A terra como objeto de direito de propriedade independente de produção ou uso é criação do capitalismo.
A cultura que confunde a terra e sua função humana, social, com o direito abstrato de propriedade, exclusivo e excludente, faz uma opção contra a vida. A concepção de que a propriedade é o próprio homem e nenhum direito pode ser mais sagrado do que ela.
Na realidade quem cumpre uma função social não é a propriedade mas a terra e a ação humana ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou o Estado lhe outorgue.
Por isso a função social é relativa ao bem e ao seu uso, e não ao direito. Neste sentido, a Constituição nos leva a certeza de que é protegia pela Constituição a propriedade que faz a terra cumprir sua função social, porque a ocupação que não a cumpre, por mais rentável que seja, incorre em ilegalidade.
Sendo assim, a terra, nos sistema jurídicos do bem estar social deve cumprir uma função social que garanta os direitos dos trabalhadores, do meio ambiente e da fraternidade.
A obrigação de fazê-la cumprir é do titular do direito de propriedade, que perde os direitos de proteção jurídica de seu título caso não cumpra, isto é, ao não cumprir não pode invocar os Poderes do Estado para proteger seus direito.
Ou seja, não há direito de propriedade para quem não faz a terra cumprir sua função social. Dessa forma, a terra quando entra no mundo do patrimônio privado deixa de ser uma utilidade para ser apenas um documento. Nestes casos, a terra deixa de ser terra e vira propriedade.
No Brasil, historicamente, apesar da clareza dos dispositivos e da possibilidade que abria para a reforma agrária a lei não era suficiente, porque o sistema jurídico continuava mantendo a garantia da propriedade privada acima dos direitos de acesso à terra por via de reforma agrária.
A luta pela reforma agrária no Brasil vem de longa data e tem pontos de confronto e avanço e momentos de tristes recuos.
Desde o século XVI, com o sistema das sesmarias, passando pela concessão de terras devolutas instituídas em 1850, sempre houve no Brasil uma política de impedimento aos pobres, camponeses e indígenas de viverem em paz na terra.
A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade, assegura a conservação dos recursos naturais e observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.
No Brasil, as sesmarias geraram terras de especulação do poder local e as concessões constituíram-se em fonte de criação de latifúndios.
Sendo assim, aquele que faz a terra destinada ao uso privado cumprir sua função social tem direito a ela e a seus frutos, ainda que proprietário não seja, sem que o eventual titular do direito possa invocá-lo contra o uso dado.
E ainda, ao contrário de cometer ato ilícito, aquele que ocupa uma terra que não está cumprindo sua função social, para fazê-la cumprir, age de acordo com a lei e o interesse social, merece prêmio, não sanção.
A Constituição Mexicana foi um marco mais importante porque organizou o Estado em uma região de camponeses livres, na grande maioria indígena, que queriam continuar sendo livres e indígenas contra o novo regime de propriedade privada, tal como ocorreu em Canudos e no Contestado.
Esta Constituição foi nitidamente camponesa e com forte sotaque latino-americano. Como instrumento jurídico, a Constituição Mexicana é mais completa e profunda que a Alemã porque não apenas condiciona a propriedade privada, mas a reconceitua. Além disso, ademais de ser anterior à alemã em dois anos, até hoje está vigente.
A Constituição Mexicana estabelece quais são as condições ao exercício da propriedade privada das terras, reconceituando-a. Inicia por afirmar que a propriedade das terras e águas é originalmente da Nação que pode transmitir o domínio aos particulares, afastando desde logo a ideia de que a propriedade privada seja um direito natural como tão textualmente afirmara a Rerum Novarum.
Além disso, a Constituição Mexicana diferencia duas formas de intervenção na propriedade privada: por um lado reconhece a desapropriação que somente pode se dar por razões de utilidade pública e mediante indenização, existente desde os tempos do nascimento do liberalismo e por outro, não reconhece como propriedade a área que não cumpra os preceitos necessários a seus exercício, quando, então, se dá a intervenção para regular o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de exploração e a justa e equitativa distribuição da riqueza.
Bartolomé de Las Casas reclamava para os povos da América o direito de exercer sua própria jurisdição.
O raciocínio de Las Casas era adequado ao pensamento cristão do seu tempo e tem a mesma lógica de Hobbes e Locke. Com o avanço do mercantilismo e a construção dos Estados contemporâneos, a propriedade da terra tornou-se absoluta e a contradição se aprofundou de tal modo que os índios e suas sociedades foram esquecidos da Lei e suas terras deixaram de ser seus domínios para transformar-se em propriedade privada. Sendo assim, cada índio passou a ter o direito de se tornar “cidadão” da sociedade.
Tal “direito” é duvidoso porque primeiro o índio teria que deixar de ser índio, no sentido de ser membro de uma “nova” sociedade e segundo, porque para se tornar cidadão deveria ter alguns atributos, como ao menos conhecer a língua oficial, diferente da sua.
Estes dois atributos tornavam cada indígena apto a ser trabalhador livre, capaz de disputar um emprego assalariado, sem a proteção de sua comunidade.
