INTRODUÇÃO
A Constituição, pela sua natureza, há sempre que ser utilizada como uma espécie de filtro (filtragem constitucional) a vedar qualquer disposição ou decisão que atente contra os interesses maiores da sociedade. Nesse aspecto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da Funcionalização do Direito deverão atuar como normas norteadoras na aplicação e interpretação do direito. Em outra perspectiva, a atual Constituição elevou a propriedade à categoria de Direito Constitucional. Portanto, tendo em conta que a posse pode ser tida como a concretização do Direito de Propriedade, é que pretende-se estabelecer alguns parâmetros para a aplicação da função social da posse a partir de alguns julgados, com ênfase na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, e do Superior Tribunal de Justiça - STJ.
De acordo com a enciclopédia jurídica Soibelman, função é a “atividade de um órgão ou serviço”. Agregada à sociedade, pode-se inferir que “função social” poderia ser definida como “um conjunto de atividades realizadas por uma determinada instituição de forma a beneficiar a sociedade ou coletividade”. É daí, que se pode falar em “função social dos contratos”, “função social da propriedade”, “função social da família”, “função social da posse”, “função social do direito”, etc.
Adam Smith, em sua obra “A Riqueza das Nações”, publicada em 1776, esclarece, ao citar Hutcheson, que:
(...)
Quando a população era rarefeita, o País era fértil e o clima ameno, não havia muita necessidade de se aperfeiçoarem regras sobre a propriedade, mas na situação de hoje “o trabalho de todos é claramente necessário para manter a humanidade”, e os homens devem ser motivados ao trabalho pelo interesse próprio e pelo amor à família. Se não lhes forem assegurados os frutos do trabalho humano, “não se tem nenhuma outra motivação para trabalhar senão o amor genérico à espécie, o qual geralmente é muito mais fraco do que as afeições mais íntimas que dedicamos aos nossos amigos e parentes, para não mencionar a oposição que, nesse caso, seria apresentada pela maioria dos indivíduos egoístas”. Numa sociedade comunista não se trabalha de boa vontade[1].
Percebe-se a preocupação que já existia naquele período com o trabalho conjunto que beneficiasse a todos como forma de “manter a humanidade”. Existia claramente uma preocupação com o objetivo social do trabalho e da propriedade, denominada hoje de “função social”. A Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942 – já admitia a função social ao estabelecer, em seu art. 5º que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. (grifo acrescentado).
Nos dias de hoje, a demanda por recursos para a sociedade excede em muito os tempos de outrora, motivo pelo qual a observância da função social de todos os atos da vida humana deverá ser observada com mais afinco de maneira a ser utilizada de forma a se ter um maior aproveitamento no uso dos recursos naturais. Questões como uso adequado da propriedade, do meio ambiente, da produção de alimentos são temas recorrentes na mídia com a intenção de preservação da natureza para esta e para as gerações futuras.
É nessa linha de entendimento que a Constituição Federal reservou um capítulo dedicado ao meio ambiente, além de estabelecer em seu art. 186 que “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
Paulo Lôbo, ao discorrer sobre a constitucionalização do direito civil, ensina que esse ramo perdeu sua natureza individualista e que:
A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação[2].
Essas linhas sugerem que governo e sociedade iniciem um trabalho de conscientização no sentido de direcionar o povo a estabelecer métodos de trabalho de modo a garantir que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (art. 255, CF)
Quanto ao estudo da “função social” na área jurídica, Bobbio já chamava a atenção, na década de 70, do século XX, para a forma de como vinha sendo realizado o estudo do direito. Dizia ele que o ensino do direito, até então estava direcionado à sua estrutura, mas, prossegue ele, deveria haver uma mudança de foco, no qual em vez de se ensinar “o que é o direito”, deveria se ensinar “para que serve o direito”, ou seja deveria haver uma mudança de perspectiva. Essas ideias, ele traz em seu livro “Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito”.
É nessa linha de pensamento que o autor inicia o capítulo “Em Direção a uma Teoria Funcional do Direito”, tecendo comentários a respeito das teorias estrutural e funcionalista do direito:
Se aplicarmos à teoria do direito a distinção entre abordagem estruturalista e abordagem funcionalista, da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferenciar e classificar as suas teorias, não resta dúvida de que, no estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos cinquenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda. Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar com certa tranquilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber “como o direito é feito” do que “para que o direito serve”[3].
Essa é uma tendência relativamente nova no que diz respeito às legislações do Estado moderno. O Estado além da função clássica de garantir a paz social também possui como objetivo promovê-lo, por meio do direito promocional. Nas palavras de Bobbio, “(...), essa função é exercida com a promessa de uma vantagem (de natureza econômica) a uma ação desejada, e não com a ameaça de um mal a uma ação indesejada. É exercida, pois, pelo uso cada vez mais frequente do expediente das sanções positivas”[4]. Ao analisar os ordenamentos jurídicos dos Estados modernos, ele constata que “o termo ‘promover’ suplantou ou colocou de lado o termo ‘garantir’”[5]. Esse autor esclarece que no passado a “(...) função do direito era limitada à ameaça ou à aplicação da sanção: era o ‘Estado castigador’ de Thomas Paine. Entrementes, o Estado transformara-se também em pagador e em promotor”. E, mais adiante, elucidando acerca dessas diferenças, diz que:
Para nos expressarmos novamente com frases sintéticas, essa distinção corresponde não mais à diferença entre fazer (pelo Estado) e mandar fazer (aos indivíduos), mas entre fazer e deixar fazer. Ainda mais claramente do que a distinção precedente entre administração direta e indireta, essa distinção deixa completamente de fora o campo do direito promocional, o qual, como vimos, se insere na categoria daquelas relações entre Estado e economia nas quais o Estado nem abandona completamente o desenvolvimento das atividades econômicas aos indivíduos nem as assume para si mesmo, mas intervém com várias medidas de encorajamento dirigidas aos indivíduos. Se queremos individualizar e delimitar com precisão o espaço ocupado pelo direito promocional, será necessário ter presente não tanto a distinção entre fazer e mandar fazer, nem aquela entre fazer e deixar fazer, mas a distinção entre deixar fazer e mandar fazer. Há dois caminhos pelos quais o Estado pode limitar a esfera do deixar fazer: obrigar a fazer (ou a não fazer) ações que, do contrário, seriam permitidas - e este é o caminho da restrição coativa da liberdade de agir -, ou, então, estimular a fazer (ou a não fazer) ações que, não obstante isto, continuam sendo ações permitidas - e este é o modo pelo qual se exerce a função promocional [6].
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, seguindo esse entendimento, afirmam que:
Atualmente, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos. Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano[7].
A Constituição Federal e vários diplomas legais têm exigido a observância da “função social”, a exemplo do Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece, em seu art. 39: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei”. É nesta linha de pensamento que Alexandre de Moraes esclarece que:
O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, sendo que, por expressa previsão constitucional, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor[8].
Em relação à função social da propriedade, André Ramos Tavares explica que: “durante a época mais recente da História da Humanidade, constata-se que o direito de propriedade assumiu uma conotação que se tem designado como social, em oposição à característica essencialmente individualista de que desfrutara outrora”[9].
Seguindo a linha defendida por Bobbio, percebe-se que, com os movimentos socialistas atuais, a propriedade, juntamente com outros institutos do direito, tem experimentado um aspecto muito mais funcional que propriamente um direito de uso. Portanto a propriedade, antes de ser um direito que pode ser reivindicado contra todos, como fora outrora, haverá de ser observada a sua função social como um direito pertencente a todos enquanto sociedade.
Logicamente tais premissas não são um paradoxo. O titular proprietário continua com todos os direitos de possuir, usar, dispor e reivindicar; mas já não mais de forma tão absoluta. Já não pode mais exercer o use abutendi. É esse o grande e novo sentido de propriedade no mundo contemporâneo. Essas características são válidas para uma vasta gama de situações no direito moderno, como estabelecem o Código Civil e a Constituição Federal da República. Decorre da função social uma transcendência pelo fato de os mesmos irem além dos seus caracteres físicos, ou seja, a função social da propriedade, ou qualquer outra função social, é externa ao próprio instituto.
Percebe-se que, nesses aspectos, por meio de seu poder de polícia, o Estado também contribui para a função social da propriedade, pois, caso contrário, reinaria a insegurança, e a propriedade, em vez de servir aos interesses de seu proprietário e da coletividade, estaria ao alvedrio de pessoas inescrupulosas em detrimento dos possuidores ou proprietários de boa-fé. Também, por meio desse poder de polícia, e da sociedade por intermédio de seus cidadãos e das organizações não governamentais, deve-se fiscalizar as ações das empresas e dos particulares de maneira a coibir abusos e deperdícios no uso daqueles bens que são imprescindíveis à sociedade. Em termos de função social, já se fala inclusive da “função social da água”, esse bem considerado inesgotável por muito tempo assinala para uma futura redução, principalmente devido ao uso desordenado pelo homem em seu uso e pela agressão ao meio ambiente que tornou-se uma constante nos dias atuais.
