É certo que a sociedade possui uma dinâmica de alterações mais acelerada se comparada à dinâmica do Direito. Sendo assim, é possível afirmar que o Direito acompanha lentamente as mudanças da sociedade, e não o inverso.
No âmbito do direito do consumidor, sobretudo no contexto brasileiro, um sem número de variáveis como o modo de produção capitalista, a abertura do mercado brasileiro para o capital e produtos estrangeiros, o desenvolvimento tecnológico, entre muitos outros fatores, contribuíram para o acentuado estímulo à sociedade de consumo, que, por um lado, oferece os meios para concretizar os desejos de consumo e a elevação do nível de vida do indivíduo inserido nesta sociedade, mas, em contrapartida, carrega consigo mazelas capazes de afligir profundamente o consumidor, podendo, inclusive, acarretar na exclusão total deste da sociedade de consumo e, por consequência, do contexto social em que vive, dentre outras graves consequências sociais, morais, jurídicas e psicológicas.
O direito do consumidor possui proteção ainda muito recente dentro do ordenamento jurídico pátrio. Neste contexto, o superendividamento consiste um dos fenômenos circunscritos à matéria consumeirista que não foi objeto de apreciação pelo legislador, fato, este, que suscita divergências quanto à proteção, no caso concreto, do indivíduo superendividado.
Em que pese a ausência de proteção legal específica, a base principiológica do ordenamento jurídico, as garantias constitucionais, a mens legis do Código de Defesa do Consumidor, bem como o respaldo jurídico doutrinário, oferecem as ferramentas necessárias ao estudo e tutela dos direitos do consumidor, o elo mais frágil da relação de consumo, diante do fenômeno do superendividamento.
1. CONCEITO DOUTRINÁRIO DE SUPERENDIVIDAMENTO
O fato social concreto do superendividamento, consiste na impossibilidade de o consumidor não poder saldar as dívidas que possui com os ganhos provenientes de seu labor, sem que para isso seja prejudicada a sua subsistência.
Diante de tal fato, debruçou-se a doutrina com o escopo de colocar em estudo sob o prisma jurídico o fenômeno do superendividamento. Assim, destaca-se o conceito da jurista Cláudia Lima Marques, para quem superendividamento do consumidor é: “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo1”.
Em suma, superendividamento é a condição do consumidor, pessoa física, não poder saldar as dívidas que possui com os ganhos provenientes de seu labor, sem que para isso reste prejudicada a subsistência própria ou de sua família, ou, simplesmente, consumidor superendividado é aquele que perdeu a capacidade de pagamento das dívidas contraídas em suas relações de consumo.
2. O CDC E A TUTELA ESPECÍFICA DO SUPERENDIVIDAMENTO
A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor – “CDC”) é uma lei pautada em inúmeros princípios constitucionais que podem ser utilizados a favor do consumidor superendividado em consequência de fatores econômicos, sociais e jurídicos.
Neste sentido, artigo 6º do CDC é expresso ao determinar os direitos básicos do consumidor. O inciso V deste dispositivo prescreve a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou ainda sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Na relação de consumo, é necessário haver o equilíbrio contratual com a prevalência da defesa do consumidor em face da autonomia da vontade. Diante do silêncio do legislador quanto a regulamentação específica do superendividamento, é factível a alteração contratual em razão da cláusula não ser justa.
Interessante é atentar especificamente para a parte final do referido incido V, o qual traz à baila a possibilidade de revisão contratual em virtude de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, hipótese que,
Neste mesmo sentido, importante destacar também o artigo 46 do mesmo diploma normativo. Consoante o artigo 46 do CDC, os contratos celebrados sem o conhecimento prévio pelo consumidor do seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance, serão considerados como inválidos, uma vez que tal hipótese pode levar o consumidor a contratar sem possuir a real noção do teor do pacto e respectivos riscos.
Em verdade, afirmar que o CDC possui cláusulas expressas especificamente para o superendividamento é tecer um panorama fictício da realidade. Na verdade o que realmente acontece é que o superendividamento é um tema bastante atual, criado por diversos fatores culturais, no qual o crédito disponível supostamente traz a felicidade imediata.
Não obstante os artigos mencionados neste tópico do trabalho, importante registrar que o superendividamento ainda carece de apreço pelo legislador, tendo em vista que o tema é carregado por subjetivismo, partindo-se da premissa que é necessário sempre estar caracterizada a boa-fé nas dívidas adquiridas pelo consumidor.
3. CRÉDITO E RAZÕES DO SUPERENDIVIDAMENTO
A concessão de crédito, hoje, consiste importante meio de impulso econômico. Consoante dados do Banco Central, as operações de crédito no mês de setembro de 2011 atingiram as cifras de R$ 1.929 bilhões, representando 48,4% do PIB brasileiro2. Indubitavelmente, neste contexto, as operações de crédito constituem importante ferramenta para a relação de consumo, com inerentes reflexos benéficos, como a possibilidade de impulsionar o nível de vida do consumidor, e maléficos, como o superendividamento.
