I – Introdução.
Na Roma antiga, a propriedade era coletiva, indivisa, englobando a terra, os animais e os escravos. Tinha como características a perpetuidade, a exclusividade e, praticamente, inexistia limitações.
Há registros de que o Código de Hamurabi, ao tratar da compra e venda de bens móveis e imóveis, regulamentara a propriedade.
Já na Idade Média, com o feudalismo, a propriedade passou a ter um conceito mais limitado. A classe dos proprietários vivia da exploração de terras por meio da força de trabalho dos vassalos, posto que ser dono de bens imóveis era fator de poder.
A crise das relações entre senhores e vassalos desencadeou os ideais da Revolução Francesa, que defendia aqueles que detinham o domínio útil das terras, valorizando a sua utilização efetiva. E conforme o art. 17 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1787, a propriedade passou a ser “um direito inviolável e sagrado” e “ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob a condição de justa e prévia indenização”.
Com o advento das grandes navegações, na Idade Moderna, com a possibilidade de avançar domínios, cresceu a busca pela conquista de novas terras.
Posteriormente, com a Revolução Industrial e o ápice do capitalismo, a concepção individualista da propriedade atingiu seu apogeu.
Porém, com o comunismo de Karl Marx e Friederich Engels, a concepção individualista da propriedade perdeu sua força, uma vez que o Estado passou a ser o único proprietário dos meios de produção, privilegiando a função social da propriedade.
Assim, a propriedade deixou de ser vista como um direito absoluto, exclusivo e perpétuo, flexibilizando-se. A função social da propriedade foi introduzida com o fito de coibir as imperfeições de ordem jurídica ocasionadas pelo uso individualista da propriedade.
Em síntese, a propriedade é concebida como uma situação jurídica subjetiva, com o proprietário particular no polo ativo e todas as demais pessoas no polo passivo.
Nesse sentido, o direito de propriedade é o poder pleno sobre a coisa. Conforme conceito do Código Civil de 2002 é o poder de usar, gozar, dispor e o direito de reaver essa coisa do poder de quem injustamente a detenha. In verbis:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Todavia, tal situação jurídica deve estar em conformidade com a Carta Magna, que em seu art. 5°, XXIII, consagra que “a propriedade atenderá a sua função social”. Dessa forma, por ser um direito fundamental, a propriedade não pode descumprir a sua função social, sendo que o exercício normal de um direito individual tem que estar compatibilizado com os interesses sociais.
Nesse diapasão, existem limitações ao direito de propriedade, as quais podem ser de Direito privado ou de Direito Público. Assim, a própria Constituição Federal, por um aspecto social, traz limitações legais que visam garantir os valores humanos, tais como: restrições, que limitam o caráter absoluto da propriedade; servidões, que são formas de utilização da propriedade alheia e desapropriação, que é o meio pelo qual o Poder Público determina a transferência compulsória da propriedade particular.
Convém lembrar que o art. 6° da Constituição Federal também enfatizou a função social da propriedade ao elencar a moradia como direito social e esta premissa fundamenta institutos como reforma agrária e usucapião rural e urbana. O uso consciente e efetivo do bem imóvel é pré-requisito para o proprietário continuar na posse indireta da coisa.
Destarte, para que seja atingida a função social da propriedade, o proprietário deve observar questões como o cumprimento da legislação social e trabalhista, respeito à ecologia e produtividade.
Por seu turno, a Constituição Federal de 1988 manteve a propriedade e a sua função social como um dos princípios da ordem econômica:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
II – A função social da propriedade urbana.
A Constituição Federal de 1988 inovou ao trazer a figura da função social da propriedade urbana, relacionando-a com as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
(...)
O § 4° do supracitado artigo, permite ao Poder Público municipal impor “sanções” ao uso inapropriado da propriedade urbana. In verbis:
Art. 182. (...)
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Infere-se do retromencionado dispositivo que as “sanções” são progressivas, podendo atingir o ápice com a desapropriação.
Impende salientar que existe outra sanção cabível ao incorreto uso do imóvel urbano, privilegiando aquele que se utiliza adequadamente do mesmo, sendo hipótese de perda da propriedade em virtude de usucapião especial, inserido no texto constitucional através do artigo 183:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Assim, fica clara relatividade da propriedade do espaço físico urbano, uma vez que esta pode ser perdida se o imóvel permanecer sem utilização por parte do proprietário e um terceiro passar a fruir do mesmo para sua moradia, em determinadas condições. Como visto, os bens materiais são finitos, não se justificando que fiquem sob o domínio de quem não está usufruindo da maneira correta.
III – A função social da propriedade rural.
No que tange à propriedade rural, para cumprir corretamente a sua função social, esta deve atender simultaneamente aos requisitos do art. 186 da CF/88. Vejamos:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Desta forma, o texto constitucional expressa claramente as condições ao cumprimento da função social da propriedade rural. São requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Por outro lado, o descumprimento das condições do adequado cumprimento da função social, permite que o Estado, por meio da desapropriação, retire compulsoriamente a propriedade rural do domínio do particular, na forma do art. 184 da CF/88:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§ 2º - O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
§ 3º - Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.
§ 4º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.
§ 5º - São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.
Contudo, o artigo 185 da Constituição Federal de 1988 proíbe desapropriações de pequena propriedade rural ou qualquer propriedade que seja produtiva. Todavia, entende-se que, para os casos em que tais propriedades estejam descumprindo sua função social, não há óbice para que a lei estabeleça sanções diversas da desapropriação.
Ademais, admite-se a desapropriação do imóvel rural para fins de reforma agrária. A Carta Magna, em seu artigo 189, determina que os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de 10 (dez) anos.
IV – Conclusão.
A função social da propriedade é direito fundamental previsto no artigo 5°, XXIII, da Constituição Federal de 1988. Como direito fundamental, não está condicionada à edição de norma hierarquicamente inferior, possuindo aplicação imediata. Assim, a exigência do cumprimento da função social como instrumento de legitimação é pressuposto do direito de propriedade.
Sendo assim, o Poder Judiciário, quando provocado, pode e deve avaliar se a função social da propriedade está sendo cumprida. Para tal, o magistrado pode utilizar-se de parâmetros contidos na Constituição, não lhe sendo permitido se escusar de julgar ou aplicar o princípio da função social da propriedade.
Dessa forma, a função social inibe distorções jurídicas de utilização ilegítima da propriedade, a qual deve estar voltada não apenas para o atendimento das necessidades do proprietário, mas sim para o bem geral de toda a sociedade. Nesse sentido, o artigo 22, § 1° da Convenção Americana de Direitos Humanos, aprovada em 22/11/1969, na Conferência de São José da Costa Rica, estabelece que a lei pode subordinar o uso e o gozo dos bens da propriedade privada ao direito fundamental.
Ante o exposto, conclui-se que a função social é elemento intrínseco à propriedade. Tal entendimento atesta o grau de importância e de correlação máxima entre ambos os conceitos. Desse modo, não há propriedade sem atendimento à função social.
Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal do Estado de Goiás, em exercício na Agência Nacional de Telecomunicações desde agosto de 2008 até a presente data. Atuou por 06 (seis) anos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JULIANA DE ASSIS AIRES GONçALVES, . A Função Social da Propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2012, 09:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29684/a-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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