A função social também pode ser utilizada como elemento capaz de atenuar as diferenças sociais. Torna-se necessário que haja uma luta de todos pela justiça, pois enquanto existirem fome, falta de moradia e condições mínimas que estabeleçam a dignidade do ser humano não se pode falar em justiça social, essa entendida no moderno conceito de Justiça em Rawls, para quem:
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para os outros; As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: a) Consideradas como vantagens para todos dentro dos limites do razoável; b) Vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos[10].
O Estado, a despeito do movimento neoliberal, deverá ser mais intervencionista e distribuir riquezas de maneira a melhorar a situação daqueles que vivem na penúria. Dessa forma, o Estado tem se utilizado de variadas formas no sentido de impor a realização da função social como, por exemplo, lançado mão de diferenciação na cobrança de impostos aos imóveis que não estejam cumprindo o seu objetivo social de maneira a trazer benefícios para toda a coletividade.
Nessa linha de pensamento, cabe citar a Súmula 668 do STF ao declarar que:
É INCONSTITUCIONAL A LEI MUNICIPAL QUE TENHA ESTABELECIDO, ANTES DA EMENDA CONSTITUCIONAL 29/2000, ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS PARA O IPTU, SALVO SE DESTINADA A ASSEGURAR O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA[11].
Ademais, sociólogos e filósofos têm sugerido por meio de estudo e verificações práticas que o deslocamento de uma propriedade para exercer a função social, além de não trazer prejuízos, acarreta em ganho para todos e uma concretização do bem-estar social de maneira a diminuir as diferenças sociais. A função social no direito atua no sentido de causar uma distribuição de renda mais justa de maneira equânime. Nesse sentido, John Rawls salienta que:
Apesar de a distribuição de riqueza e renda não precisar ser igual, ela deve ser vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos.
Todos os valores sociais - liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima - devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos[12].
Rawls defende a que a estrutura de produção deva fundamentar-se no “Princípio da Eficiência”, como forma de estabelecimento de oportunidades democráticas embasadas no Princípio da Igualdade tendente a diminuir as diferenças sociais. “A injustiça, portanto, se constitui simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos”[13]. Desigualdades essas que podem ser mitigadas a partir do conceito da “eficiência de Pareto”[14], que defende a ideia de que se a situação de um determinado grupo na sociedade pode melhorar sem que isto cause prejuízo a alguém ou a outro grupo, então esta sociedade não alcançou o “ótimo de Pareto”[15].
Dworkin diz o “ótimo de Pareto” ou “eficiência de Pareto”, seria “uma distribuição de recursos é eficiente segundo Pareto se não se puder fazer nenhuma mudança nessa distribuição que não deixe ninguém em pior situação e, pelo menos, uma pessoa em melhor situação”[16]. Percebe-se o caráter essencialmente social dessa teoria que pode ser aplicada perfeitamente a propriedade que não esteja exercendo a sua função social.
“A origem da posse é historicamente justificada no poder físico sobre as coisas e na necessidade do homem se apropriar de bens”[17]. Apesar da superioridade racional do ser humano perante os outros seres vivos do planeta, ele está sujeito a intempéries de toda a ordem. Diante desse contexto, é que o homem precisa de abrigo, de proteção. A história relata que tem conhecimento de que os homens habitavam as cavernas, como forma de se proteger contra os infortúnios, trovões, tempestades, terremotos e animais ferozes, nas quais eram apenas algumas das ameaças existentes. O instinto de sobrevivência é que os compelia a buscar proteção.
No princípio não existiam lugares fixos para fixação da moradia, estabelecia-se na terra de acordo com a facilidade do momento. Enquanto a terra fosse fértil, ali o homem ficava com a sua família. Além de seu sustento, o homem ainda tinha de enfrentar animais e proteger-se das catástrofes. Entretanto tudo isso não passa de conjecturas, pois como assevera Jean-Philippe Lévy: “É sempre perigoso falar dos ‘primitivos’. À falta de testemunho direto, podemos talvez aproximarmo-nos das suas ideias através de certas passagens de autores antigos e pelo que ainda hoje se verifica com certos povos que permaneceram afastados das grandes correntes de civilização”[18]. O ser humano estabelecia-se em algum lugar, utilizando-se da força bruta para proteger seu espaço. O tipo de poder que se adquiria sobre esse limitado ponto de fixação destinado à sobrevivência era caracterizado pela posse, que é o domínio de fato sobre a coisa, como definiam os romanos[19].
A palavra posse deriva do latim “possessio”, provém de potis, radical de potestas, poder; e sessio, da mesma origem de sedere, significa estar firme, assentado. Indica, portanto, um poder que se prende a uma coisa. “É sentar sobre a coisa”[20] que caracteriza a posse. Consiste essa em uma relação de pessoa e coisa, como uma relação de fato; nas palavras Ihering é “exteriorização da propriedade, que o direito deve proteger”[21]. Por isso, o possuidor, diferentemente do proprietário, é sempre visível ante os olhos da sociedade.
Fustel de Coulanges assevera que a origem da posse está ligada diretamente à religião. Em épocas remotas, os homens, diante da impossibilidade de explicar os fenômenos naturais, inclusive a própria morte, colocavam as crenças como elemento justificante à todas as suas ações. A propriedade e a posse surgiram como forma decorrente do culto aos mortos que deveria ser um ato exclusivo e privativo dos parentes. Dessa forma, ao serem sepultados, o local tornava-se sagrado para aquela família e a área tornava-se particular e nenhuma pessoa estranha àquela família poderia tocar no túmulo dos mortos. Na realidade, tanto o túmulo como grande área em volta tornava-se propriedade daquela família. Os mortos eram cultuados como deuses, atribuíam-se poderes divinos aos familiares. Fustel de Coulanges afirmava que:
Os mortos eram considerados entes sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que pudessem imaginar; chamavam-nos de bons, santos, bem-aventurados. Tinham por eles toda a veneração que o homem pode ter pela divindade a quem ama e teme. No pensar deles, cada morto era um deus[22] .
Os parentes sepultavam seus defuntos na extensão de terra delimitada para a casa onde residiam, e seus mortos só deveriam ser cultuados pela sua família, “o banquete fúnebre, devia realizar-se no próprio local onde os mortos repousavam”[23]. Do mesmo modo, ao lar não era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura. A família definitivamente se apossava daquelas terras como consequência da posse de seus antepassados.
Essas terras eram protegidas de maneira a separar as famílias. O lar precisava ser protegido, e como a família deveria continuar em torno de seus deuses e de seus mortos, edificavam sua casa e seu altar e lá cultuavam o “fogo sagrado”[24]. As famílias protegiam o solo onde estavam enterrados seus ancestrais, que passou a ser considerado como propriedade dos mortos e da família.
Como consequência, tem-se que o altar e a sepultura não poderiam ser deslocados. Aos homens não havia outra solução, se não construir suas moradas em torno do local onde habitavam os mortos. A propriedade vinha como decorrência da posse, conforme salienta o Coulanges: “Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente, a família tomou posse do solo. (...), o lar havia ensinado aos homens a construir casas. A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses; ela é o templo que os guarda”[25].
Diferentemente do que hoje ocorre, “não foram as leis, mas a religião, que primeiramente garantiu o direito de propriedade”[26]. Essas posses também possuíam um caráter que excluíam a todos os outros – erga omnes, segundo Coulanges, “Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob esse pequeno outeiro, e ninguém, a não ser da família, deve tentar se meter com eles”[27].
Na realidade, outras teorias existem acerca da origem da posse, como as que surgiram em Roma, na qual Londres da Nóbrega Vandick, citado por Antônio Carlos Wolkmer, esclarece que quando:
Os patrícios se constituíram no segmento social hegemônico da sociedade romana antiga, pois (...) somente eles gozavam de todos os direitos civis e políticos, como, por exemplo, o ius suffragi, que consistia na faculdade de votar nos comícios; o ius honorarium, que era o direito de exercer os cargos públicos; o ius ocupandi agrum publicum, isto é, o direito de posse das terras conquistadas; o direito de adquirir a propriedade de acordo com os processos romanos (ius commerci); o direito de contrair casamento (ius conubi). No entanto, ao lado dessas prerrogativas era imposta aos patrícios a obrigação de pagar os impostos (ius tributi), como também a de prestar o serviço militar (ius militae)[28]. (grifo acrescentado)
Mais adiante, afirma Wolkmer, ao citar Valcir Gassen, na apresentação da primeira edição de sua obra, “que a posse da terra nasce das relações concretas entre os homens, sendo que, na trajetória da propriedade, esta sempre foi o mais importante “meio de produção” da riqueza”[29].
A posse sempre foi um instituto conturbado, tanto pela suas origens quanto por seus conceitos, de maneira a existirem inúmeras teorias que tentam definir o que seja posse.