As práticas consumeiristas corriqueiras, em passado não tão distante, estimulavam a poupança por parte do consumidor para, posteriormente, efetivamente consumir, de modo a gastar os recursos poupados. A tônica comercial, hoje, é inversa. O crédito possibilita o consumo imediato, a satisfação instantânea dos anseios do indivíduo inserido na sociedade de consumo.
A política de concessão de ampla concessão de crédito consiste, portanto, no principal fator que leva ao superendividamento. A questão do superendividamento no Brasil se agravou com a explosão da oferta do crédito de maneira fácil e rápida, sem avaliações criteriosas, desacompanhada da preocupação com a educação para o consumo.
Se, por um lado, a oferta do crédito fácil fomenta o consumo, em contrapartida, o fornecedor que concede crédito a quem não tem condições de cumprir o contrato pratica abuso de direito perante o consumidor, elo vulnerável da relação de consumo. Embora aparentemente o contrato se insira na esfera do lícito na medida em que satisfaça requisitos formais, consiste prática abusiva do fornecedor, desviando-se das finalidades sociais que constituem o fundamento de validade da liberdade de contratar, ou mais especificamente, de fornecer o crédito. Assim, como o consumidor é responsável por suas práticas contratuais, o fornecedor também possui responsabilidade pelo crédito colocado à disposição no mercado, visto que o crédito concedido de forma temerária, tendo sido celebrado o pacto com consentimento irrefletido, sem contemplação por parte do fornecedor das reais condições daquele que pretende receber o crédito, praticamente induzindo a inadimplência, sem dúvida nenhuma viola o princípio da dignidade da pessoa humana.
O crédito, ainda que fator preponderante para o endividamento, não é fator isolado para a ocorrência do referido fenômeno. Cumpre ressaltar a vivência em sociedade de apelo ao consumo, onde os valores dos indivíduos baseiam-se na valoração de seus bens.
Alguns fatores que caracterizam essa sociedade de consumo são os constantes e cada vez mais rápidos avanços tecnológicos; a produção em série de produtos; distribuição em massa de produtos e serviços; formalização da aquisição destes produtos e serviços por meio de contratos de adesão; publicidade em grande escala na oferta dos mesmos; além do já mencionado oferecimento indiscriminado de crédito generalizado ao consumidor.
A precariedade de informações é outro fator que desencadeia a situação de superendividamento, aliada às abundância e desperdícios da sociedade de consumo, sendo, estes, valores coletivos que recebem esta “função positiva” na medida em que o excesso passa a ser sinônimo de prestígio, o supérfluo tornam-se fatores de diferenciação no plano social.Diante do quadro de superendividamento, os Tribunais têm enfrentado a questão de maneiras diversas, visto que não há previsão legal expressa para revisão dos contratos em tais situações.
Posicionamento da Primeira Turma do STJ quanto à discricionariedade da instituição financeira para refinanciamento de débito decorrente de contrato de financiamento estudantil:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE FINANCIAMENTO ESTUDANTIL - FIES. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. ART. 2°, § 5°, DA LEI 10.260/2001. REFINANCIAMENTO. DISCRICIONARIEDADE. INEXISTÊNCIA DE NORMA QUE AMPARE A PRETENSÃO DA RECORRENTE. 1. Tratam os autos de embargos ajuizados por Patrícia Maria Ribeiro à ação monitória que lhe move a CEF decorrente de contrato de financiamento estudantil firmado em 14.03.2001. O TRF da 4ª Região, mantendo a sentença, rejeitou o pedido exordial, por entender que não há previsão legal que obrigue a CEF a aceitar a proposta de renegociação. Nessa via especial, a recorrente alega contrariedade ao art. 6°, VIII, da Lei 8.078/1990, à consideração de que se aplica ao contrato de financiamento em questão a legislação consumerista. Indica, também, ofensa ao art. 2°, § 5°, da Lei 10.260/2001 (redação dada pela Lei 10.846/2004), sob o argumento de que não lhe foi oportunizada a possibilidade de refinanciamento do débito, direito este assegurado pela legislação infraconstitucional. 2. A matéria ventilada no art. 6°, VIII, da Lei 8.078/1990, não foi objeto de pronunciamento por parte do Tribunal a quo, ressentindo-se o recurso especial do requisito do prequestionamento. Também não foram opostos embargos declaratórios com a finalidade de sanar eventuais omissões. Incidência das Súmulas 282 e 356/STF. 3. Segundo exegese do art. 2°, § 5°, da Lei 10.260/2001, conclui-se que o refinanciamento de débito decorrente de contrato de crédito educativo tem caráter discricionário, ou seja, a instituição financeira pode aceitar ou não proposta de renegociação segundo seu juízo de conveniência e oportunidade, desde que respeitadas as condições previstas nos incisos I e II do mencionado dispositivo de lei. 4. Não há qualquer previsão legal que obrigue a Caixa Econômica Federal a aceitar proposta de renegociação formulada unilateralmente pelo devedor. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não-provido.
