INTRODUÇÃO
Evidencia-se a existência de uma celeuma em torno da incidência dos direitos fundamentais no âmbito privado, assumindo grande complexidade no discurso jurídico contemporâneo.
Ademais, no tocante à formulação e difusão da ideia da incidência dos direitos fundamentais na esfera privada, registra-se que o fenômeno dos poderes privados e a Constituição como ordem de valores da comunidade contribuíram profundamente.
Diante disso, o presente trabalho analisará os pressupostos da ideia de aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares.
1 O FENÔMENO DOS PODERES PRIVADOS
Em relação ao Estado Liberal de Direito, evidencia-se que há uma separação entre Estado e sociedade civil, de modo que o Direito privado desempenha a função de estabelecer as regras mínimas de convivência entre as pessoas e o Direito público disciplina as relações entre indivíduos e o Estado.
Com efeito, sob essa forma de estruturação do sistema jurídico, não havia como conceber a aplicação dos direitos individuais constitucionais às relações jurídicas entre particulares.
Não obstante, a partir do século XIX, multiplicam-se as formas de organização privada, de modo que a autoridade e poder também se manifestam na esfera privada, não sendo mais atributos exclusivos do Estado.
Nesse contexto, vale a lição de Foucault (1993, p. 88-89):
A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
Sendo assim, o filósofo francês revelou que o fenômeno do poder se desenvolve também no âmbito da sociedade, ou seja, nas relações entre particulares.
Sob outro enfoque, fala-se em um novo modelo, a sociedade corporativista, sendo que García (1996 apud PEREIRA, 2006, p. 455) assevera:
Por estabelecer situações de privilégio dá lugar à criação de autênticos poderes privados, os quais não só ocupam lugar relevante no campo das relações entre particulares como incidem definitivamente nas relações políticas, assumindo em muitas ocasiões com sua atuação um caráter público evidente.
Dessa maneira, evidencia-se a complexidade da sociedade contemporânea, de forma que se verifica a proeminência de uma das partes sobre a outra nas relações jurídicas entre particulares. Nesse diapasão, Santos (2000, p. 269) entende que o poder deve ser compreendido como “qualquer relação social regulada por uma troca desigual”.
Destarte, partindo desse pressuposto, observa-se o fenômeno dos poderes privados nas relações familiares, nas relações de consumo, nas relações de emprego, entre outras.
Diante dessas considerações, registra-se o ensinamento de Peces-Barba Martinez (1999 apud PEREIRA, 2006, p. 456):
Os direitos, junto com os valores e os princípios, formam parte do conteúdo de justiça de uma sociedade democrática moderna e têm como objetivo último ajudar a que todas as pessoas possam alcançar o nível de humanização possível, em cada momento histórico. São meios para que a organização social e política permita o desenvolvimento máximo das dimensões que configuram nossa dignidade, quer dizer, para que possamos eleger livremente, para que possamos construir conceitos gerais e raciocinar, para que possamos nos comunicar, transmitir a semente da cultura como obra do homem na história, e para que possamos decidir livremente nossa moralidade privada, nossa idéia de bem, da virtude, da felicidade ou da salvação, segundo seja o ponto de vista em que nos situemos.
Assim, tem-se a dimensão funcional dos direitos fundamentais, de maneira que se torna pertinente sua aplicação em todas as situações nas quais possam ser comprometidas a dignidade e a autonomia privada, decorrendo de um poder privado ou público.
2 A CONSTITUIÇÃO COMO ORDEM DE VALORES DA COMUNIDADE E A DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A concepção da Constituição como ordem de valores resulta do constitucionalismo germânico, tendo sido desenvolvida e estruturada na jurisprudência da Corte Constitucional a partir da vigência da Lei Fundamental de Bonn.
Desse modo, a comunidade estabelece, por meio da Constituição, um conjunto de valores que deverão orientar a ordem jurídica estatal e todos os setores da sociedade.
Diante do exposto, Pereira (2006, p. 458) explica:
Esse ponto de vista levou ao reconhecimento de um duplo caráter (dimensão ou função) dos direitos fundamentais: estes, ao mesmo tempo em que asseguram posições jurídicas subjetivas dos indivíduos em face do Estado, veiculam uma ordem de valores objetiva, que há de comandar a vida social e orientar as ações dos poderes públicos.
De fato, o desenvolvimento teórico da dimensão objetiva conduziu ao reconhecimento de uma série de efeitos jurídicos dela decorrentes. O efeito de irradiação traduz a ação conformadora que o direito constitucional deve exercer sobre todos os ramos do direito, bem como exprime a vinculação das três funções do Estado, ou seja, judiciária, administrativa e legislativa.
É oportuno ainda registrar que a ideia de eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada e, mais recentemente, a noção de deveres de proteção, resultam também da dimensão objetiva.
Em verdade, Böckenförde (1993 apud PEREIRA, 2006, p. 462) defende que a drittwirkung “é filha legítima do efeito de irradiação, que no fundo nada mais é que uma tentativa de elaborá-la”.
Dessa forma, Pereira (2006, p. 462-463) preleciona:
Do que se expôs, é possível constatar uma profunda imbricação entre as noções de Constituição como ordem de valores, dimensão objetiva dos direitos fundamentais e os efeitos jurídicos que são extraídos dessa dimensão (efeito de irradiação, eficácia privada e deveres de proteção). É difícil determinar uma relação de causalidade sucessiva entre tais idéias, parecendo mais pertinente falar em uma conexão e interdependência recíproca entre elas. De qualquer sorte, cabe destacar que a justificação e a classificação dos diversos efeitos dos direitos fundamentais, tanto na doutrina germânica, como alhures, não tem tratamento uniforme e consensual, havendo uma infinidade de variações dogmáticas e pretorianas.
Assim, a concepção da Constituição como ordem de valores revela-se na compreensão da Constituição como ordem de valores da comunidade, uma vez que visa a ordenar todas as esferas da vida social. Além disso, a ideia de incidência dos direitos fundamentais no âmbito privado pode ser entendida como uma consequência importante do reconhecimento da sua dimensão objetiva.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte, constatou-se que o fenômeno do poder não é exclusivo das relações com o Estado, mas se manifesta também no seio da sociedade civil, consistindo em um dos pressupostos para a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Com efeito, percebeu-se ainda que a concepção da Constituição como ordem de valores revela a ideia de que, por meio da Constituição, a comunidade estabelece um conjunto de valores que servem de orientação não apenas a ordem jurídica estatal, mas a vida social genericamente considerada.
Além disso, pode-se afirmar que a noção de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais pode ser entendida como uma consequência importante do reconhecimento da sua dimensão objetiva.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A vontade do saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos humanos: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
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