Antes de iniciar-se acerca do conceito de posse, surge o questionamento sobre a distinção do que é posse e do que é propriedade, pois é comum a confusão entre os dois institutos. Como relatava Ihering em sua “Teoria Simplificada da Posse: “Um dos traços pelos quais o jurista se distingue de qualquer outro, é a diferença que ele estabelece entre as noções de posse e de propriedade. Na linguagem comum empregam-se frequentemente estas expressões como equivalentes”. Os romanos já distinguiam claramente a posse da propriedade. “Nihil commune habet proprietas cum possessione”[30].
A confusão geralmente é estabelecida porquanto:
Em geral, o possuidor da coisa é, ao mesmo tempo, seu proprietário; ordinariamente, o proprietário é o mesmo possuidor, e quando subsistir esta relação normal, é inútil estabelecer uma distinção. Mas, desde o momento em que a propriedade e a posse se separam, o contraste surge imediatamente, e com uma tal evidência, que não pode passar despercebido, nem mesmo àqueles que não são juristas [31].
Ademais a posse, sem a propriedade, na maioria dos casos, é temporária. O proprietário, quando exercer a posse direta, tem a posse permanente e plena.
Outra controvérsia suscitada em torno da posse é saber se ela é fato ou direito. Duas teorias, denominadas de Teoria Subjetiva da Posse, de Savigny, e Teoria Objetiva da Posse, de Jhering, são as que prevalecem hoje no estudo doutrinário sobre o tema.
Para Savigny, a posse é um fato, que é igual ao corpus (elemento objetivo) mais o animus (elemento subjetivo). Corpus é a presença ou relação direta do homem com a coisa, caracterizando o possuidor que é aquele que “pode sentar sobre a coisa, segurá-la, detê-la, conservá-la em seu poder”[32]. “Animus é o elemento subjetivo da posse, é a intenção de ter a coisa como se fosse dono”. Entretanto, para Jhering, bastava o corpus, pois ele era suficiente para caracterizar a posse.
A doutrina prevalecente é a objetiva de Jhering, adotada pelo vigente Código Civil, que considera a posse um direito, bastando, para caracterizá-la, o corpus. É o que se infere do art. 1.196 do Código Civil. Sendo um direito, a posse é tutelada por instrumentos próprios como: “Admitida a concepção de Ihering, a posse vem a ser o exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao da propriedade ou de outro direito real. Não se exige, portanto, que o possuidor tenha animus domini”[33]. E, por ser um direito, recebe a tutela estatal.
Abstraindo-se das estéreis discussões acerca das diferenças entre posse e propriedade, urge estabelecer a finalidade da posse como forma de proteção aos direitos humanos. Como salientam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves:
Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum;
Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas a reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano[34].
Discorrer sobra a função social da posse traz algumas dificuldades de ordem prática, pelo motivo de a mesma não vir disciplinada diretamente em nenhum diploma legal. Infere-se a sua existência como decorrente da função social da propriedade.
A Constituição Federal em três passagens dispõe sobre a função social da propriedade. No caput do art. 5º é assegurado o direito de propriedade. No inciso XXII garante-se o direito de propriedade, mas, logo em seguida, no inciso XXIII, estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”. No art. 170 tem-se que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade”. O § 2º do art. 182 dispõe que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
No entanto, a partir de alguns preceitos constitucionais vislumbra-se que a função social da posse está implicitamente disposta no texto da Carta Magna como, por exemplo, quando a mesma estabelece que “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade” (art. 191, CF). Surge aí a função social da posse em detrimento da função social da propriedade. Se o proprietário não utilizar a sua propriedade com fins de beneficiar a coletividade e algum possuidor o fizer, este poderá adquiri-la após os trâmites definidos em lei.
Infere-se dos dispositivos citados que a função social da posse possui duas características mutuamente excludentes. De um lado protege o proprietário e por outro pune o proprietário desidioso que não se utiliza adequadamente de suas posses e termina por perdê-la para quem a utiliza de forma a propiciar-lhe benefícios para a toda coletividade. A função social da posse está implicitamente estabelecida na Constituição Federal.
Ana Rita Vieira Albuquerque corrobora com esse entendimento ao declarar que:
A Constituição dispõe acerca da função social da propriedade, verdadeira norma principiológica que obriga o proprietário na medida em que integra o próprio conteúdo do conceito de propriedade. A Constituição, através do seu art. 6º, também amplia e dá relevo aos direitos sociais, às políticas de habitação, de saúde, de segurança social, de trabalho, de educação e cultura, entre outras, garantindo o conteúdo mínimo dessas políticas, ainda que entendidas como diretivas da legislação, direito a prestações ou, no entender de Vieira de Andrade, pretensões jurídicas.
Desta forma, os estudos acerca da função social da posse têm sua base teórica não apenas na compreensão do Direito Privado conforme traçado em nosso Código Civil, mas sobretudo através da análise dos preceitos e valores estabelecidos na Constituição da República. [35]. (grifo da autora)
O proprietário não pode mais se valer do direito absoluto que lhe era conferido por dispositivos legais de outrora. Hoje ele tem de destinar um objetivo à propriedade, sob pena de outro fazer. Nas palavras de Cristiano Farias e Nelson Rosenvald, “é necessário aprender a conviver com prováveis hipóteses de colisão entre os princípios da função social da propriedade e da função social da posse. Essa tensão será solucionada pela lei ou pelo magistrado, na vertente do princípio da proporcionalidade”[36].
Ana Rita, justificando acerca da existência e necessidade de uma função social da posse, esclarece que:
Os valores fundamentais e os objetivos do Estado Brasileiro previstos na Constituição de 1988 visam sobretudo elevar o conceito de cidadania, através da valorização da pessoa humana. Evidentemente que tais valores projetam-se para todos os domínios jurídicos, inclusive para o direito privado, como vimos, e, consequentemente, informam o instituto da posse, evidenciando ainda mais o seu aspecto social imanente. Justamente em um sistema jurídico que tem por fim a pessoa humana, daí resultando a natureza teleológica dos argumentos sistemáticos, não se pode deixar de ter por incluída implicitamente, como princípio constitucional positivado, a função social da posse. [37].
Ademais, como salienta Ihering: “A posse sem um proveito possível seria a mais inútil das coisas do mundo; seu valor consiste unicamente na função indicada: é um meio para alcançar um fim”[38]. Trata-se a posse, portanto, em um instrumento para alcançar a verdadeira função social da propriedade, pois essa sem aquela não existe[39].
Digno de nota é a Apelação Cível - AC 13197-GO, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que teve como Relator o Desembargador Federal João Batista Moreira, em julgamento no dia 15 de outubro de 2008, no qual são suspensos os efeitos de hipoteca entre Construtora e o Agente Financeiro em prol da função social da posse dos atuais ocupantes do imóvel, in verbis:
Ementa
1. De acordo com o enunciado da Súmula 308 do STJ, “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
2. Merece reforma a sentença em que se julgou improcedente o pedido de terceiros possuidores que adquiram o imóvel mediante contrato particular de cessão de direitos, sob o fundamento de que não se lhes aplica a Súmula 308 do STJ.
3. Não se pode afastar a boa-fé dos autores, considerando-se que quando da celebração do contrato de cessão de direitos, em 7.2.2003, já havia acórdão deste Tribunal, em sede de embargos de terceiro opostos pelo primeiro comprador, desconstituindo a penhora que recaía sobre o imóvel.
4. Nos termos do Enunciado 303 do CEJ/CJF, “considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”. [40].
Vale salientar que o STF não admitia embargos de terceiro à penhora e a promessa de compra e venda se não estivessem registrado em cartório, pois tratam-se de direitos reais – conforme Súmula 621 do STF, de 17 de outubro de 1984: “NÃO ENSEJA EMBARGOS DE TERCEIRO À PENHORA A PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITA NO REGISTRO DE IMÓVEIS”[41]. No entanto o STJ superou esse entendimento com a Súmula 84 de 02 de julho de 1993, in verbis: “É ADMISSÍVEL A OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO FUNDADOS EM ALEGAÇÃO DE POSSE ADVINDA DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL, AINDA QUE DESPROVIDO DO REGISTRO”[42].
Verifica-se que o entendimento do STF é anterior a atual Constituição, no qual foi superado pelo entendimento posterior do STJ, que privilegiou a posse em conformidade com sua função social. Os embargos de terceiro podem ser utilizadas no caso de esbulho judicial, quando um terceiro que não foi parte em um processo ache-se prejudicado, conforme o disposto no art. 1.046 do Código de Processo Civil: “Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, sequestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos”.
Vale ressaltar que o Código Civil estabelece a prioridade à função social da posse, mesmo que ela tenha decorrido de ato ilícito, é o que se depreende da dicção do art. 1.208: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Assim, se uma pessoa, utilizando-se de violência, invade a propriedade de alguém e esse queda-se inerte, o esbulhador terá seus direitos de possuidor tutelado pelo Estado após a cessação da violência. Situações também válidas para o esbulho feito às escuras ou clandestinamente. Legitima também esse entendimento o art. 1.224, ao dispor que “só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido”.
