1. Introdução.
O Caso da Raposa Serra do Sol entrou para a história do Supremo Tribunal Federal como um dos julgamentos mais importantes de nossa Suprema Corte.
Cada voto, portanto, merece minuciosa análise e serve como reflexão acadêmica e é expressão do livre pensar jurídico e de um Estado de Direito em efetivo exercício no país.
Em recente artigo intitulado “O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e o caso da Raposa Serra do Sol julgado pelo Supremo Tribunal Federal: as sobreposições de unidades de conservação com terras indígenas e o regime de dupla afetação”[1] pode-se empreender a uma análise mais ampla do caso com a exposição da posição prevalente dos Ministros da Suprema Corte brasileira.
Não menos importante é o voto vencido do Ministro Marco Aurélio[2] cujas ponderações podem ser objeto de análise, concorde-se com elas ou não. Dessa feita, tem-se por objetivo lançar as motivações do Ministro para desacompanhar os seus pares, numa perspectiva puramente acadêmica.
2. Caso Raposa Serra do Sol
O caso Raposa Serra do Sol se originou a partir de uma ação popular com participação de Senador da República. A ação popular tramitou no Supremo Tribunal Federal por força da Reclamação nº 2.833, em que ficou consignada a atribuição de julgar todos os processos relacionados com a demarcação da reserva indígena “Raposa Serra do Sol”.
O Ministro Ayres Britto, Relator, votou no sentido da legalidade da demarcação contínua das terras indígenas em questão ao que foi acompanhado pelo Ministro Menezes Direito, com a posição de que seriam necessárias condicionantes para adequar o caso.
Para maiores detalhes, recomenda-se a leitura do artigo intitulado “O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e o caso da Raposa Serra do Sol julgado pelo Supremo Tribunal Federal: as sobreposições de unidades de conservação com terras indígenas e o regime de dupla afetação”[3].
3. Voto Vencido do Ministro Marco Aurélio e seus Principais Aspectos[4]
3.1. Eixo Processual
Num extenso voto de aproximadamente 100 páginas, o Ministro iniciou por abordar o que se entendeu por nulidade da ação popular, ante a ausência de citação do Ministro da Justiça e do Presidente da República, ante a exigência da Lei da Ação Popular de litisconsórcio passivo necessário das autoridades relacionadas com o ato que se busca impugnar. Confira-se:
DA NECESSIDADE DE CITAÇÃO DAS AUTORIDADES QUE EDITARAM A PORTARIA Nº 534/2005 E O DECRETO HOMOLOGATÓRIO
Inicialmente, cumpre verificar o que apontado no memorial distribuído pelo ex-ministro Maurício Corrêa:
Cuida-se de ação popular cujo objeto é a anulação da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, que promoveu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Permita apresentar algumas considerações sobre o tema.
2. Na linha do que foi suscitado pelo ilustre Advogado-Geral da União em sua sustentação oral, cumpre chamar a atenção, de início, para a inadequada composição do pólo passivo da demanda. Na forma do artigo 6º da Lei nº 4.717/65 c/c 47 do CPC, a ação popular será proposta contra a pessoa jurídica de direito público e as autoridades que houverem praticado o ato.
3. Entretanto, apenas a União foi intimada a contestar a ação, faltando integrar a lide o senhor Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça que editou a Portaria, e o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República que, com aquele, assinou o decreto homologatório respectivo.
4. Trata-se de litisconsórcio passivo necessário legal cuja formação é pressuposto de validade da relação processual. Por revelar matéria de ordem pública, afeta às condições da ação, pode ser deduzida até mesmo de ofício e em qualquer fase processual. Sim, acertado é o argumento. De acordo com o artigo 6º da Lei nº 4.717/65, “a ação será proposta contra as
pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”Pet 3.388 / RR
Pelo que consta do sítio do Supremo, o que confirmei no exame do processo, as partes da presente ação são as seguintes:
PARTES
Categoria Nome
REQTE.(S) AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO
ADV.(A/S) CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS
ASSIST.(S) FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI
ADV.(A/S) ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS
REQDO.(A/S) UNIÃO
ADV.(A/S) ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
Com efeito, é incontroverso ser múltipla, no âmbito da ação popular, a legitimação passiva, formando-se litisconsórcio necessário composto: (a) pelas pessoas cujo patrimônio se pretende proteger; (b) por aqueles que se diz haverem causado a lesão aos bens tutelados: autoridades públicas, funcionários, entre outros; e (c) pelos beneficiários diretos do ato ou da omissão.
Colho trecho do voto proferido pelo ministro Carlos Madeira – maranhense a quem sucedi nesta cadeira - no Recurso Extraordinário nº 116.750-5/DF, em que abordado o tema:
[...] As autoridades a que faz menção o artigo 6º da Lei 4.717 são quaisquer autoridades – legislativas, inclusive – e têm de ser citadas; quanto a isso, não há dúvida (RDA 85/399).
