéria de ICMS e a possibilidade ou não de proibir a não-cumulatividade nesses casos.
Na espécie do RE 161.031 foi tratada a situação das empresas que praticavam operações com mercadorias usadas, sendo tributadas pelo ICMS com base de cálculo reduzida, de acordo com legislação do Estado de Minas Gerais. Em função da previsão do Regulamento do ICMS, essas empresas estornavam proporcionalmente o crédito de ICMS relativo às suas operações com base de cálculo reduzida.
Num primeiro momento, foi decidido pela Suprema Corte, no RE 161.031/97, que mesmo nos casos de redução na base de cálculo do ICMS, o princípio da não-cumulatividade poderia ser violado, de sorte que descaberia falar em creditamento quando houvesse a redução da base de cálculo. No caso em tela, ficou assente que não se tratava de isenção parcial – como bem ponderou o Min. Marco Aurélio em seu ilustre voto, mas tão somente de caso de incidência reduzida.
ICMS - PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE - MERCADORIA USADA - BASE DE INCIDÊNCIA MENOR - PROIBIÇÃO DE CRÉDITO - INCONSTITUCIONALIDADE. Conflita com o princípio da não-cumulatividade norma vedadora da compensação do valor recolhido na operação anterior. O fato de ter-se a diminuição valorativa da base de incidência não autoriza, sob o ângulo constitucional, tal proibição. Os preceitos das alíneas "a" e "b" do inciso II do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal somente têm pertinência em caso de isenção ou não-incidência, no que voltadas à totalidade do tributo, institutos inconfundíveis com o benefício fiscal em questão.
(RE 161031, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/1997, DJ 06-06-1997 PP-24881 EMENT VOL-01872-05 PP-00994)
No entanto, quase uma década após o julgamento daquele RE, mais uma vez o STF teve a oportunidade de analisar o tema no RE 174.478/05. Nesse segundo momento, o STF passou a entender a redução da base de cálculo do ICMS como hipótese de isenção fiscal parcial, de sorte a ser possível o aproveitamento do crédito pelo contribuinte.
EMENTA: TRIBUTO. Imposto sobre Circulação de Mercadorias. ICMS. Créditos relativos à entrada de insumos usados em industrialização de produtos cujas saídas foram realizadas com redução da base de cálculo. Caso de isenção fiscal parcial. Previsão de estorno proporcional. Art. 41, inc. IV, da Lei estadual nº 6.374/89, e art. 32, inc. II, do Convênio ICMS nº 66/88. Constitucionalidade reconhecida. Segurança denegada. Improvimento ao recurso. Aplicação do art. 155, § 2º, inc. II, letra "b", da CF. Alegação de mudança da orientação da Corte sobre os institutos da redução da base de cálculo e da isenção parcial. Distinção irrelevante segundo a nova postura jurisprudencial. Acórdão carente de vício lógico. Embargos de declaração rejeitados. O Supremo Tribunal Federal entrou a aproximar as figuras da redução da base de cálculo do ICMS e da isenção parcial, a ponto de as equiparar, na interpretação do art. 155, § 2º, II, "b", da Constituição da República.
(RE 174478 ED, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2008, DJe-097 DIVULG 29-05-2008 PUBLIC 30-05-2008 EMENT VOL-02321-02 PP-00243)
Situação equivalente ocorreu no caso da presunção de crédito de IPI relativamente a operações sujeitas à alíquota zero. A mutação jurisprudencial foi constatada pela alteração do entendimento firmado no RE 350.446-1/PR, em que se conferiu ao contribuinte o direito ao crédito presumido do IPI nas aquisições de matéria-prima ou insumos tributado à alíquota zero, como se fossem isenções. Contrapondo-se a este julgado está o RE 370.682-9/SC, em que se negou ao contribuinte o direito de creditar o IPI nas operações tributadas à alíquota zero.