É evidente que a jurisprudência dos tribunais e a doutrina já consolidaram o entendimento de que o direito do possuidor que esteja dando uma destinação social à sua posse prevalece sobre o direito do real proprietário desidioso.
As cláusulas gerais, ou normas de conteúdo aberto, são normas dotadas de grande teor axiológico que remetem o aplicador a um juízo de valor na apreciação do caso concreto. Esses preceitos, ao contrário das regras ditas casuísticas, não trazem em seu bojo a enumeração dos casos que seriam enquadradas na norma. Dessa forma, as cláusulas gerais da função social da posse dizem respeito àquelas normas de conteúdo aberto que disciplinem o instituto da posse em sua correlação com os interesses sociais.
Corroborando esse entendimento, tem-se que, de acordo com Caroline Dias Andriotti e Guilherme Calmon Nogueira da Gama, que:
A expressão função social deve ser tida como cláusula geral, permitindo ao jurista uma reflexão e construção de acordo com os valores éticos, econômicos e sociais. Não pode o intérprete e aplicador do direito se manter apático diante das transformações ocorridas no seio social, mormente quando esse comando é determinado pelo próprio legislador constituinte[43].
Ao analisar os 35 artigos que o Código Civil reservou ao estudo da posse, percebe-se que a maioria utiliza-se da técnica de legislar por meio de cláusulas gerais ou normas de conteúdo aberto, técnica essa perfeitamente necessária, visto que os casos relativos às situações possessórias, em sua maioria trazidos ao Judiciário, necessitam de valoração do julgador baseada em fundamentos de eticidade e justiça.
Dessa forma, quando se fala sobre a função social da posse, implicitamente entende-se estar-se falando sobre cláusula geral de função social da posse.
Ademais, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam:
Exemplo de cláusula geral relacionado imediatamente com a função social da posse é encontrado no § 4º do art. 1.228 do Código Civil: “O proprietário também poderá ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.
A intenção do legislador, ao elaborar tal dispositivo legal, foi, de acordo com Sílvio de Salvo Venosa, “a tentativa de regularizar tantas e tantas ocupações urbanas e rurais neste país, que já se apresentam como definitivas e consumadas”[44].
É também cláusula geral de função social da posse o disposto no art. 1.201 do Código Civil, que estabelece: “é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”.
Observa-se nesses dois últimos exemplos, que o legislador, propositadamente, deixou as normas com seus conteúdos excessivamente abertos, remetendo aos julgadores a tarefa de valorar cada situação no caso concreto de maneira a preencher as lacunas das normas em questão. Ao exporem seus juízos de valor, os magistrados deverão atentar se as partes utilizaram-se da “boa-fé” e em que medida; o que seria considerável número de pessoas, e se elas realizaram obras e serviços considerados de interesse social e econômico relevante. Como subsumir o fato à lei, sem empregar um juízo de valor? E acerca do vício? Essas e outras questões fazem parte do dia-a-dia daqueles que utilizam das cláusulas gerais para resolver situações litigiosas com alta carga de elemento axiológico. Os dispositivos legais não trazem, a exemplo das normas casuísticas, a abrangência de todos os casos na composição do litígio em tela.
A posse como um poder que se tem sobre a coisa é protegida pelo sistema jurídico brasileiro, embora não se tenha certeza da propriedade, pois ao se almejar a paz social, torna-se imprescindível o estado de aparência. Dessa forma, se o possuidor que fosse esbulhado de sua posse tivesse “que provar sempre, e a cada momento sua propriedade ou outro direito real na pretensão de reaquisição do bem, a prestação jurisdicional tardaria e instaurar-se-ia inquietação social”[45], estabelecendo-se o caos social.
Nesse sentido, a posse torna-se independente da propriedade e “passa a ser vislumbrada como uma situação fática merecedora de tutela, que decorre da necessidade de proteção à pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações jurídicas”[46].
Diante disso é que o Código de Processo Civil veda em seu art. 923 que “na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação de reconhecimento do domínio”. É nesse sentido que Cristiano Farias e Nelson Rosenvald explicam que:
SAVIGNY justificava a tutela possessória, em respeito à paz social e à negação à violência, pela interdição ao exercício arbitrário das próprias razões e tutela da pessoa do possuidor. Para o notável mestre, proteger-se-ia o possuidor por não se permitir a abrupta alteração de uma situação de fato social e economicamente consolidada, pela prática de ato ilícito em afronta a garantias fundamentais[47].
Com a finalidade de proteger a posse, o CPC elenca três tipos de ações. No art. 926 está disposto que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho” e, logo no artigo seguinte, mais uma vez estabelece que o possuidor não necessita provar a propriedade e sim a posse, conforme inciso I do art. 927. Igualmente é o disposto que se tem no § 2o do art. 1.210 do Código Civil: “Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”.
Os dois primeiros meios de defesa da posse estão elencados no art. 926, que são a ação de manutenção de posse e a ação de reintegração de posse. A primeira cabe, quando da turbação e a segunda no caso de esbulho. A outra ação é a do interdito proibitório que cabe, segundo a dicção do art. 932, quando “o possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito”. Nesse caso o que existe é ameaça, a posse ainda não foi molestada, existe o receio no qual o possuidor pode-se valer dos interditos para precaver-se de um futuro esbulho ou turbação.
O Código Civil também dispõe sobre esse entendimento ao declarar, em seu art. 1.210, que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”.
Ademais, o § 1º do mesmo artigo autoriza ao possuidor turbado, ou esbulhado, a utilizar-se de suas próprias forças nos atos de defesa de sua posse, contanto que faça logo e não utilize além do necessário à manutenção, ou à restituição da posse.
Essas são as formas que o possuidor tem contra aqueles que ameacem sua posse. É o desforço imediato ou a legítima defesa, nos casos de turbação ou esbulho. Entretanto, existem outras formas de defesa que servem também como aquisição da propriedade contra aqueles que não destinaram uma função social às suas propriedades.
Dentre eles, pode-se destacar a usucapião, a expropriação e a concessão de direito real de uso.
A palavra usucapião tem sua origem na junção das expressões latinas usus (uso) acrescido de capio (tomar), pelo que se pode traduzir como tomar pelo uso (Enciclopédia Soibelman). Ainda, de acordo com o Dicionário Jurídico Brasileiro, usucapião é o “modo de conseguir bem imóvel ou móvel, através da posse pacífica, por apenas certo tempo. No conceito de Clóvis Beviláqua, ‘é a aquisição do domínio pela posse prolongada’”[48].
É um instituto antigo, pois já vinha consagrado na Lei das Doze Tábuas na qual trazia variadas regras acerca da usucapião, entre as quais se pode destacar: “As terras serão adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse, as coisas móveis depois de um ano”[49].
A usucapião, que é forma originária de aquisição[50] de propriedade, e se caracteriza pelo uso contínuo e por determinadas condições de terras particulares.
O instituto da usucapião também recai sobre bens móveis, como se depreende do art. 1.260 do Código Civil, no entanto esse estudo limita-se a posse e a usucapião de bens imóveis.
A usucapião pode ser de três espécies: a ordinária, a extraordinária e a especial.
A usucapião ordinária está disciplinada no art. 1.242 que dispõe que a propriedade do imóvel pode ser adquirida por aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Podendo, no entanto, esse prazo cair para cinco anos “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”, conforme dicção do parágrafo único do mesmo artigo.
Verifica-se a essencialidade do caráter da boa-fé e do justo título, a fim de que o possuidor adquira a posse, além do prazo dos dez anos de posse mansa e pacífica. Outro benefício trazido pelo Código é a possibilidade de poder-se acrescentar o tempo da posse de seus antecessores (accessio possessionis) para fins de contagem para a usucapião desde que todas sejam contínuas, pacíficas e possuam justo título e de boa-fé de maneira a colher os benefícios da usucapião ordinária.
Tem-se também a usucapião extraordinária, disciplinada pelo art. 1.238 do Código Civil, que exige, para sua implementação, a posse de quinze anos ininterrupta e sem oposição, e exercida com o animus domini, de forma contínua, mansa e pacífica. Nessa situação, dispensa-se o justo título e a boa-fé, mas o tempo é dilatado para quinze anos. Entendendo-se como justa a posse que não seja violenta, clandestina ou precária e de boa-fé, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa, sendo que o justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. (artigos 1.200 - 1.201, Código Civil)
Entretanto, o parágrafo único desse dispositivo dispõe que o prazo poderá ser reduzido para dez anos, se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Diante dessas melhorias o requisito temporal cairia de quinze para dez anos.