José Afonso da Silva também sustenta que a lei não discrimina. “Qualquer autoridade, portanto – diz ele – que houver participado do ato impugnado – autorizando-o, aprovando-o, ratificando-o ou praticando-o – deverá ser
citada para a demanda popular, que vise anulá-lo. Assim, desde as autoridades mais elevadas até as de menor gabarito estão sujeitas a figurarem como rés no processo da ação popular. Nem mesmo o Presidente da República, ou o do Supremo Tribunal Federal, ou do Congresso Nacional Pet 3.388 / RR
está imune de ser réu, nesse processo” (Ação Popular Constitucional, 1968, p. 197).
Trago a lição de Hely Lopes Meirelles, em obra atualizada pelo Professor Arnoldo Wald e pelo Presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes 1
[...] Deverão ser citadas para a ação, obrigatoriamente, as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, em nome das quais foi praticado o ato a ser anulado e mais as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado pessoalmente o ato ou firmado o contrato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado
oportunidade à lesão, como também os beneficiários diretos do mesmo ato ou contrato (art. 6º). [...] Em qualquer caso, a ação deverá ser dirigida
contra a entidade lesada, os autores e participantes do ato e os beneficiários do ato ou contrato lesivo ao patrimônio público. É o que se infere do disposto no art. 6º, § 2º.
[...]
Faz relevante verificar a redação dos artigos 6º e 7º da Lei nº 4.717/65 e 47 do Código de Processo Civil: Art. 6º. [...] A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no Artigo 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por
omissas, tiverem dado oportunidade à lesão e contra os beneficiários diretos do mesmo. Art. 7º. A ação obedecerá ao procedimento ordinário, previsto no Código do Processo Civil, observadas as seguintes normas modificativas:
[...]
§ 2º [...]
[...]
1
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 30ª edição, atualizada por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Malheiros. p. 135. Pet 3.388 / RR 9
III - Qualquer pessoa, beneficiada ou responsável pelo ato impugnado, cuja existência ou identidade se torne conhecida no curso do processo e antes de proferida a sentença final de primeira instância, deverá ser citada
para a integração do contraditório, sendo-lhe restituído o prazo para contestação e produção de provas. Salvo quanto a beneficiário, se a citação se houver feito na forma do inciso anterior;
Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá
da citação de todos os litisconsortes no processo. Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto
o processo. A jurisprudência está sedimentada no sentido de que se trata de litisconsórcio passivo necessário e a falta de citação de qualquer servidor ou autoridade partícipes do ato ou contrato impugnado é causa de nulidade do processo 2
Descabe entender que a citação de pessoa jurídica central – a União – dispensa a das autoridades envolvidas na prática do ato atacado, isso considerados os efeitos de uma possível sentença condenatória – artigos 11 e 18 da Lei nº 4.717/65.
Então, cumpre já aqui sanear o processo, citandose como réus desta ação popular o Ministro de Estado da Justiça e Sua Excelência o Presidente da República.
2
Idem. Ibidem. Acórdãos citados: TJSC, ApC nº 01.001230-3, Rel. Des. César Abreu, RT 796/392; TJRJ, ApC nº 4.367/96, Rel. Des. Amaury Arruda de Souza, RF 364/360, e TRF-4ª R. ApC nº 2001.70.00.000102-3-PR, Rel. Juiz Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, RePro 131/219. Pet 3.388 / RR 10
Continuo na abordagem de outros aspectos instrumentais da maior relevância, consignando ser o processo não a forma pela forma, mas liberdade em sentido maior, saber o que pode acontecer na tramitação de uma causa, abrindo-se oportunidade de defesa àqueles cujas situações jurídicas, constituídas, legitimamente ou não, possam ser alcançadas por
ato coercitivo do Estado-Juiz. O direito de defender-se é, antes de mais nada, um direito natural, senão a mola-mestra do processo - o contraditório -, reveladora de predicado da dignidade do homem, fundamento que tenho como síntese dos demais previstos, também,
no artigo 1º da Carta Federal. Sem ele não é dado falar em soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Do homem para o homem há de ser a tônica da vida pública, da vida gregária, a interpretação inafastável do arcabouço normativo pátrio.
Ainda em abordagem relacionada com os aspectos processuais da ação popular, o Ministro enfatizou a ausência de intimação do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Normandia e Pacaraíma, especialmente, pela existência de conflito federativo.
Além da ausência de participação oportuna das entidades já elencadas, o Ministro entendeu pela nulidade processual, ante a falta de intervenção oportuna do Ministério Público e das etnias relacionadas com a demarcação. Quanto à oitiva das etnias, enfatiza mais à frente, novamente, em seu voto, concluindo que “se partiria da premissa errônea de que todas as comunidades desejam seu isolamento”.
Outra linha argumentativa fora desenvolvida pelo Ministro ao vislumbrar a falta de perícia solicitada pelo Supremo, porquanto haveria grande controvérsia envolvendo os laudos periciais e, especialmente, perícia judicial realizada na Justiça Federal de 1ª instância teria chegado a conclusões diversas daquelas produzidas pela Funai.