No final do século XX, quando a propriedade privada começou a ser restringida ou limitada por direitos coletivos, como a proteção do meio ambiente e o patrimônio cultural, os povos indígenas tiveram um alento jurídico.
Isto significa que a construção da propriedade privada no Brasil, desprezou a ocupação indígena, não respeitando seus direitos.
Portugal não construiu grandes teorias jurídicas, como Locke e Hobbes, nem deixou para a História tratados de relações entre povos, como Lãs Casas e Vitória, mas construiu a mentalidade moderna na prática, com o sistema de concessões de sesmarias e uma política uniforme e rígida, o que permitiu a integridade territorial do Brasil apesar das profundas diferenças regionais e da pluralidade social que existia.
Salienta-se ainda que a aplicação da ideia de que toda a terra haveria de ser privada excepcionada as de uso público, na prática, foi fatal para os índios que não a ocupavam de forma privada, nem foi admitido que seu uso era público.
No Brasil se reconheceram como direitos individuais de propriedade da terra somente os que apresentassem como título de origem atos de concessão da própria Coroa.
Sendo assim, o sentido da concessão das sesmarias era o de ocupação, desbravamento, conquista, desrespeitando qualquer tipo de uso indígena, ou ocupação pré-existente.
Quer dizer que, enquanto em Portugal as sesmarias tiveram o sentido de proporcionar a produção de alimentos e desenvolvimento para a população, no Brasil foi instrumento de conquista, mas também de garantia aos capitais mercantilistas de que sua mão de obra.
Isto criava duas situações diferentes, por um lado havia uma total desconsideração pelas populações indígenas, fazendo-as invisíveis; por outro lado havia uma proibição aos trabalhadores de adquirir propriedade da terra pelo seu trabalho, já que não bastava trabalhar a terra vazia, era necessário comprá-la do patrão ou ganhá-la por favores prestados à Coroa.
Os pensadores católicos se rebelaram contra a injustiça da propriedade romana, pelo caráter excludente, a exemplo de Santo Tomás que fazia a distinção entre o usar e o dispor.
A ideia da disposição como a liberdade de troca de bens ou alienação onerosa, é muito posterior, sustentada por Locke.
Até Locke a civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade, sendo que a apropriação está limitada ao uso, sendo que não seria lícito ter como propriedade mais do que se pode usar.
Sendo assim, Locke aprofunda a ideia de Santo Tomás de que tudo o que exceda ao utilizável será do outro. Locke agregou ainda o conceito de corruptível, ao afirmar que o excedente para não pertencer ao proprietário tem que estar em risco de se deteriorar. Locke admitiu ainda, que o excedente, desde que não seja corruptível poderia ser acumulado.
Neste sentido, o limite da propriedade, para Locke, é “ a ilegitimidade da propriedade de bens corruptíveis não trocados, portanto, não é lícito a alguém possuir mais bens corruptíveis não trocados, portanto, não é lícito a alguém possuir mais bens corruptíveis dos que possa usar sem transformá-lo em capital”.
Dessa forma, a terra passou a ser mercadoria com o crescimento do capitalismo e com a transformação agrária na Inglaterra, que reduziu as propriedades comuns de campos e pastagens a pelo processo de cercamentos.
Neste contexto, a terra deixava de ser uma provedora de alimentos para ser uma reprodutora de capital, já que de acordo com Marés: “a terra estava deixando de ser a fonte de todos os bens de consumo da família para passar a ser produtora de mercadorias que deveriam render lucros aos capitais investidos na produção.”
A terra e seus frutos passaram a ter donos, um direito excludente e individual.
Este direito criado pelo ser humano e considerado a essência do processo civilizatório acabou por ser fonte de muitos males.
Sobre a questão da transformação da terra em propriedade, a ideia de apropriação individual da terra é uma construção humana localizada e recente.
A transformação da terra em propriedade privada absoluta e individual foi um fenômeno da civilização europeia e a concepção da propriedade atual foi sendo construída com o mercantilismo. De acordo com o autor, hoje é visível a crise deste modelo, o Estado e a propriedade, assim concebidos e realizados, chegaram a seu esgotamento teórico e prático.
O marco jurídico da propriedade é a revolução francesa e a elaboração das constituições nacionais.
Dessa forma, o Estado moderno foi construído para garantir a igualdade, liberdade e a propriedade. Ou seja, a função do Estado era garantir a propriedade que necessita da liberdade e igualdade para existir. No entanto, somente os homens livres é que poderiam ser proprietários.
Para que exista o Estado e a propriedade da terra, tal como existe hoje, foi necessário a existência do trabalhador livre, já que a contrapartida da propriedade absoluta da terra é a liberdade dos trabalhadores. Sendo assim, a liberdade pessoal deixa de ser uma ideia filosófica e passa a ser uma necessidade contratual, que tem o individualismo como fundamento.
Referência bibliográfica
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A função social da terra. Porto Alegre:
Fabris, 2003. 142 p.
Graduada em Direito, pós-graduanda em Gestão Pública.Atualmente é servidora pública na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Ministério Público Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCOTTINI, Debora Tiemi. A Função Social da Terra Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2012, 13:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28621/a-funcao-social-da-terra. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
Precisa estar logado para fazer comentários.