Interessante observar que, não obstante o Código Civil não exigir o animus domini para a caracterização do possuidor, esse elemento subjetivo é exigido para a concretização dos requisitos da usucapião (herança teórica de Savigny). É nesse sentido que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmarem existir uma:
Ao conceituar a posse da mesma maneira que o seu antecessor, o Código Civil de 2002 filia-se à teoria objetiva, repetindo a nítida concessão à teoria subjetiva no tocante à usucapião como modo aquisitivo da propriedade que demanda o animus domini de SAVIGNY.
Apesar de não haver o requisito do animus domini para a caracterização do possuidor, ele é exigido para a realização dos direitos da usucapião.
Há que se ressaltar que por ser o decurso de tempo requisito para o preenchimento dos direitos à usucapião, tem-se que a mesma deve-se sujeitar às regras em absoluta consonância temporal. Se antes de decorrido o tempo em sua inteireza o proprietário ajuizar ação reivindicatória, os prazos serão interrompidos ou suspensos, conforme a dicção do art. 1.244. “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”. Também ao que se refere às pessoas contra as quais pode correr a prescrição, nos moldes estabelecidos pelos artigos 197 a 199 do Código Civil. É o entendimento do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul - TJRS, na Apelação Cível que teve como Relatora Elaine Harzheim Macedo:
EMENTA: USUCAPIÃO ORDINÁRIO. JUSTO TÍTULO NÃO CONFIGURADO. LAPSO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA NÃO ALCANÇADO. Contrato particular de promessa de compra e venda, firmado por quem não é o proprietário do imóvel e nem seu representante legal, não caracteriza justo título a reduzir sensivelmente o prazo de aquisição de domínio base no exercício de posse ad usucapionem. Outrossim, o lapso da prescrição aquisitiva ordinária não restou alcançado. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70025901992, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 13/11/2008)[51].
A Constituição Federal traz outro tipo de usucapião, que é a usucapião especial ou usucapião constitucional, com vistas a sedimentar a função social da propriedade. É o que está disposto no art. 183: “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. Essa modalidade de usucapião, segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “é uma das mais claras demonstrações do princípio da função social da propriedade (...), pois homenageia aqueles que com animus domini, residem e/ou trabalham no imóvel em regime familiar, reduzindo os períodos aquisitivos da usucapião para cinco anos”[52].
Esse tipo de usucapião divide-se, conforme Carlos Roberto Gonçalves, em “usucapião especial rural, também denominada pro labore, e usucapião especial urbana, também conhecida como pró-moradia”[53].
A usucapião especial rural, ou pro labore, tem como finalidade manter o homem no campo, evitando-se as emigrações para os grandes centros urbanos que decorrem das deficiências encontradas nas áreas rurais. Assim sendo, é que a Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981, que dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, em seu art. 12 estabelece que: “Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, possuir como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área rural contínua, não excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de justo título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis”. No entanto, apesar de o citado artigo mencionar 25 (vinte e cinco) hectares, a Constituição Federal, no caput do art. 191, ampliou essa área para 50 (cinquenta) hectares.
Carlos Roberto Gonçalves explica que a:
Usucapião especial rural não se contenta com a simples posse. O seu objetivo é a fixação do homem no campo, exigindo ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar o usucapiente. Constitui a consagração do princípio ruralista de que deve ser dono da terra rural quem a tiver frutificado com o seu suor, tendo nela a sua morada e a de sua família. Tais requisitos impedem que a pessoa jurídica requeira usucapião com base no dispositivo legal em apreço porque ela não tem família nem morada. Tal modalidade não exige, todavia, justo título nem boa-fé[54].
É de bom alvitre lembrar que aos requisitos dispostos na Constituição, há de se adicionar os outros requisitos dispostos em lei, como a prova de que ocupa as terras com o ânimo de dono. Decisão do STF é bastante esclarecedora nesse sentido, quando afirma que:
3. Mera permissão ou tolerância não enseja a declaração da prescrição aquisitiva, faltando ao postulante prova da posse com ‘animus domini’ requisito indispensável na ação de usucapião.
(...)
No tocante ao usucapião especial, os autores não comprovaram os demais requisitos. Ainda que a área seja produtiva e inferior a 50ha, sirva de moradia aos autores, e não sejam eles proprietários de outros imóveis, não provaram o principal requisito, no caso, que detêm a posse com ânimo de donos[55].
A aquisição de propriedade por meio da usucapião especial urbana tem sido utilizada naqueles casos em que o proprietário abandona o imóvel e deixa de cobrar os alugueres estabelecidos no contrato de locação. Se essa situação perdura para além dos cinco anos, o locatório pode utilizar do instituto para a aquisição do imóvel. Jurisprudência do STJ já julgou neste sentido:
(...)
3 - De fato, o conjunto probatório acostado aos autos demonstra que o apelado efetivamente abandonou o imóvel, bem como o contrato de locação, deixando a coisa suscetível de ser usucapida e favorecendo o exercício da alegada posse mansa e pacífica pela apelante, que deixou de pagar os alugueres, com manifesto animus domini ou animus rem sibi habendi (ânimo de ter a coisa como sua).
(...)
5 - O abandono do imóvel pelo apelado, notadamente diante da ausência de cobrança dos alugueres por um longo período, deixa de qualificar o não pagamento destes como simples mora e torna possível sua qualificação como ato que exterioriza o animus domini.
6 - A partir do momento em que o apelado renunciou ao contrato de locação, não dando continuidade à relação locatícia, abandonando o imóvel e deixando de cobrar os alugueres, a apelante passou a ter a coisa como sua, com ânimo de dona, ininterruptamente e sem oposição, transmudou-se a posse para ad usucapionem, apta, portanto, a deflagrar a aquisição da propriedade pela usucapião, desde que observados os requisitos objetivos do tempo e tamanho da área usucapida.
(...)
8 - Diante disso, considerando que a apelante passou a ter a coisa como sua a partir de fevereiro de 1997, quando do ajuizamento da presente ação de despejo, em novembro de 2002, já havia transcorrido prazo superior a cinco anos.
(...)
11 - O instituto da usucapião especial urbana tem por objetivo, como sabido, a efetivação do direito fundamental à moradia, tendo em vista o fato de o possuidor ou ocupante dar à propriedade a exigida função social. Recurso Provido[56].
Carlos Roberto Gonçalves explica que para a utilização da usucapião especial não é necessário o justo título nem a boa-fé, e explica que por se tratar “de inovação trazida pela Carta de 1988, (...) não se incluem no preceito constitucional as posses anteriores. O prazo de cinco anos só começou a contar, para os interessados, a partir da vigência da atual Constituição”[57]. Pois, não fosse dessa forma, a lei teria um caráter retroativo para as posses anteriores, o que ocasionaria prejuízos aos proprietários pela vigência de normas posteriores aos fatos.
Quanto à usucapião urbana individual e coletiva, está prevista na Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto das Cidades. Tal dispositivo veio para regular os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Como se sabe, a população rural tende a migrar para as grandes cidades, o que exigia a elaboração de um diploma que estabelecesse normas de política urbana de forma a assegurar o bem-estar social com a regulação do uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, conforme o disposto no art. 2º da referida norma.
Conforme Regis Fernandes de Oliveira, citado por Carlos Roberto Gonçalves, a necessidade dessa lei adveio:
Das ocupações irregulares nos grandes conglomerados urbanos. A invasão de áreas, a falta de fiscalização, a invasão de mananciais, o medo da perda da posse por famílias de baixa renda, a falta de um ‘papel’ que lhes dê legitimidade sobre a posse, a venda de ‘propriedades’, barracos e construções malfeitas, tudo a gerar um conflito social sem precedentes... O que mais querem os moradores é a regularização da ocupação. Para tanto, agora, a lei veio a trazer alguns instrumentos de impacto urbano que podem envolver a legitimação da posse, pacificando a sociedade e dando às grandes cidades condições de desenvolvimento saudável[58].
Em parte, esse instituto tenta colocar um freio no crescimento desordenado das grandes cidades, bem como regulamentar as ocupações de terras e favorecer o bem-estar social, além de conceder uma destinação digna a muitos imóveis que se acham desocupados nos grandes centros urbanos. Assim sendo, nessa Lei estão dispostos dois tipos de usucapião que são a urbana individual e a urbana coletiva, que fazem parte dos instrumentos utilizados pelo Estatuto da Cidade para alcançar sua finalidade em promover o bem-estar social.
É indispensável observar que, a despeito da concessão de usucapião aos que preencherem os requisitos legais, os tribunais vêm observando com o máximo rigor sobre tais requisitos de forma a não estabelecer-se a usucapião indevidamente. É o caso de processo de apelação cível de 19 de março de 2008, do TJRS que teve como Relator Pedro Celso Dal Pra, verbi gratia:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO. AUSÊNCIA DE PROVA DA UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL PARA MORADIA. A posse própria do pretendente á usucapião especial urbana e/ou sua família no imóvel é requisito imprescindível para acolhimento do seu pedido, por força da regra contida no art. 183 da Constituição da República. Inviabilidade, assim, pretender somar a posse do proprietário anterior, ao escopo de implementar o requisito temporal. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70022144687, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 28/02/2008)[59].