Para o Ministro, haveria, também, contradição da Corte, ao defender em mandado de segurança ajuizado no STF a necessidade de ampla dilação probatória em ação própria e não a realizar no âmbito da ação popular. Nessa linha, também foi criticada a falta de contraditório a um mapa juntado pelo Ministro Menezes Direito, posto que elaborado pela Funai. Confira-se:
Eis a conclusão dos peritos do Juízo (folha 6245, volume 24):
O que restou provado com esta Perícia é que a FUNAI apresentou e aprovou um relatório completamente inadequado, incorreto, incompleto, e com vícios insanáveis,
para a demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, induzindo o Ministro da Justiça ao erro em baixar a Portaria 820/98.
No âmbito do Supremo e especificamente em relação à demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, existe precedente 9 Ação Popular. Revista de Processo, 32/163. Citado por RODRIGUES, Geisa de Assis. Da Ação Popular. Texto incluído na obra Ações Constitucionais. Organizada por Fredie Didier Jr. Jus Podivm: Rio de Janeiro. 2006. p. 243-244. Cita-se, ainda, o seguinte acórdão: Processual Civil. Ação Popular. Requisição de Documentos. 1 – Na ação popular, ao contrário do procedimento do mandado de segurança, cabe ao juiz requisitar de ofício ou a requerimento do autor popular os documentos necessários à comprovação dos fatos alegados na inicial, independentemente de prova de recusa da repartição pública ou da autoridade que os detém. 2 – Recurso parcialmente provido. 3. Decisão que se reforma em parte. (TRF – 1ª Região, Agravo de Instrumento – 01250107, 1ª T., DJU: 20/03/1997, pg. 16314, Juiz Paluto Ribeiro).
Em última análise, há clara contradição entre as conclusões dos referidos julgados. No primeiro, o Tribunal indeferiu a segurança assentando a necessidade de farta instrução probatória na via ordinária para solução da controvérsia e, na ação popular, seara própria, deixou de determinar a produção de qualquer prova, seja pericial ou testemunhal, apontando o tema como exclusivamente de Direito. Assim não o é. Ao que tudo indica, o relator de ambos os
processos mudou de entendimento sem informar, ao menos de modo explícito e a convencer, a razão. Mas soberano é o Plenário e não qualquer dos integrantes por mais douto que seja.
Com essas ponderações, o Ministro assim arrematou:
Então, cumpre sanear o processo, providenciando se: a) a citação das autoridades que editaram a Portaria nº 534/05 e o Decreto que a homologou; b) a citação do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia; c) a intimação do Ministério Público para acompanhar, desde o início, o processo; d) a citação de todas as etnias indígenas interessadas; e) a produção de prova pericial e testemunhal; f) a citação dos detentores de títulos de propriedade consideradas frações da área envolvida, em especial dos autores de ações em curso no Supremo. Que o Colegiado não silencie sobre essas matérias!
3.2. Eixo de Mérito
Quanto ao mérito, o Ministro afirma que deve ser abandonada uma visão ingênua e que, para ele, o pano de fundo envolvido é a soberania nacional. Veja-se:
Na obra Teoria do Estado, em capítulo intitulado “A crise da integridade do Estado: A ‘Mexicanização’ da Amazônia e o Assalto à Soberania”, Paulo Bonavides traça comparação analógica entre a situação do Brasil contemporâneo com a do México no século XIX, em que tal país perdeu grande parte do original território para os Estados Unidos. Reproduzo trecho de capítulo em que se aborda a questão indígena13:
[...] 8. O assalto à soberania e a ocupação dissimulada da Amazônia, acobertada pela proteção das reservas indígenas Hoje nos países em desenvolvimento desconfia-se de que camufladamente grande parte daquelas sociedades não governamentais e missões religiosas desempenham a mesma função do vilipêndio; na rota da ocupação fingem-se de zelo sacerdotal pela causa indígena ou se credenciam como cientistas do solo, da fauna e da flora. São a ponta de lança da invasão futura. Buscam desse modo conhecer melhor nossas riquezas com o propósito de arrebatá-las depois, consoante já o fizeram nos casos do México e da Colômbia, vítimas da maior tragédia imperialista dos últimos cento e cinqüenta anos na América Latina. Não é sem razão que a demarcação das reservas indígenas, ocorrendo mediante sub-reptícia pressão internacional, em verdade não correspondente aos interesses do nosso índio, mas aos desígnios predatórios da cobiça imperialista, empenhada já na ocupação dissimulada do espaço amazônico e na preparação e proclamação da independência das tribos indígenas como nações encravadas em nosso próprio território, do qual se desmembrariam. Essa demarcação desde muito deixou de ser uma questão de proteção ao silvícola para se converter numa grave ameaça à integridade nacional. A esse respeito o mais alarmante vem dos Estados Unidos onde, na Câmara dos Representantes, se legisla já, com ambigüidades, sobre a proteção dos povos indígenas do Terceiro Mundo.