(STJ, Recurso Especial nº 949.955/SC, Primeira Turma – rel. Min. José Delgado, d.j. 10/12/2007, p. 339)
Decisão do TJ/RJ determinando o refinanciamento da dívida contraída pelo consumidor perante a instituição financeira, tendo em vista a onerosidade excessiva dos descontos em folha de pagamento:
Apelação cível. Superendividamento. Ação indenizatória c.c obrigação de fazer com pedido de tutela antecipada. Empréstimo com desconto em folha de pagamento de guarda municipal. Refinanciamento de débito bancário anterior. Relação de consumo antiga. Vários empréstimos feitos anteriormente pelo autor. Desconto de 77,23% em folha de pagamento. Situação de onerosidade excessiva. Refinanciamentos que levam o autor a contratar em estado de perigo. Inteligência dos arts. 6º, V, CDC e 156 NCC. Contrato em branco assinado pelo autor. Redução do valor dos descontos a 30% da margem consignável. Dano moral que se refere à omissão de informações concretas, prévias e verdadeiras ao consumidor. Situação de indignidade financeira. Reforma da sentença. Provimento parcial do recurso.
(TJ/RJ – Recurso de Apelação 2009.001.49002, Quinta Câmara Cível, rel. Des. Cristina Tereza Gaulia, d. j. 15/09/2009)
Infere-se, portanto, que a análise do instituto do superendividamento é casuística e, ante a ausência de normatividade específica, a tutela do consumidor endividado se dá com base na regra geral do artigo 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor, que prescreve quanto à alteração dos contratos que se tornam excessivamente onerosos, bem como da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, que impede, para os contratos excessivamente onerosos, que o cumprimento integral destes se tornem nocivos para a própria subsistência do consumidor, elemento essencial e elo mais frágil das relações de consumo.
CONCLUSÃO
O fenômeno do superendividamento é um dos reflexos da sociedade de consumo que ainda não foi totalmente alcançado pela proteção das esferas de poder do Estado. Trata-se de uma mazela nociva tanto para a relação de consumo, não somente para o pólo do consumidor, que se vê numa posição de impossibilidade de adimplir as obrigações, comprometendo severamente os próprios rendimentos, bem como para o fornecedor, que coloca em risco sua finalidade de lucro ao conceder crédito a um consumidor que não tem capacidade de cumprir.
O superendividamento, no âmbito brasileiro, tem raízes, primariamente, na deficiência na educação para o consumo. O consumidor mal informado, e, principalmente, mal formado, não possui consciência em relação à boa utilização crédito, fator, este, que gera o uso indevido e autofágico.
A defesa do consumidor, por se tratar de matéria de proteção ainda muito recente no ordenamento jurídico pátrio, ainda carece de estudos mais aprofundados e desenvolvimento legislativo para assuntos mais específicos, como o superendividamento. A ausência de normas específicas gera discrepância interpretativa no enfrentamento judiciário das questões.
Além do silêncio do Poder Legislativo, ainda é muito tímida a ação judiciária dos órgãos da sociedade civil e do Ministério Público no que tange à tutela dos direitos coletivos, sobretudo quanto às práticas excessivas das instituições concessoras de crédito e os respectivos juros abusivos em sua busca desenfreada pelo lucro em detrimento do consumidor vulnerável.
Bibliografia:
Banco Central do Brasil em http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM
CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli; MARQUES, Cláudia Lima. Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e Crédito. São Paulo: RT, 2006.
Almeida, João Batista de. Manual de Direito do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.
Cavalieri Filho, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2008.
Araújo Junior, Marco Antonio; Giancolli, Brunno Pandori. 2º edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
GIANCOLI, Brunno Pandori. O superendividamento do consumidor como hipótese de revisão dos contratos de crédito. 2005. 179 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2005.
1MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli, Direitos do Consumidor Endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 256
2Vide “Nota para a imprensa”, http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM ,publicada em 26/10/2011
Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Estagiário de Direito do Ministério Público Federal - PR/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAGO, Rodolfo Barbosa. A disciplina jurídica do superendividamento do consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2012, 09:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29402/a-disciplina-juridica-do-superendividamento-do-consumidor. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Erick Labanca Garcia
Por: Erick Labanca Garcia
Por: ANNA BEATRIZ MENDES FURIA PAGANOTTI
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Precisa estar logado para fazer comentários.