De acordo com parte da doutrina, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu na Inglaterra, em 1897, no conhecido caso Salamon v. Salomon & CO, em que Aaron Salomon criou um ente social fictício juntamente com seis membros de sua família, onde foi concedida uma única ação para cada um dos familiares, restando reservadas para Aaron 20 mil ações, integralizadas com o seu anterior estabelecimento comercial. Em razão disso, seus antigos credores ficaram preocupados, pois o patrimônio que lhe serviriam de garantia estava sendo transferido para a recém criada pessoa jurídica. Todavia, a tentativa dos credores de desconsiderar a personalidade jurídica, alcançando os bens de Aaron Salomon foi aceita em primeira instância e reformada pela House of Lords que entendeu legítima a constituição da sociedade e consequente separação patrimonial.
De outro lado, muitos doutrinadores entendem que o leading case foi o ocorrido nos Estados Unidos da América, no caso Bank of United x Deveaux, em que, no ano de 1809, o juiz norte-americano Marshall estendeu aos sócios os efeitos do personalidade jurídica da qual faziam parte.
De qualquer sorte, afirma-se que o sistema de common law em muito colaborou para a organização da matéria, sobretudo através da atividade jurisprudencial.
Até a Idade Média, as pessoas físicas se responsabilizavam pessoalmente pelas relações comerciais. Com o desenvolvimento e progresso, necessário se fez a criação de um novo conceito por meio da união de pessoas físicas para se chegar ao objetivo final. Assim surgiu a pessoa jurídica.
Ocorre que muitas vezes, com a evolução das relações comerciais, o objetivo inicial foi desviado e as pessoas jurídicas passaram a ser utilizadas como instrumento de fraudes ou confusão patrimonial, verificando-se a necessidade de se coibir possíveis excessos no poder de administração da pessoa jurídica. Nesse diapasão, surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, por meio da qual levanta-se o chamado “véu” da pessoa jurídica, objetivando afastar a regra da separação patrimonial entre sócios e pessoa jurídica.
A sistemática da desconsideração da pessoa jurídica ou teoria da penetração é conhecida também como disregard of legal entity (Estados Unidos) e representa a defesa dos direitos resultantes das relações interpessoais, não só com o intuito de defender as pessoas naturais, bem como, as pessoas jurídicas, vitimas de administração dolosa de seus gestores.
Cumpre salientar que não cabe ao credor ignorar a separação patrimonial, dirigindo a demanda diretamente ao sócio fraudador. A desconsideração é ato que deve partir do Estado-juiz, não sendo permitido ao credor acionar diretamente os sócios.
Discorrendo sobre o instituto em questão, Fábio Ulhoa Coelho assim dispõe :
A regra de limitação da responsabilidade dos sócios da sociedade limitada comporta exceções. Nas hipóteses de caráter excepcional, os sócios responderão subsidiária, mas ilimitadamente, pelas obrigações da sociedade. São as seguintes: a) os sócios que adotarem deliberação contrária à lei ou ao contrato social responderão ilimitadamente pelas obrigações sociais relacionadas à deliberação ilícita. Os sócios que dela dissentirem deverão acautelar-se, formalizando sua discordância, para se assegurar quanto a esta modalidade de responsabilização (...).
Nesse sentido, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica encontra previsão no art. 50 do Código Civil de 2002:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Desse modo, para que os sócios sejam responsabilizados pelas obrigações contraídas em nome da empresa, faz-se mister que se configure a fraude, o abuso de direito ou a confusão patrimonial.
É importante trazer a baila, jurisprudência dos tribunais pátrios:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. REDIRECIONAMENTO DO PLEITO EXECUTIVO. SÓCIOS DE SOCIEDADE LTDA. POSSIBILIDADE. DISOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE. DESCONSIDERAÇAO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
Tendo em vista que restou caracterizada a dissolução irregular da empresa, devido à ausência de efetuação da baixa da mesma na junta comercial, possível o redirecionamento do pleito executório para os sócios da mesma. AGRAVO PROVIDO. (Agravo de Instrumento nº 70015349814, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. ARTUR ARNILDO LUDWIG, Julgado em 14.12.06.)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Decisão que determinou a desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada. Não localização da executada no endereço fornecido. Diligências realizadas por Oficial de Justiça dando conta de que a executada não mais funcionava no endereço fornecido. Caracterização da prática abusiva, já que a mesma eximiu-se e postergou ao máximo o direito do credor, o que constitui um artifício malicioso, com a finalidade de prejudicar o andamento do processo de execução, agindo claramente de forma abusiva, com evidente má-fé. Necessária uma medida mais enérgica, a fim de se ver cumprida a decisão judicial, pelo que, correta está a decisão proferida pelo douto Juízo de primeiro grau. AGRAVO IMPROVIDO.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SOCIEDADES. CONFUSÃO PATRIMONIAL. PERSONALIDADE JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1 – O ordenamento jurídico, em algumas circunstâncias, admite a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade para que o seu patrimônio responda pelas obrigações de outra que com ela se confunde. 2 – O Código Civil autoriza a aplicação do instituto, dentre outros, em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pela confusão patrimonial (art. 50).
Vejamos o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. DISTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE NATUREZA SOCIETÁRIA. 2. REQUISITO OBJETIVO E REQUISITO SUBJETIVO. 3. ALEGAÇÃO DE DESPREZO DO ELEMENTO SUBJETIVO AFASTADA.
I – Conceitua-se a desconsideração da pessoa jurídica como instituto pelo qual se ignora a existência da pessoa jurídica para responsabilizar seus integrantes pela consequências de relações jurídicas que a envolvam, distinguindo-se a sua natureza da responsabilidade contratual societária do sócio da empresa.
II – O art. 50 do Código Civil de 2002 exige dois requisitos, com ênfase para o primeiro, objetivo, consistente na inexistência de bens, no ativo patrimonial da empresa, suficientes à satisfação do débito e o segundo, subjetivo, evidenciado na colocação dos bens suscetíveis á execução no patrimônio particular do sócio – no caso, sócio-gerente controlador das atividades da empresa devedora.
III – Acórdão cuja fundamentação satisfez aos dois requisitos exigidos, resistindo aos argumentos do Recurso Especial que alega violação ao art. 50 do Código Civil de 2002.
IV – Recurso Especial improvido. (REsp nº 1.141.447-SP, Rel. Min. SIDNEI BENETI, Terceira Turma, julgado em 08.02.11, DJe 05.04.11)
De outro turno, cumpre ressaltar que a simples inadimplência não importa na desconsideração da personalidade jurídica, sendo necessário haver a prova do abuso de direito ou desvio de finalidade.
Ante o exposto, a criação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica fez-se necessária para conter os abusos verificados com a desvirtuação da finalidade da pessoa jurídica, resultando-se, assim, na suspensão temporária dos efeitos da diferenciação dos patrimônio dos sócios e da empresa.
Precisa estar logado para fazer comentários.