Com efeito, em 22 de março de 1991, o deputado Benjamin A. Gilman, de Nova York, apresentou àquela Casa um
13 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros. p.392-393. Pet .388 / RR 40 projeto legislativo que oficialmente se intitula “lei para proteger os povos indígenas do mundo inteiro.” Só o título vale para demonstrar a sem-cerimônia, a arrogância e a falta de autoridade com que esse parlamentar estrangeiro, deslembrado do extermínio de seus moicanos e peles-vermelhas, intenta invadir na questão indígena a competência dos parlamentos das nações em desenvolvimento ou subdesenvolvidas. O [O projeto de lei para proteção das populações indígenas internacionais de 1991] “International Indigenous Peoples Protection Act of 1991” tramita por distintas comissões daquela Câmara e determina ao
Secretário de Estado e ao Diretor da Agência Internacional para o Desenvolvimento que subordinem a política externa dos Estados Unidos a essa esdrúxula proteção e sobrevivência cultural dos povos indígenas do mundo inteiro.
Suspeita-se que seja o primeiro grande passo legal e preparatório para legitimar depois, interna e externamente, intervenções como aquela que ontem desmembraram no istmo da América Central o Panamá da Colômbia, e fizeram nascer a república de Noriega, ou anexaram o Texas à União Americana, a expensas do México.
Não é de espantar, portanto, se amanhã os missionários estrangeiros da Amazônia, até mesmo com a cumplicidade das Nações Unidas, proclamarem na reserva
indígena, que cresce de tamanho a cada ano e já tem a superfície de um país de extensão de Portugal, uma república ianomâmi, menos para proteger o índio do que para preservar interesses das superpotências. Incalculáveis riquezas jazem na selva amazônica e a proteção da cultura indígena trouxe a presença ali de cavaleiros que se adestram para segurar as rédeas de um novo e estranho Cavalo de Tróia. O que parece à primeira vista apreensão infundada ou mero pesadelo de Cassandras nacionalistas, bem cedo, se não atalharmos o mal pela raiz, mediante vivência efetiva nas fronteiras do Norte e Oeste, se tornará um fato consumado, uma tragédia, e como todas as tragédias, algo
irremediável. A consciência da nacionalidade, picada de remorso, não saberia depois explicar às gerações futuras com honra e dignidade tanta omissão e descaso. O assalto à soberania está pois em curso. É hora de pensar no Brasil! (...)
Mais recentemente, em 21 de dezembro de 2008, veio novamente a alertar sobre a matéria, fazendo-o presente a importância deste histórico julgamento, em artigo publicado, no jornal Folha de São Paulo, sob o título “11 Cidades de São Paulo”:
...185 milhões de brasileiros podem andar livremente só por 87% do País, mas aos índios garante-se o direito de percorrer 100% do Brasil. Ressaltou:
Um território correspondente a 11 cidades de São Paulo (que tem quase 11 milhões de habitantes) – o que valeria dizer, se habitado nos moldes dessa metrópole, a
mais de 110 milhões de brasileiros – foi praticamente assegurado pelo Supremo Tribunal Federal para apenas 18 mil índios. 14 MARTINS, Ives Gandra da Silva e BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. Vol. 8. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 1.046. Pet 3.388 / RR 42
Também o Deputado Aldo Rebelo – que integra o PC do B – e foi Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional da Câmara dos Deputados, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, revelou grande preocupação com o pano de fundo do conflito ora em exame 15.
Ao ser indagado se era alarmista falar da cobiça internacional sobre a Amazônia, respondeu: As manifestações em favor da submissão da Amazônia a uma espécie de tutela internacional só podem causar repulsa aos brasileiros com o mínimo de dignidade. As declarações e os estudos cobiçando a Amazônia são reais, desde o século XVII. Dom Pedro II, numa carta a Condessa de Barral, já explicava por que não atendeu ao pedido de um conterrâneo meu, então deputado Tavares Bastos, para abrir a calha da Amazônia à navegação estrangeira. Se fizesse isso, disse Dom Pedro, iríamos ter protetorados na Amazônia iguais aos que foram criados na China pelas potências estrangeiras. Sabia o que estava em jogo. Sobre a questão indígena, disse: Fui a uma reserva ianomâmi, perto de um pelotão de fronteira do exército, e visitei uma maloca. Deparei-me com umas cinquenta famílias convivendo dentro de um ambiente fechado, de penúria. Muitos fogos dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem, um ambiente com incidência muito grande de doenças infecciosas. Até tuberculose. Fui recepcionado por uma moça de uma organização não-governamental, a ONG Urihi. Perguntei por que não se puxava do pelotão água e luz para
dentro da comunidade indígena, o que daria mais conforto à população. A moça da ONG disse que não, que isso ia deformar o modo de vida dos índios. Nessa visita, ocomandante militar que estava comigo não pôde entrar na Entrevista veiculada no jornal O Estado de S. Paulo, de 25 de novembro de 2007, trecho transcrito em “Tribalista Indígena – Ideal Comum no Missionário para o Brasil no Século XXI”, de Plínio Correia de Oliveira. Pet 3.388 / RR 43área indígena. Um grupo de crianças jogava futebol, e eu joguei um pouco com elas. Comentei com a moça da ONG: Pelo menos o futebol é um fator de integração, pois todos torcemos pela mesma seleção. A moça me respondeu: Não. O senhor torce pela seleção brasileira e os índios torcem pela seleção deles. Nada mais falei e nada mais perguntei. Continuou, então, quanto ao sintoma revelado pelo quadro: “Vi que havia ali uma incompreensão. Em outro
