RESUMO: Este artigo teve o objetivo de estabelecer uma discussão acerca da aplicação dos Direitos da personalidade previstos no novo Código Civil a partir da colisão entre distintos direitos fundamentais em um específico caso concreto, o qual envolve a questão dos transplantes no Brasil, e da consequente dificuldade em seestabelecer uma decisão diante das possíveis consequências advindas da opção pela mesma, a partir de uma análise crítica da escolha realizada naquele momento bastante complicado.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais. Direitos da Personalidade. Colisão. Vida. Integridade física.
INTRODUÇÃO
O Código Civil Brasileiro de 2002 diferencia-se substancialmente do Código de 1916, então vigente no Brasil, pela previsão de uma nova perspectiva de direitos, conhecida comumente pela categoria de Direitos de Personalidade e cujas principais características são: estar situado em um âmbito mais particular da pessoa; não ser apreciável economicamente e compreender diversas representações imprescindíveis à garantia da proteção plena e eficaz do ser humano, dentre os quais se destaca a integridade física, um aspecto fundamental da personalidade, cujo propósito consiste em proteger juridicamente o corpo humano em si, esteja ele vivo ou morto.
Nessa conjuntura, faz-se de bom alvitre refletir sobre um caso prático bastante pertinente ao direito de personalidade discutido: a questão dos transplantes, a qual envolve a retirada de partes destacáveis do corpo de um determinado indivíduo com problemas de funcionamento para a implantação de novos organismos semelhantes aos retirados a fim de proporcionar à pessoa a preservação de sua saúde e até a própria sobrevivência em algumas situações.
O assunto relativo às transplantações é elencado com o intuito de estabelecer uma reflexão acerca do problema concernente à doação de órgãos no Brasil. Para melhor ilustrá-la, analisar-se-á um episódio o qual envolveu um pai e seu filho de cinco anos, detentor de uma enfermidade apenas possível de ser tratada mediante uma doação de rim por parte de alguém dotado de características fisiológicas semelhantes às do menor, a partir do comportamento, poder-se-ia dizer, ousado, do senhor em relação à situação de seu descendente e das possíveis conseqüências decorrentes da opção paterna nas vidas dos dois envolvidos nesta circunstância.
A partir da apreciação deste episódio, surgirão vários questionamentos, entre os quais valem ser destacados: Seria algo aceitável ou não um pai, vendo o filho – o qual ele ajudou a criar – agonizar, tomar uma decisão em contrariedade com o calor da situação? Que circunstâncias levam a uma decisão nem sempre compreensível por todos aqueles relacionados, direta ou indiretamente, ao fato em questionamento? É possível um determinado indivíduo doar partes do próprio corpo sem ser prejudicado no funcionamento do próprio corpo, isto é, sem estar suscetível a enfermidades as quais poderiam levar a morte? Em alguns casos, a pessoa poderá doar órgãos por vontade própria ou necessitará do consentimento de familiares para fazê-lo? O processo de transplantes é realizado de forma justa no Brasil?
Todas estas interrogações acerca de um dos episódios mais polêmicos de que já se possui registro e detentor de uma conexão com os Direitos da Personalidade serão respondidas no decorrer da análise deste caso.
O TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E A COLISÃO ENTRE DIREITOS A PARTIR DO CASO CONCRETO
A questão envolvendo a realização de transplantes de órgãos é algo bastante controverso não apenas pela possibilidade existente de determinado indivíduo dispor gratuitamente partes de seu próprio corpo, a qual origina questões principalmente de cunhos ético e jurídico, mas também pela verificação de um conflito entre três direitos essenciais à preservação da espécie humana, dois deles instituídos no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 – a vida e a liberdade – e um deles positivado no Código Civil de 2002, embora nem por isso menos importante ao resguardo completo e virtuoso do indivíduo – a integridade física.
De modo a tentar elucidar o leitor, a transplantação consiste no ato de tirar um órgão, ou parte dele, de um indivíduo, denominado doador, para introduzi-lo em outra pessoa, a qual será a receptora do organismo retirado. Por esta mera definição, ela proporciona polêmicas na medida em que se questiona a dignidade e a moralidade de um ato considerado ousado ao levar-se em consideração o indivíduo que doa, mas tido como muito importante caso o referencial observado para o debate acerca do referido tema seja o receptor de órgãos, haja vista a finalidade solidária desta atitude, a qual consiste em socorrer pessoas doentias as quais estavam à beira da morte.
Diante disso, um aspecto interessante de ser destacado é o fato de a pessoa poder doar suas partes do corpo a qualquer momento, inclusive após o seu falecimento. Nesta perspectiva, o Código Civil Brasileiro de 2002 dispõe, mediante o artigo 14, o seguinte: “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”. Pelo que se pode compreender, um dispositivo de um código permite a alguém dispor livremente de seu próprio cadáver para fins de transplante ou tratamento até depois do óbito.
Entretanto, a Lei 9434/97 estabelece que uma possível disposição do corpo deva obedecer a certos limites. Entre os quais, o fato de apenas poderem ser passíveis de doação os órgãos duplos e partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo que, retiradas, não apresentem riscos a saúde do indivíduo, disposição expressa no artigo 9º, parágrafo 3º da referida lei. Além disso, somente indivíduos maiores de 18 anos e plenamente capazes poderão exercer tal ato. Caso algum ser considerado incapaz pela legislação desejar fazer uma doação de órgãos, ele dependerá, sobretudo, de uma autorização judicial a qual possibilite a prática dessa ação.