A mudança jurisprudencial, não pode por em risco a segurança jurídica, de sorte que os atos-fatos ocorridos no passado devem ser protegidos. Nas palavras de Misabel Abreu,
(c) o momento da vigência da jurisprudência inovadora que altera a jurisprudência anterior deverá ser o marco decisivo. Todos aqueles atos-fatos pretéritos (porque ocorridos antes do início da vigência da nova jurisprudência), sob a vigência do precedente superado, deverão ser protegidos. Resulta daí que nem os fatos, propriamente ditos, nem os efeitos que deles decorrem poderão se atingidos pela mudança de orientação, peça jurisprudência inovadora. A modulação dos efeitos da decisão nova deveria ser a regra, tal a força do princípio da irretroatividade entre nós.[5]
Destarte, os efeitos da decisão proferida devem ser modulados de sorte a garantir a segurança jurídicas nas relações jurídico-tributárias estabelecidas.
Outro consectário do princípio da segurança jurídica é a coisa julgada, da qual decorre - com o trânsito em julgado, seus efeitos imutabilidade e indiscutibilidade. A coisa julgada mostra-se como fundamento básico sob o qual se assenta a segurança nas relações jurídicas, na medida em que garante ao jurisdicionado a certeza de que a decisão proferida será concretamente efetivada.
Nada obstante, intrigante questionamento aflige a sociedade jurídica: é possível uma sentença transitada em julgado quando fundamentada em tese ou dispositivo posteriormente declarado inconstitucional ser desconstituída? Ou, posta a dúvida nas palavras do jurista Thiago Vinícios Vieira[6]: “Será que a intangibilidade da coisa julgada deve se quedar diante da desconformidade com a Carta Magna?”.
Para ilustrar a indagação ora proposta, é possível trazer à baila o caso da Lei Federal 7.689/88, instituidora da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido. À época de sua edição, a lei foi objeto de inúmeros mandados de segurança e ações declaratórias visando à declaração de inexistência de relação jurídico tributária entre o fisco e o contribuinte, com fulcro no argumento de que a CSLL teria o mesmo fato gerador do Imposto de Renda, fato que violaria frontalmente o art. 154, I da Constituição Federal. Os juízes e tribunais brasileiros acolheram a tese defendida pelas empresas e afastaram a aplicação da CSLL.
Acerca dessas decisões proferidas no sentido de afastar a cobrança do CSLL, o STJ tinha posicionamento de que a decisão apenas poderia ser aplicada para o período de tempo relativo ao qual foi proferida, de maneira que não atingiria as futuras prestações. Em outras palavras, a sentença transitada em julgado apenas teria a capacidade de fulminar aquela cobrança relativa ao período impugnado, não atingindo as futuras (mesmo sendo cobrança de caráter continuativo).
O STJ negava o caráter de extensividade no tempo dessas decisões, sob o argumento de que se o fato material (a hipótese de incidência tributária) fosse modificada pelo legislador, não poderiam mais ser proferidas sentenças declaratórias de inexistência de relação tributária. Aplicavam-se a miúde os termos do enunciado 239 da Súmula do STF: “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.”
Inobstante, em oportunidade do exame do REsp 731.250, a Min. Eliana Calmon ponderou a necessidade de exame dos limites temporais dos efeitos da coisa julgada, passando a verificar os fatos e fundamentos jurídicos trazidos pela parte e o conteúdo das modificações normativas decorrentes da decisão do Judiciário: a depender de tais fatores, estender-se-ia ou não, para o futuro, a decisão definitiva.
A ilustre Ministra obtemperou a mitigação do enunciado 239 da Súmula do STF, indicando que a sua aplicação não pode ser indistinta. Observou também que, nos casos das decisões que afastavam a incidência do CSLL, a coisa julgada tinha o condão de produzir os seus efeitos no tempo futuro, haja vista ter sido invalidado justamente o critério material da hipótese de incidência do tributo, qual seja, o fato gerador.