município perto do Pico da Neblina, as ONG’s barraram, com a ajuda do Judiciário, uma construção do exército. Só depois que a decisão foi revogada na justiça é que o exército pôde fazer a obra”. Questionado acerca da existência de índios que desejariam conviver com os não-índios, afirmou: Uma parcela dos antropólogos defende, com razão, que a cosmogonia dos índios, a visão de seu surgimento e da evolução do universo, é incompatível com a convivência dos brancos e seus costumes. O problema em Roraima é que os índios já estão – de certa forma - integrados. As meninas índias de quinze, dezesseis anos não querem viver mais da pesca, da coleta, não querem andar pela floresta com roupas tradicionais. A aspiração é ter uma vida social, vestir-se como se veste uma adolescente. O isolamento para essas pessoas é uma ameaça, é a perda da possibilidade desta convivência. A cosmogonia tem valor para as populações que não tiveram contato com os não-índios. A seguir, indagado sobre a essência do problema do conflito em Roraima na reserva Raposa Serra do Sol, fez ver: Nós reduzimos o problema a um duelo de pontos de vista sobre se a demarcação contínua é certa ou errada. O certo é que a situação expõe razões que, se consideradas isoladamente, deformam o todo. O que nós queremos? Impor uma derrota aos índios que reivindicam a demarcaçãocontínua? Queremos derrotar os que defendem a demarcação em reservas ilhadas? Simplesmente corresponde à verdade dizer que há ali, na região, apenas meia dúzia de arrozeiros. Quem já esteve lá – e eu estive lá mais de uma vez – e quem leu o relatório da Comissão Externa da Câmara sabe e viu como foram construídos aqueles municípios dos não-índios em Roraima. Tem gente que chegou lá no século XIX e no início do século passado... Pior: o exército costuma ser barrado quando quer entrar numa reserva. Pet 3.388 / RR 44 Quanto ao paradoxismo, quanto à questão geopolítica, asseverou: Há populações na região da reserva Raposa Serra do Sol que vivem ali muito antes de parcela das populações indígenas que atravessaram as fronteiras vindas de guerras tribais do Caribe. Creio que devemos receber e acolher essas populações indígenas juntamente com as populações indígenas que já existiam no Brasil. Mas devemos acolher também, os brasileiros não-índios que ali chegaram há muitos anos e ali construíram suas vidas. Como é que nós podemos simplesmente, em um processo de demarcação, declarar a extinção desses municípios, que é o caso do município de Normandia, que é de 1904, Pacaraima e mesmo Uiramutã. O de Uiramutã, nós conseguimos retirar da lista de extinção em meio a uma negociação difícil. As pessoas tinham ali as suas raízes, a sua infância, suas famílias, sua história. A prefeita de Uiramutã me contou que o avô dela chegou ali em 1908. Como é que nós vamos promover o desterro dessa população? A decisão embute um erro geopolítico. Quem não considera isso um problema grave não está considerando o conjunto do problema. Nós não podemos buscar a solução para o conflito com a exclusão de uma das partes.
No relatório da Comissão da Câmara dos Deputados, de 2004, aparecem notícias preocupantes, que têm origem em visão de dignitários. Al Gore, ex-Vice-Presidente dos Estados Unidos da América, em 1989, chegou a dizer com todas as letras: “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”. François Mitterrand, exPresidente da França, em 1989, veiculou: “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”. Mikhail Gorbachev, ex-Presidente da Rússia, em 1992, bateu em idêntica tecla: “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”. No mesmo sentido foi a fala de John Major, ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, em 1992: “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum de todos no mundo, as campanhas ecologistas internacionais sobre a região Amazônica estão Pet 3.388 / RR 50 deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa, que pode, definitivamente, ensejar intervenções militares diretas sobre a região”. Revela-se, portanto, a necessidade de abandonarse a visão ingênua. O pano de fundo envolvido na espécie é a soberania nacional, a ser defendida passo a passo por todos aqueles que se digam compromissados com o Brasil de amanhã. Essas considerações hão de ficar nos anais do Supremo, para registrar-se o que realmente veio à balha no julgamento desta ação popular.
Outra ponderação de mérito da ação trazida pelo voto em análise diz com a titularidade das terras. Segundo prospecção empreendida pelo voto, haveria terras tituladas pelo Incra na área, confira-se:
Dois fatos podem ser tidos como incontroversos: a) a área em que se situam os Municípios de Uiramutã e Pacaraima, desde os primeiros apontamentos acerca da origem, registra a presença dos índios Macuxi, Ingaricó, Taurepang, Wapixana e Patamona - voto do ministro Maurício Corrêa na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR; b) existem fazendeiros na região detentores de títulos de propriedade de terras cadastradas pelo Incra,
registrados em cartório - voto do ministro Maurício Corrêa na Pet 3.388 / RR 52
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR. Nesse ponto, cabe conferir, ainda, trecho do citado Despacho nº 80, de 20 de dezembro de 1996, posteriormente revogado, do então Ministro da Justiça Nelson Jobim (folhas 945 e 946, volume 4): 4.3.2. Imóveis titulados pelo INCRA Por linha idêntica de raciocínio, tem a Administração Federal o dever ético e político de resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA sobre áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites da terra indígena. O Laudo 1981, na parte sul e sudoeste da área, fez delimitação que não atingia as margens dos rios Tacutu e Surumu.