A propriedade, outrora considerada como direito absoluto, poderá ter seus direitos relativizados ou mesmo extintos, se seu legítimo dono não cumprir com os requisitos mínimos estabelecidos em lei. Afora a perda pela usucapião, o proprietário ainda corre o risco de ficar sem suas terras por outras formas estabelecidas em lei, como na expropriação. No entanto, na expropriação ou desapropriação indireta haverá uma indenização como forma de reparar o prejuízo sofrido pelo proprietário. É nessa linha que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicam que “a desapropriação se explica pelo fato do proprietário ser privado de seu direito subjetivo mediante indenização, ao contrário da aquisição pela usucapião que não comporta qualquer tipo de compensação ao antigo titular”[60].
Na mesma linha, Carlos Roberto Gonçalves afirma que a expropriação ou “desapropriação é instituto de direito público, fundado no direito constitucional e regulado pelo direito administrativo, mas com reflexo no direito civil, por determinar a perda de propriedade do imóvel, de modo unilateral, com a ressalva da prévia e justa indenização”[61].
Fundamentado no texto constitucional, o Código Civil dispõe sobre a expropriação em seu art. 1.275, ao afirmar que se pode perder a propriedade por desapropriação (inciso V), e no § 3º do art. 1.228, no qual dispõe que “o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”. Existe também outra forma de desapropriação que é aquela estabelecida no § 4º, no qual estabelece que se “o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”. A justa indenização em dinheiro ao proprietário será feita na forma do § 5º.
Infere-se do inciso XXIV do art. 5º da Carta Magna que as desapropriações podem acontecer por necessidade ou utilidade pública, e/ou por interesse social.
Dessa forma, pode-se ter a expropriação por interesse social quando uma área é ocupada por um considerável número de pessoas, o que viabiliza ao Judiciário conceder a propriedade a essas pessoas com a justa indenização ao proprietário, o que caracteriza uma desapropriação judicial por não ter sido dada nem pelo Legislativo nem pelo Executivo. Há que se convir que essa indenização nem sempre é feita em dinheiro, podendo também ser realizada com Títulos da Dívida Agrária - TDA, pagáveis em vinte anos.
É o que dispõe o art. 184 e seus parágrafos: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. A ação de desapropriação, pela União, será executada após o decreto que declarar o imóvel como de interesse social (§ 2º).
Apesar de a indenização pelo não cumprimento da função social ser em TDA, as benfeitorias úteis e necessárias deverão ser indenizadas em dinheiro. Como forma de estimular e facilitar as transferências de propriedade, haverá isenção dos impostos federais, estaduais e municipais.
Em Recurso Especial do Rio Grande do Sul de 19 de novembro de 2008, o Relator Ministro LUIZ FUX, assim se pronunciou acerca de desapropriação para fins de reforma agrária:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. EXECUÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DE PRECATÓRIO POR TDA's. POSSIBILIDADE.
1. A desapropriação para o fim de reforma agrária compete à União, tendo como fundamento o interesse social, e como objeto o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
2. A expropriação perfaz-se mediante prévia e justa indenização em Títulos da Dívida Agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 (vinte) anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei, no que pertine à terra nua, sendo certo que as benfeitorias úteis e necessárias devem ser indenizadas em dinheiro, via de regra (artigo 184, § 1.º, da CF/1988).
3. A interpretação teleológica da norma constitucional conduz ao entendimento de que as benfeitorias citadas são indenizadas em dinheiro, porquanto essa reparação faz-se de forma mais breve em razão da distinção entre a perda de propriedade adquirida outrora e de benfeitorias empreendidas a posteriori, por isso que razoável entrever-se regra mater que tem como destinatário favorecido o expropriado.
(...)
5. Interpretação constitucional à luz do cânone da razoabilidade e da ponderação de bens, técnica escorreita de interpretação pós-positivista das normas constitucionais na visão de Dworkin e Alexy [62].
O STJ também é do entendimento que a desapropriação indireta serve para solucionar conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social, conforme Recurso Especial nº 628588/SP de 01/08/2005, que teve como Relator para o Acórdão, o Ministro Teori Albino Zavascki; eis o entendimento:
A chamada “desapropriação indireta” é construção pretoriana criada para dirimir conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social das propriedades, nas hipóteses em que a Administração ocupa propriedade privada, sem observância de prévio processo de desapropriação, para implantar obra ou serviço público.
Hely Lopes Meirelles define a concessão de uso como “o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo a sua destinação específica”[63], ou seja, é um contrato intuitu personae ou personalíssimo, pois a utilização é exclusiva do particular, sinalagmático pois é bilateral, executado entre a Administração Pública e o particular, poderá ser oneroso ou gratuito e é também comutativo pois os contratantes conhecem ab initio suas respectivas obrigações.
A concessão de direito real de uso foi introduzida no art. 1.225 do Código Civil, por meio da Lei nº 11.481, de 2007, sendo lhe atribuída o privilégio de direito real por estar inserida dentro do rol taxativo do art. 1.225:
Mediante a concessão de direito real de uso, a administração pública pode ceder o uso de bens de seu domínio para o particular, de forma remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, sob a forma de direito real resolúvel, para o desenvolvimento e implementação de atividades socioeconômicas que sejam relevantes para o interesse público. É o que se depreende do art. 7º, caput, do Decreto-lei nº 271, de 28.2.1967, conjugado com o disposto no art. 17, § 2º, da Lei nº 8.666, de 21.6.199 [64].
O art. 17 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, Lei da Licitações e Contratos para a Administração Pública, dispõe que: “A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas: f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública; h) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis de uso comercial de âmbito local com área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) e inseridos no âmbito de programas de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública.
Ainda de acordo com o mesmo artigo do dispositivo legal ora comentado, pode haver rescisão automática da concessão, dispensada notificação, nos casos em que haja declaração de utilidade, ou necessidade pública ou interesse social. Também a alienação aos legítimos possuidores diretos ou, na falta deles, ao Poder Público, de imóveis para fins residenciais construídos em núcleos urbanos anexos a usinas hidrelétricas, desde que considerados dispensáveis na fase de operação dessas unidades e não integrem a categoria de bens reversíveis ao final da concessão.
É dentro desses aspectos que o Poder Público realiza a função social destinando bens de sua propriedade para o uso particular.
Devido a sua grande extensão territorial, no Brasil é constante a disputa pela titularidade de posse e de propriedade. Essas questões, quando não são resolvidas no âmbito privado por meio da auto composição, são levadas ao Judiciário, a fim de que ele cumpra sua função constitucional e estabeleça a quem e em que medida cabe o direito. Assim sendo, serão postos em tela dois casos em que se discutiam a tutela possessória em detrimento do direito de propriedade. O primeiro envolve o Poder Público no Distrito Federal com a litigância sobre a concessão de terras na Área de Proteção Ambiental da Bacia de São Bartolomeu; o segundo ocorreu na área que ficou conhecida como a Favela do Pullman em São Paulo.
A Bacia de São Bartolomeu foi transformada em Área de Proteção Ambiental – APA – por meio da Lei nº 9.262, de 12 de janeiro de 1996, que em seu art. 1º estabelece que o Poder Executivo do Distrito Federal ficará responsável pela administração e fiscalização da referida área criada pelo Decreto nº 88.940, de 7 de novembro de 1983.
Surgidas como forma de proteger o meio ambiente, essas áreas podem ser definidas como:
Uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou privadas. [65].
Os rios, como fontes de água e alimentos, desempenham papel essencial para a vida humana, que, em muitos casos, necessitam da intervenção do Poder Público para sua proteção. Seguindo as tendências de amparo ao meio ambiente é que o governo decidiu por proteger essa bacia de água contra devastações e poluições causadas pelo homem.
A Bacia de São Bartolomeu faz parte do grande manancial de água do Distrito Federal e:
Ocupa quase um terço do território do DF. Quase 7% dela está tomada de condomínios irregulares. Na região, há parcelamentos de baixa renda como o Arapoanga e Vale do Amanhecer, em Planaltina, e condomínios de classe média e alta, no Jardim Botânico e no Grande Colorado. As restrições analisadas pelo levantamento da Universidade Católica foram construções em áreas de preservação permanente e áreas proibidas para parcelamentos com base no Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot). A exploração indevida das águas subterrâneas, com excesso de poços perfurados, e o lançamentos de esgotos sem tratamento em mananciais são os principais problemas ecológicos na bacia[66].
Percebe-se, assim, o risco que essa ocupação desordenada representa para o abastecimento, atual e futuro, de água da região do Distrito Federal, pois “o crescimento rápido e desordenado de condomínios irregulares sobre a Bacia do São Bartolomeu causa danos ambientais e pode comprometer até mesmo o abastecimento de água no Distrito Federal”[67].