Seria diferente, por exemplo, se o problema atacado pelos contribuintes fosse tão somente a ilegitimidade formal da Lei Federal 7.689, isso por que a lei Ordinária não é o instrumento adequado para a instituição da CSLL, mas a Lei Complementar. Se fosse apenas esse o caso, bastaria que o legislador editasse uma Lei Complementar nos exatos termos da Lei Federal e tudo estaria resolvido. No caso em tela, contudo, o erro é material, atingindo o âmago da hipótese de incidência da CSLL: o erro está no fato gerador.
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – ALCANCE DA SÚMULA 239/STF – COISA JULGADA: VIOLAÇÃO – ART. 471, I DO CPC NÃO CONTRARIADO.
1. A Súmula 239/STF, segundo a qual "decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos posteriores", aplica-se tão-somente no plano do direito tributário formal porque são independentes os lançamentos em cada exercício financeiro. Não se aplica, entretanto, se a decisão tratou da relação de direito material, declarando a inexistência de relação jurídico-tributária.
2. A coisa julgada afastando a cobrança do tributo produz efeitos até que sobrevenha legislação a estabelecer nova relação jurídico-tributária.
3. Hipótese dos autos em que a decisão transitada em julgado afastou a cobrança da contribuição social das Leis 7.689/88 e 7.787/89 por inconstitucionalidade (ofensa aos arts. 146, III, 154, I, 165, § 5º, III, 195, §§ 4º e 6º, todos da CF/88).
4. As Leis 7.856/89 e 8.034/90, a LC 70/91 e as Leis 8.383/91 e 8.541/92 apenas modificaram a alíquota e a base de cálculo da contribuição instituída pela Lei 7.689/88, ou dispuseram sobre a forma de pagamento, alterações que não criaram nova relação jurídico-tributária. Por isso, está impedido o Fisco cobrar a exação relativamente aos exercícios de 1991 e 1992 em respeito à coisa julgada material.
5. Violação ao art. 471, I do CPC que se afasta.
6. Recurso especial improvido.
(REsp 731250/PE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJ 30/04/2007, p. 301) (grifo nosso)
O acórdão do STJ foi impugnado em sede do Recurso Extraordinário 597.678 apresentado pela PFN, ao qual foi negado seguimento.
Portanto, o entendimento que prevalece é o da possibilidade de mitigação do enunciado 239 da Súmula do STF, haja vista a afronta ao ponto material da hipótese de incidência da CSLL. Em decorrência, abre-se a possibilidade de expansão dos efeitos da decisão para o futuro e não apenas no que toca ao período da exação, impugnado pelo contribuinte.
A referida decisão proferida no REsp 731.250/PE, conduz ao entendimento de que o que se analisa é a materialidade da exação, o ponto que toca a hipótese de incidência tributária. De sorte que, mesmo sendo editada nova lei dispondo sobre a mesma relação jurídico tributária impugnada na lei anterior, não seria atingido o contribuinte, haja vista os o pedido e do comando judicial prolatado possuírem essência de continuidade.
Com efeito, seria irracional admitir que uma decisão do Poder Judiciário que afasta a aplicação de uma lei por razão de inconstitucionalidade, fosse liquidada através da edição de nova lei pelo Poder Judiciário. Tal situação implicaria em verdadeira blasfêmia da segurança jurídica das decisões proferidas pelo Judiciário.
Assim, afora não se falar mais em restrição no tempo das decisões que afastam a incidência da CSLL, também ficou assente que os efeitos da decisão vão além dos limites da decisão transitada em julgado. Por tais razões, a edição de nova lei nos exatos termos da lei federal anterior pode ser impugnada através do instrumento da coisa julgada, garantindo-se a segurança jurídica das decisões proferidas pelo Poder Judiciário.
A declaração de inconstitucionalidade de determinada norma prepondera sobre os efeitos da coisa julgada?