Respaldado nesse laudo de 1981, parte da área então excluída, no sul e sudeste, veio a ser objeto de titulação de terceiros pelo INCRA, o que ocorreu de 1982 em diante. Impõe-se, assim, o restabelecimento da linha divisória estabelecida em 1981, em decorrência do que ficarão excluídas as propriedades mencionadas, o que, de resto, não trará prejuízos ao projeto demarcatório, em seu todo. Por outro lado, é de se observar que o levantamento antropológico de 1993, posterior ao de 1981, não contém fundamento específico algum que demonstre ser essa parte da área indispensável à preservação indígena. Na verdade, o laudo de 1993 é absolutamente silente quanto a qualquer fundamento revisor, nessa parte, do laudo anterior.
4.3.3. Fazenda Guanabara Igualmente a Fazenda Guanabara, de posse privada antiqüíssima, situada no extremo leste da área (mapa, O-18), deverá ser excluída, sem comprometer a integridade da gleba indígena, à luz dos pressupostos constitucionais. É que o referido imóvel, anteriormente denominado “Cuieria” é de ocupação privada anterior a 1934, desde 1918, consoante reconheceu sentença judicial proferida em ação discriminatória movida pelo INCRA (fls. 31 do processo nº 1959/96). Para não encravar o imóvel, sua exclusão deverá ser feita estendendo-se a respectiva linha divisória para o sul, em direção à cidade de Normandia, o que importará, também, na ampliação do espaço reservado a esse centro urbano. Pet 3.388 / RR 53É esse o contexto que o Supremo não pode simplesmente ignorar, solapando valores maiores, desconhecendo o fato de índios e não-índios serem todos brasileiros, a eles estando assegurada constitucionalmente a “livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens” – inciso XV do artigo 5º da Carta Federal, rol das
garantias constitucionais. Que a visão romântica, calcada em resgate de dívida caduca – e porque não falar dos quilombolas –, seja alijada deste julgamento.
O Ministro traz ainda ponderações acerca do laudo pericial e do procedimento de demarcação:
O autor argumenta ter a Portaria nº 534 mantido os vícios da antiga Portaria nº 820, quais sejam, aqueles apontados em perícia realizada na Ação Popular nº 1999.42.00.000014-7, ajuizada por Silvino Lopes da Silva, que tramitou perante Vara Federal de Roraima e foi extinta em face da perda de objeto. Afirma haver a Comissão de Peritos, antes mesmo de apresentar resposta aos quesitos, concluído, por unanimidade, o seguinte (folhas 7 e 8):
Que seja considerada nula de pleno direito a Portaria 820, de 11 de dezembro de 1998, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, que declarou de posse indígena a “terra indígena Raposa Serra do Sol”, por ter sido ato praticado após a vigência do Decreto 1.775/96, e não se ter pautado pelas normas ali prescritas, além de Pet 3.388 / RR 54 todo o processo ter sido eivado de erros e vícios insanáveis, tais como: i. Contou com a participação parcial de apenas um dos lados dos indígenas, o dos que defendem a demarcação em área contínua; ii. Teve a participação do Governo do Estado completamente comprometida, inclusive, por omissão e descaso do próprio Governo Estadual, à época; iii. A academia não foi devidamente convidada a participar, nem participou como deveria; iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única representante das entidades religiosas, com dois representantes; v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, não participaram nem foram convidados a participar do grupo técnico;
vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais atores não foram sequer considerados; vii. O Grupo Interinstitucional de trabalho não apresentou “relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada” como manda o parágrafo 7º do Art. 2º do Decreto nº 22, de 04.02.91 (vigente à época), sobre o procedimento
administrativo de demarcação das terras indígenas; viii. O relatório apresentado pela antropóloga é uma coletânea de peças completamente independentes, sem formar um corpo lógico tendente a indicar qualquer tipo de demarcação; ix. O relatório não contém análise alguma da qual se possa tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais como:
a. Reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacionais; b. Reflexos sobre a importância da região para a economia do Estado de Roraima; x. O laudo antropológico da FUNAI (apresentado pela antropóloga MARIA GUIOMAR) é uma reprodução, sem novidade alguma, de laudo anteriormente apresentado para justificar outro tipo de demarcação para as mesmas terras da Raposa Serra do Sol; xi. A Portaria 820/98 englobou na demarcação das
terras indígenas Raposa Serra do Sol a área constante do Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto 97.887, de 28.07.89; Pet 3.388 / RR 55 xii. A Portaria 820/98 englobou a área de 90.000 há dos Ingarikós, já demarcada anteriormente por meio da Portaria Interministerial nº 154, de 11.06.89, sem maiores explicações. A conclusão semelhante chegou a Câmara dos Deputados, conforme relatório da Comissão Externa constituída para avaliar, no local, a situação da demarcação em área contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Eis o que consta à folha 6566 à 6568, volume 25: [...]