Mas, a despeito de todos esses problemas, a comunidade que residia próximo à Bacia do São Bartolomeu reivindicava por uma regularização de suas terras, e clamava por uma solução por parte das autoridades políticas.
As áreas de proteção ambiental exercem uma função social na medida em que protegem o meio ambiente, tornando-o mais adequado a uma vida saudável e digna, conforme o exigido e disposto na Constituição e na legislação pertinente. Neste sentido o STJ tem julgado, conforme o Recurso Especial nº 821083/MG, por meio do Relator Ministro LUIZ FUX, em 25/03/2008, verbi gratia: “A Constituição Federal consagra em seu art. 186 que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, seguindo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, a requisitos certos, entre os quais o de “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”.
A partir da promulgação da Lei nº 9.262, que autorizou a venda das áreas localizadas na Bacia do Rio São Bartolomeu, a Procuradoria Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a norma na parte relacionada ao art. 3º e seus parágrafos. A ADIN foi julgada improcedente:
Na ementa do Acórdão tem-se um panorama completo de seu conteúdo:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 30, CAPUT E §§, DA LEI N. 9.262, DE 12 DE JANEIRO DE 1.996, DO DISTRITO FEDERAL. VENDA DE ÁREAS PÚBLICAS PASSÍVEIS DE SE TORNAREM URBANAS. TERRENOS LOCALIZADOS NOS LIMITES DA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL - APA DA BACIA DO RIO SÃO BARTOLOMEU. PROCESSO DE PARCELAMENTO RECONHECIDO PELA AUTORIDADE PÚBLICA. VENDAS INDIVIDUAIS. AFASTAMENTO DOS PROCEDIMENTOS EXIGIDOS NA LEI N. 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1.993. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO. INEXIGIBILIDADE E DISPENSA DE LICITAÇÃO. INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INOCORRÊNCIA.
1. A dispensa de licitação em geral é definida no artigo 24, da Lei n. 8.666/93; especificadamente - nos casos de alienação, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis construídos e destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social, por órgãos ou entidades da administração pública - no seu artigo 17, inciso I, alínea “f”. 2. 2. Há, no caso dos autos, inviabilidade de competição, do que decorre a inexigibilidade de licitação (art. 25 da lei). O loteamento há de ser regularizado mediante a venda do lote àquele que o estiver ocupando. Consubstancia hipótese de inexigibilidade, artigo 25. [68].
Conforme notícias colhida no portal da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP, tem-se que:
A venda direta de lotes em condomínios irregulares do Distrito Federal foi garantida pelo Supremo Tribunal Federal em 18 de abril. Por 7 votos a 3, os ministros julgaram improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade que questionava a lei federal 9.262/96. A legislação garante aos moradores de condomínios na APA do São Bartolomeu o direito de comprar os lotes ocupados irregularmente sem licitação. A área de proteção ambiental tem 126 condomínios, com 180 mil moradores, a maioria de classe média.
Mas o julgamento do STF abriu precedente para que os parcelamentos também fossem beneficiados. A lei 9.626 é de autoria do então deputado José Roberto Arruda e do deputado Augusto Carvalho. A legislação determina que os lotes sejam avaliados e vendidos aos ocupantes pelo preço da terra nua, ou seja, sem levar em consideração as benfeitorias realizadas pelos moradores, como rede de iluminação e pavimentação de ruas. Mas a legalização depende ainda de muitos fatores. Só podem ser vendidos os lotes de parcelamentos que já têm licenças ambientais aprovadas e projeto urbanístico analisado pelo GDF[69].
Apesar de todos os obstáculos e críticas em relação à venda de terras da Área de Bacia de São Bartolomeu, principalmente devido a dispensa de licitação, a fixação dos possuidores naquela área já havia se transformado numa situação de fato, que deveria ter sido coibida no seu início, e se não foi tomada nenhuma providencia, a priori, dúvidas não há de que houve uma concretização da função social da posse, na medida em que, o Estado, ao perceber a sua omissão quanto a devida fiscalização, e até mesmo com sua anuência tácita, conferida por meio da aplicação de recursos como energia elétrica, transporte urbano e toda infraestrutura necessária. O desfecho deste caso, com o julgamento da ADIN configurou a maior expressão da função social da posse.
O caso da Favela do Pullman foi outro fato exemplar de cumprimento da função social da posse em detrimento daqueles que não agiram com a diligência necessária à proteção de suas propriedades e, como consequência, sofreram as sanções impostas pela lei, tudo em prol da função social por meio da regularização fundiária.
Conforme notícias publicadas no portal do STJ:
A área era composta por nove terrenos no Loteamento Vila Andrade, em Santo Amaro, na capital paulista, que passaram por processo de favelização na área conhecida como “Favela do Pullman”, próxima ao Shopping Sul. Com a decisão, os atuais moradores têm reconhecido o direito à posse das áreas. O loteamento foi criado em 1955. Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), a ocupação da favela teve origem há mais de 20 anos e está consolidada, tendo infra-estrutura fornecida pelo Poder Público, como água, iluminação pública e domiciliar, obras de alvenaria e algum comércio, pobre, mas indicador de uma vida urbana estável[70].
É digno de nota que, apesar do abandono da área por parte dos proprietários e pelo longo decurso de tempo, “a primeira instância da Justiça paulista havia considerado a ação procedente, determinando a desocupação da área pelos réus, sem direito à retenção por benfeitorias e tendo que pagar indenização pela ocupação”[71].
No entanto, após recurso ao TJSP a sentença foi reformada de forma que “O TJ paulista reformou a decisão para dar provimento à apelação dos réus e inverter os ônus de sucumbência, concluindo pela extinção da propriedade, ante o seu desaparecimento, em concreto”[72].
Após a reforma da sentença pelo Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP, os proprietários originais das terras recorreram para o STJ:
Sustentando que o acórdão deu provimento à apelação por razões não suscitadas nos autos: a prevalência da função social da terra e o perecimento do direito de propriedade. Ainda, afirmaram, a decisão importaria em “verdadeira expropriação de bens particulares”. Os réus contra-argumentaram sustentando que ao juiz cabe aplicar o direito aos fatos expostos, e não apenas deliberar segundo a fundamentação apresentada pelas partes. Para o ministro Aldir Passarinho Junior, relator, o loteamento nunca chegou a ser efetivado. Dez anos após sua criação, era um “completo matagal, sem qualquer equipamento urbano, portanto inteiramente indefinidos, no plano concreto, os lotes dos autores”. A favelização, afirma, iniciou-se logo depois, solidificada ao longo dos anos, resultando em uma estrutura urbana diferente do plano original e chancelada pelo Poder Público, ao instalar água, luz, calçamento e outras infra-estruturas. “Chama a atenção a circunstância de que até uma das ruas também fora desfigurada, jamais teve papel de via pública”, completou. Afirma o relator que, quando proposta a ação de reivindicação de posse, já não era mais possível reconhecer os lotes em sua configuração original, em razão do abandono verificado desde a criação do loteamento. “Nesse prisma, perdida a identidade do bem, o seu valor econômico, a sua confusão com outro fracionamento imposto pela favelização, a impossibilidade de sua reinstalação como bem jurídico no contexto atual, tem-se, indubitavelmente, que o caso é, mesmo, de perecimento do direito de prosperidade”, concluiu o ministro Aldir Passarinho Junior. O ministro ainda destacou que as provas trazidas nos autos não podem ser reapreciadas pelo STJ, e a decisão do tribunal local, baseada em tais provas, teria aplicado corretamente no caso a perda de propriedade em razão do abandono[73].
No caso em tela, diferentemente do anterior, o que se observa é um total descaso dos proprietários por suas terras. Compram e abandonam, talvez com a falsa percepção de que tenham feito um mal negócio. Essas terras são invadidas, o Poder Público implanta toda uma infraestrutura e, consequentemente, valorizam. Só então os proprietários percebem que não deviam ter abandonado e tentam recuperar por meio de ação reivindicatória, na qual, na maioria dos casos, já não é mais possível pois o decurso de tempo retirou o poder que tinham sobre suas terras. Dormientibus non succurrit jus.
O instituto da posse remonta à Antiguidade, decorrente de crenças religiosas, pelas quais a família permanecia em áreas determinadas como forma de cultuar os mortos, não podendo abandonar o local, nem tampouco era permitido a presença de intrusos, ou seja, os mortos só podiam ser cultuados pelos membros da mesma família.
Com o crescimento dos grandes centros urbanos e com a insistência de cada vez mais em ocupar as grandes cidades, as terras disponíveis foram ficando escassas, ou a demanda por elas tornou-se maior que a oferta, pelo menos nessas áreas. Já não se podia mais utilizar-se das posses de terras da maneira que mais conviessem aos possuidores. Eles não poderiam, por exemplo, tornar as terras estéreis de maneira a nada produzirem para o consumo de uma população que a cada dia mais exige alimentos e bens para suas necessidades básicas.