A resposta ao presente questionamento perpassa pela ponderação acerca da supremacia da constituição face ao princípio da coisa julgada, sendo necessário realizar uma ponderação política acerca do mal menor.
A possibilidade de flexibilização da coisa julgada foi positivada através da MP 2.180-35 e da Lei 11.232/2005, que deu ao art. 741do CPC o parágrafo único:
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005)
I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia; (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005)
II - inexigibilidade do título;
III - ilegitimidade das partes;
IV - cumulação indevida de execuções;
V – excesso de execução; (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005)
VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença; (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005)
Vll - incompetência do juízo da execução, bem como suspeição ou impedimento do juiz.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. (Redação pela Lei nº 11.232, de 2005)
É certo que o parágrafo único do art. 741 do CPC aporta um instrumento capaz de mitigar o princípio da coisa julgada ao possibilitar o desfazimento do decisium em casos de constatação de inconstitucionalidade.
Assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada pode, sim, ser relativizado face à declaração de inconstitucionalidade, consoante já fixou entendimento o STJ:
PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA SUPOSTAMENTE INCONSTITUCIONAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ART. 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. EXEGESE.
INAPLICABILIDADE ÀS SENTENÇAS FUNDADAS EM LEI OU ATOS NORMATIVOS DECLARADOS INCONSTITUCIONAIS POR TRIBUNAL LOCAL FRENTE A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior, sob a égide dos recursos repetitivos, art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008, no REsp 1.189.619/PE, de relatoria do Min. Castro Meira, DJe 2.9.2010, firmou o posicionamento de que a norma do art. 741, parágrafo único, do CPC, deve ser interpretada restritivamente, porque excepciona o princípio da imutabilidade da coisa julgada, sendo necessário que a inconstitucionalidade tenha sido declarada em precedente do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou difuso.
(REsp 1218464/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2010, DJe 14/02/2011)
Sendo desaplicada a coisa julgada por razão de inconstitucionalidade, o julgador deverá analisar o caso concreto e verificar o que seria menos danoso à sociedade, havendo, inclusive, a possibilidade de modulação de efeitos da sentença que declara a inconstitucionalidade de uma lei. Assim, na hipótese de ser retirada do mundo legal uma norma inconstitucional, deve ser aplicada a norma que era aplicada anteriormente à matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ou diretamente a norma constitucional (dotada de proporcionalidade e razoabilidade pelo aplicador).
É importante destacar que a previsão do art. 741, parágrafo único, CPC, aplica-se apenas às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade, não havendo extensão do dispositivo aos casos de declaração de constitucionalidade pelo STF posterior à decisão que tornou inexigível o título sob o fundamento de inconstitucionalidade.
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 15ª Ed., 2009.
CAMANO, Fernanda Donnabella. Os limites objetivos e “temporais” da coisa julgada em ação declaratória de inexistência do conceito jurídico da incidência da norma tributária. Dissertação de Mestrado apresentada à PUC-SP, 2003.
CARVALHO, Aurora Tomazini. Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. Doutorado em Direito, PUC/SP, 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 23ª Ed., 2010.
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[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: DP, nº 16, maio-agosto, 2007.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: DP, nº 16, maio-agosto, 2007, pg. 84.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Editora Noeses, 2008, pg. 264.
[4] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e Ação Rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª Ed., 2008, pg. 210-211.
[5] DERZI, Misabel Abreu Machado. Ibidem.
Advogada, Professora de Direito Tributário e Gestão da Regulação na UFRPE, Mestranda em Direito do Estado, Regulação e Tributação Indutora pela UFPE, Pós-Grduação em Direito Tributário pelo IBET e Constituicional pela Universidade Anhagura, Bacharela em Direito pela UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Fabiana Augusta de Araújo. Sobreprincípio da segurança jurídica em matéria tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 out 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25775/sobreprincipio-da-seguranca-juridica-em-materia-tributaria. Acesso em: 22 nov 2024.
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