Os trabalhos desta Comissão mostraram que o processo de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol foi desenvolvido de forma irregular, contendo ilegalidades e inconstitucionalidades. A elaboração de peças centrais do Laudo Antropológico por entidades ligadas à defesa dos direitos indígenas compromete a sua isenção, em prejuízo dos princípios da impessoalidade e da razoabilidade da atuação da Administração Pública. Outrossim, o Laudo não comprova com o devido detalhamento e profundidade o atendimento aos requisitos do art. 231 da Constituição, como expressamente reconhecido no Despacho nº 80/96, do Ministério da Justiça. Há contradição insolúvel entre a decisão das contestações administrativas à área pretendida, expressa no Despacho nº 80/96, e a Portaria de Identificação nº 820/98, ambos do Ministério da Justiça. A exclusão de áreas que não se caracterizam como indígenas ordenada pelo Despacho não foi efetuada pela Portaria, em violação ao art. 2º, §8º e § 10, inciso III, do Decreto nº 1.775, de 1996, e em contradição aos motivos declarados pela Administração no procedimento administrativo de demarcação. Tal procedimento sujeita a Portaria à anulação pela Administração, e ao controle pelo Poder Judiciário. Considerando as falhas havidas no processo demarcatório, a Portaria nº 820/98 inclui em área indígena terras que não atendem aos requisitos do artigo 231 da Constituição Federal. A Portaria é, portanto, inconstitucional. A atual delimitação da área indígena Raposa/Serra do Sol trouxe prejuízos para a segurança jurídica na região, violando direitos adquiridos e a autoridade da coisa julgada, em flagrante inconstitucionalidade. Pet 3.388 / RR
56Sendo a Constituição Federal um sistema normativo, é equívoco interpretar seu art. 231 isoladamente, como único fundamento constitucional para a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol e das terras indígenas em geral. O conteúdo do art. 231 deve ser compatibilizado com outros dispositivos constitucionais (e.g. soberania, art. 1; segurança nacional, art. 91, § 1º; autonomia federativa, art. 18; devido processo legal, art. 5º, LIV; garantia da propriedade, art. 5º, XXII) e princípios gerais da ordem jurídica (e.g. proteção da boa fé dos atos jurídicos), de forma a que se atinja um equilíbrio entre os direitos das partes envolvidas). A supressão do Município de Uiramutã, como conseqüência da Portaria nº 820/98, viola a autonomia de ente federado criado segundo regular processo constitucional, legitimado mediante consulta plebiscitária às populações interessadas. A situação da área Raposa/Serra do Sol em faixa de fronteira recomenda a oitiva do Conselho de Defesa
Nacional, nos termos do art. 91, §1º, III, da Constituição Federal.
É certo que o interesse de proteção das comunidades indígenas há de ser respeitado, nos moldes doart. 231 da Constituição Federal. Cumpre entretanto lembrar que a Constituição é patrimônio de todos os brasileiros. A proteção que ela oferece vai muito além do citado artigo e suas disposições alcançam cada grupo, cada etnia e cada cidadão, para que na proteção de cada um de nós o bem coletivo se realize. Sendo a Carta Magna uma unidade normativa cabe interpretar a proteção ao interesse das comunidades indígenas de forma a não prejudicar – no caso gravemente – interesses legítimos e igualmente tutelados pelo texto constitucional. Caberá ao Poder Executivo da União, ente competente para a solução da controvérsia aqui exposta, ter sabedoria para concretizar esse objetivo. Já o Ministério Público Federal, no parecer defolha 398 a 400 - volume 2 -, no qual se manifestou pela improcedência do pedido formulado, conclui em sentido diverso: [...] 29. Em termos concretos, e seguindo o propósito do constituinte, uma vez positivada a tutela dos povos indígenas, a ação administrativa dá corpo ao modelo adotado, obedecendo ao regime legal em vigor – Decreto nº 1.775/96 e, antes dele, o Decreto nº 22/91 -, que encerra as seguintes fases: (i) estudo multidisciplinar, conduzido por antropólogo, como adiantado, que indicará os limites do território em conformidade com o art. 231 da Constituição Pet 3.388 / RR 57da República; (ii) designação de grupo técnico especializado com a finalidade de realizar estudos complementares, “composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional”; (iii) encaminhamento do resultado do trabalho ao Presidente da FUNAI, que opublicará, em sendo aprovado, no Diário Oficial da União e no da unidade federada onde se localizar a área objeto de demarcação; (iv) abertura de prazo para impugnações, “desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação” referida, que serão julgadas pela FUNAI; (v) remessa do procedimento ao Ministério da Justiça, que
poderá declarar, por portaria, os limites da terra indígena, prescrever as diligências que julgar necessárias ou desaprovar a identificação. 30. No caso estudado, da ‘Terra Indígena Raposa
Serra do Sol’, tome-se como posição do Ministério Público Federal a plena regularidade do procedimento administrativo que resultou no ato demarcatório/homologatório impugnado, porque fundado em consistente estudo antropológico, assim como criterioso na verificação de todas as fases procedimentais exigidas pela ordem legal, seguindo o pronunciamento já mencionado da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da instituição, que o acompanhou em todas as suas etapas (documento anexo). 31. Especificamente em relação ao contraditório e