Exigia-se uma finalidade, uma função social. O proprietário já não poderia se utilizar da maneira que mais lhe interessasse os seus bens. O direito de propriedade haveria por deixar de ser absoluto para relativizar-se em prol de toda uma coletividade.
A propriedade também mudou a forma de como era vista pelo Estado. Antes direito individual, hoje elevado à categoria de direito fundamental, tutelado pela Constituição. Antes poder absoluto, hoje limitado em função da destinação social que lhe é imposta. Já não se pode dispor da propriedade da maneira que melhor convenha. Há que se observar se ela cumpre com sua função social determinada pela Constituição em detrimento de um individualismo proprietário.
Há que se levar em conta, também, o que diz respeito à proteção do meio ambiente. É imperativo que o Estado proteja essas áreas mais que quaisquer outras, pois se trata de um interesse difuso, coletivo.
Diante disso, é que o Estado tem o poder/dever de zelar pela correta observância e aplicação da função social da posse, com a utilização do poder de polícia, bem como por meio do emprego de uma legislação que tutele os interesses coletivos em detrimento dos individuais, quando esses não estiverem dando uma finalidade social à sua posse ou propriedade.
Notas:
[1] Adam Smith in A Riqueza das Nações, p. 44-45.
[2] Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_141/r141-08.pdf. Acesso em 25 abr. 2009.
[3] Bobbio in Da Estrutura à Função, p. 53.
[4] Bobbio in Da Estrutura à Função, p. 68.
[5] Ib idem, p. 136.
[6] Bobbio in Da Estrutura à Função, p. 71-72.
[7] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in op. cit., p. 11.
[8] Alexandre de Moraes in Direito Constitucional, p. 305.
[9] André Ramos Tavares in Curso de Direito Constitucional, p. 597.
[10] Rawls in op. cit. p. 64
[11] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina= sumula_601_700>. Acesso em: 24 abr. 2009.
[12] Rawls in op. cit., p. 66.
[13] Ib idem.
[14] É a outra forma de como é conhecido o ponto ótimo de Pareto.
[15] Segundo Dworkin, o ótimo de Pareto é o mesmo que o princípio da eficiência, in op. cit, p. 353.
[16] Dworkin in Uma Questão de Princípio, p. 353-354.
[17] Rosenvald in op. cit., p. 29.
[18] Lévy, Jean-Philippe. História da Propriedade. Lisboa: Editorial Estampa, 1973, p. 5.
[19] Cretella Júnior in op. cit. p. 118.
[20] Cretella Júnior in op. cit. p. 127.
[21] Ihering in Teoria Simplificada da Posse, p. 12.
[22] Fustel de Coulanges in Cidade Antiga, p. 21.
[23] Fustel de Coulanges in Cidade Antiga, p. 69.
[24] De acordo com Fustel de Coulanges “o fogo sagrado” era a obrigação que tinha todo chefe de família manter aceso, indefinidamente, as chamas de um fogo em que deveria obedecer a determinados rituais. Esse fogo deveria ser mantido dia e noite. A noite, o fogo era coberto com cinza os carvões, para não consumir-se e pela manhã, era novamente reavivado. A extinção desse fogo acarretaria a da família obrigada a mantê-lo. Além do mais, a religião distinguia as árvores que podiam ser usadas a fim de manter o fogo puro e livre de impurezas.
[25] Ibidem, p. 69.
[26] Ibidem, p. 72.
[27] Fustel de Coulanges in op. cit., p. 70.
[28] Wolkmer in Fundamentos da História do Direito, p. 94.
[29] Wolkmer in Fundamentos da História do Direito, p. XVI.
[30] [Digesta 41.2.12.1] Nada tem de comum o domínio com a posse.
[31] Jhering, Rudolf von. Teoria Simplificada da Posse. São Paulo: Edipro, 1999, p. 3.
[32] Cretella in op. cit. p. 127.
[33] Orlando Gomes in Direitos Reais, p. 22.
[34] Rosenvald in op. cit. p. 39.
[35] Ana Rita Vieira Albuquerque in Da Função Social da Posse, p. XV.
[36] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in Direitos Reais, p. 42.
[37] Ana Rita in op. cit., p. 40-41.
[38] Ihering Teoria Simplificada da Posse, p. 8.
[39] Existem casos de propriedade sem posse como ocorrem nos casos estabelecidos no Código de Processo Civil de 1939 – art. 381: a) aos adquirentes de bens, para haverem a respectiva posse, contra os alienantes ou terceiros que os detivessem; b) aos administradores e demais representantes das pessoas jurídicas, para haverem dos seus antecessores a entrega dos bens pertencentes à pessoa representada; c) aos mandatários, para receberem dos antecessores a posse dos bens do mandante. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão (art. 189, Código Civil de 2002), e essa pretensão é feita por meio da ação de ‘imissão na posse’, que Pontes de Miranda define como “A ação típica é a de imissão na posse (interdicta adipiscendae possessionis), que supõe ainda não se ter a posse e tem por fito, precisamente, obtê-la. A ação de imissão nunca foi possessória; foi e é petitória”. Tratado de Direito Privado – Tomo 5
[40] Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2009978/apelacao-civel-ac-13197-go-20073500013197-2-trf1>. Acesso em: 02 mai. 2009.
[41] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula _601_700>. Acesso em: 02 mai. 2009.
[42] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/sumulas/verbetes_asc.txt>. Acesso em: 02 mai. 2009.
[43] Caroline Dias Andriotti e Guilherme Calmon Nogueira da Gama in Função Social no Direito Civil, p. 16.
[44] Venosa in op. cit., p. 215.
[45] Sílvio de Salvo Venosa in Direito Civil: Direitos Reais, p. 26.
[46] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in op. cit., p. 31.
[47] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in op. cit., p. 38.
[48] Dicionário Jurídico Brasileiro, p. 244.
[49] Disponível em: <http://www.donnini.com.br/site/conteudo/artigos/artigo3.htm>. Acesso em: 12 mai. 2009.
[50] A forma originária de aquisição de propriedade é aquela que ‘não provém de nenhum título anterior’, conforme Hely Lopes Meirelles op. cit., p. 548, ou, conforme as palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao citar Celso Antônio Bandeira de Mello, “diz-se originária a forma de aquisição da propriedade quando a causa que atribui a propriedade a alguém não se vincula a nenhum título anterior, isto é, não procede, não deriva, de título precedente, portanto, não é dependente de outro. É causa autônoma, bastante por si mesma, para gerar, por força própria, o título constitutivo da propriedade”. É precisamente o que ocorre na desapropriação, em que a transferência forçada do bem para o patrimônio público independe de qualquer vínculo com o título anterior de propriedade; não interessa, para fins de expropriação, verificar se se tratava de título justo ou injusto, de boa ou de má-fé. (Direito Administrativo, p. 170-171 )
[51] Disponível em http://www.tjrs.jus.br/site_php/jprud2/ementa.php. Acesso em: 05 mai. 2009.
[52] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in op. cit., p. 286.
[53] Carlos Roberto Gonçalves in Direito das Coisas, p. 252.
[54] Carlos Roberto Gonçalves in op. cit., p. 253.
[55] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=usucapião%20e%20 especial%20e%20rural%20NAO%20S.PRES.&base=baseMonocraticas. Acesso em: 06 mai. 2009.
[56] Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/decisoes/doc.jsp?livre=usucapi%E3o+adj4+especial+e+urbana&&b= DTXT&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso em: 06 mai. 2009.
[57] Carlos Roberto Gonçalves in op. cit., p. 254.
[58] Carlos Roberto Gonçalves in op. cit., p. 253.
[59] Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 06 mai. 2009.
[60] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald in op. cit., p. 43.
[61] Carlos Roberto Gonçalves in op. cit., p. 293.
[62] Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=%22fun% E7%E3o+social%22+dworkin&b=ACOR Acesso em: 25 abr. 2009
[63] Hely Lopes Meirelles in op. cit., p. 480.
[64] França, Vladimir Da Rocha. Disponível Em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/pdf/pdf_171/r171-15.pdf>. Acesso em: 06 mai. 2009.
[65] Disponível em: http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./snuc/index.html&conteudo=./snuc/snuc6. html. Acesso em: 07 mai. 2009.
[66] Disponível em: <http://www.ucb.br/005/00502001.asp?ttCD_CHAVE=2009>. Acesso em: 07 mai. 2009.
[67] Ib idem.
[68] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/indiceAdi/listarIndiceAdi.asp. Acesso em 06 mai. 2009.
[69] Disponível em: http://www.conamp.org.br/04_arquivos/clipping/100807.htm. Acesso em: 06 mai. 2009.
[70] Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=78720. Acesso em: 07 mai. 2009.
[71] Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=78720. Acesso em: 07 mai. 2009.
[72] Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=78720. Acesso em: 07 mai. 2009.
[73] Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=78720. Acesso em: 07 mai. 2009.
Advogado, pós-graduado em Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Edezio Muniz de. Da função social da posse Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2012, 11:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28609/da-funcao-social-da-posse. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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