à ampla defesa – ponto atacado com maior ênfase -, o que abarca a alegação de participação deficitária de grupos e entidades determinadas no procedimento demarcatório,
verifica-se rigoroso respeito aos comandos do Decreto nº 1.775/96, em especial aos seus arts. 2º, § 8º, e 9º, já declarados legítimos, como efetivos garantidores dos princípios citados, pelo Plenário dessa Corte, quando do julgamento do MS º 24.045, DJ de 5.8.2005, e MS 25.483, DJ de 14.9.2007. 32. O estudo antropológico prescrito pelo ato normativo foi realizado por profissional habilitado para tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só fato de haver sido assinado por um único perito quando a lei não exige modo diverso. Ali, está demonstrada não só a posse tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre toda a extensão da área, como a necessidade de demarcação da faixa contínua de terras, de maneira a preservar a cultura indígena nos moldes já descritos. 33. Verificada, por meio dos estudos cabíveis, a presença dos elementos contidos no art. 231, § 1º, da Constituição da República, caracterizada está a posse indígena, devendo prevalecer sobre qualquer outra, porque essencial ao exercício da identidade do grupo, cabendo à União protegê-la e fazer respeitar todos os seus bens, assegurando-se ainda aos índios o usufruto exclusivo das
riquezas ali existentes. A proteção, nesse nível, é efetivada por meio do ato demarcatório de competência do Ministério da Justiça, que será homologado, em seguida, por Decreto do Presidente da República. Pet 3.388 / RR 58 34. Aí a origem da Portaria nº 534/2005 e do decreto homologatório da demarcação, de 15 de abril do mesmo ano, livres, como visto, dos vícios formais apontados, cabendo afastar, com base nas informações prestadas pelas autoridades rés e no art. 3º do Decreto nº 1.775/96 – segundo o qual “os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos [naquele] Decreto” -, a alegação de que a edição da nova portaria, revogadora daquela de 1998 (de nº 820), deveria vir como conseqüência de procedimento absolutamente desvinculado daquele que precedeu a edição do ato anterior.
Quanto ao laudo, ele também é bastante criticado por ter sido assinado apenas por um técnico. O Ministro também traz diversas ponderações sobre os aspectos econômicos e a perda potencial para o Estado de Roraima. Também o Ministro entendeu pela necessidade de oitiva prévia do Conselho de Defesa Nacional, ante ao que ele entendeu pela ausência de urgência do caso objeto do julgamento.
4. Conclusões
Por fim, o Ministro conclui seu voto afirmando:
É hora de finalizar este voto de mérito, que reconheço já ir longe. O tema impôs-me uma reflexão maior, em que pese não ter frutificado o pedido antecipado de vista - o qual resultaria no terceiro voto e não no nono - em face da circunstância de os colegas que me antecedem na ordem de votação não haverem consentido. Paciência, o Colegiado sempre reserva algumas surpresas. Nem por isso - a documentação o comprova - Pet 3.388 / RR 120 deixei de debruçar-me sobre a momentosa controvérsia, procedendo como se fosse relator do processo, procedendo como se tivesse que veicular o primeiro voto no caso.
Concorde-se ou não com as ponderações feitas pelo Exmo. Ministro Marco Aurélio, trata-se da posição fixada por um Ministro do Supremo Tribunal Federal cuja divergência fixada somente fortalece as posições majoritárias da Suprema Corte, posto que se demonstra a independência com que os votos são proferidos.
Registre-se, como é fato por todos sabido, que as ponderações trazidas no voto ora analisado não foram acompanhados pelos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal.
5. Referências Bibliográficas
Brasil. Legislação. Constituição Federal.
Brasil. Legislação. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000.
Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3.388-4.
[1] No prelo.
[2] Nesse sentido, convém reproduzir trecho do prefácio colhido no sítio do Consultor Jurídico de autoria de Sérgio Bermudes da obra Vencedor e Vencido (Editoria Forense): “O gosto de sentir a prevalência de seus votos não leva o Ministro MARCO AURÉLIO a buscar a adesão do Tribunal, à custa das suas convicções, embora ele compreenda que, por vezes, seja necessário abdicar de um entendimento pessoal e seguir a maioria, quando não se trata de transigir com os fundamentos da sua crença quanto ao modo de exercer a missão a que foi convocado. A divergência não o assusta, nem combale a sua determinação, ainda quando o deixe em posição solitária.” (Disponível em: http://www.conjur.com.br/2006-dez-05/livro_apresenta_pensamento_singular_marco_aurelio . Acesso em 24/06/12).
[3] No prelo.
[4] Íntegra do voto disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388MA.pdf . Acesso em 24/06/12.
Procurador Federal/AGU/PGF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Carlos Vitor Andrade. O Voto Vencido do Exmo. Ministro Marco Aurélio no Caso da Raposa Serra do Sol julgado pelo Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2012, 08:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29806/o-voto-vencido-do-exmo-ministro-marco-aurelio-no-caso-da-raposa-serra-do-sol-julgado-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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