Apesar das regulamentações impostas pela Lei 9434/97, a condição mais importante e necessária para a prática de um ato de disposição de órgãos é o fato de esta iniciativa ter a obrigação de ser algo louvável em prol da solidariedade humana e não poder ser pautada, em nenhuma hipótese, por interesses de quaisquer espécies, como pode ser verificado em Doneda (2005, p.87):
O artigo 14 formaliza o entendimento sobre a possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo para após a morte. É vedada a exploração econômica do mesmo e as finalidades da disposição são delimitadas: científicas ou altruísticas.
Por outro lado, a doação não é obrigatória, o que pode ser constatado mediante a leitura do artigo 15 do Código Civil/2002, o qual diz: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” Além da não obrigação, o indivíduo ainda possui o direito de dissuadir de uma possível intenção a doar partes do seu corpo antes de efetivá-la, o qual é previsto por um dispositivo da norma que regulamenta os transplantes no Brasil – o artigo 9º, parágrafo 5º, Lei 9434/97 –, que profere: “A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização”.
Após elencar diversos dispositivos acerca da disposição de partes do corpo humano, chegará o momento de aplicá-los, principalmente os dois últimos, em uma situação verificada no cotidiano e que merece ser analisada pela sua complexidade, a qual ocorre devido à colisão de distintos preceitos fundamentais. Tal episódio foi retirado de Pedra (2007, p. 18) e os seus registros são os seguintes:
Uma criança de cinco anos foi diagnosticada por uma equipe médica, a qual detectou, após a realização de alguns exames, a existência de uma insuficiência renal progressiva. Os médicos decidiram, então, submeter a pessoa a um tratamento de hemodiálise para buscar uma melhora em seu estado de saúde, que paulatinamente se agravava. Contudo, ela não se adaptava a esta terapêutica e restou como única alternativa, no intuito de salvar a criança da provável morte, a doação de um rim por parte do pai, o qual possuía características anatômicas e circulatórias semelhantes às possuídas pelo filho.
Perante a situação dramática enfrentada pela criança, esperava-se que o pai, por uma questão de solidariedade humana, pudesse conceder o órgão necessário à sobrevivência de seu filho. No entanto, ele, em um desfecho surpreendente, decidiu não cedê-lo sob a alegação de possuir medo da cirurgia de retirada desse. Os médicos, diante de uma atitude inesperada, decidiram criar um argumento o qual a sustentasse e, ao mesmo tempo, encobertasse o verdadeiro motivo da não doação. Nesse âmbito, a tese utilizada foi a de que o pai não poderia doar por razões médicas.
Com base nestas circunstâncias, verifica-se a complexidade da questão elencada, haja vista a decisão paterna ir totalmente a contraponto de características próprias de uma relação existente entre pai e filho, tais como solidariedade, compaixão e, em alguns casos, sacrifício, o que demonstra ser uma ilusão pensar que tais fatores estabelecerão, por eles apenas, uma tendência à prática de transplantes de órgãos. O encontro entre princípios tidos como fundamentais – a liberdade, a integridade física e a vida, este último sob dois aspectos (o paterno e o do filho) – influenciou significativamente na conduta do pai na medida em que este decidiu não realizar a cirurgia de transplantação por um motivo considerado, de certo modo, compreensível: a retirada de um dos rins poderia debilitá-lo a partir do momento em que ele tivesse enfermidades futuras e não dispusesse de mecanismos suficientes para controlá-las, situação a qual poderia ocasionar um possível óbito.
Além disso, o pai encontra sustentação juridicamente legal com a finalidade de justificar o seu ato, mediante o artigo 15 do CC/2002, colmatado com o artigo 9º, parágrafo 5º da Lei 9434/97, versar sobre a não obrigatoriedade da doação de órgãos. Diante de um argumento válido no âmbito jurídico, ele mostrou-se determinado a preservar a sua integridade física, como se permite perceber em Coelho (2003 apud FARIAS e ROSENVALD, 2011, p. 187):
Qualquer pessoa, em vida, pode manifestar a expressa vontade de não ser doadora, hipótese em que a retirada de órgãos, tecidos ou partes não se realizará nem mesmo com a autorização do familiar. A lei reconhece plena eficácia a esse ato, apesar do egoísmo impar.
Entretanto, a conduta do pai não pode ser aceitável se for avaliada sob o ponto de vista ético e moral, uma vez que ele poderia superar o medo possuído da cirurgia de transplante para ajudar o filho, principalmente no que pese o fato de ser o parente mais próximo do indivíduo acometido, além de possuir as mesmas características fisiológicas da criança, razões pelas quais ele poderia salvá-la e evitar que ela esperasse um longo período a caminho da fatalidade até um possível surgimento de algum voluntário o qual reunisse condições as quais impeçam o seu falecimento. A espera por uma alma caridosa, não obstante, é prevista pelo caput do artigo 9º da Lei 9434/97, o qual dispõe:
É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
A partir da leitura do fragmento acima, percebe-se que o ato realizado pelo indivíduo de disposição de partes do seu corpo, em vida, para outra pessoa, a qual também é viva, necessita de uma permissão emitida pelo Poder Judiciário, licença a qual é expedida após um significativo período de tempo e, em virtude disso, termina por, muitas vezes, não ocorrer, haja vista que o necessitado vai a óbito durante a expectativa pela autorização judicial.
Para se ter uma noção de quão é demorada a emissão de uma licença para doar órgãos, tomar-se-á o exemplo do transplante renal. No Brasil, pode-se constatar na contemporaneidade um alto índice de pacientes os quais aguardam a oportunidade de algum indivíduo disponibilizar um rim para doação em virtude, sobretudo, do baixo número de operações realizadas no referido país, como pode ser verificado em Busato (2001):
Hoje, no Brasil, aproximadamente 35.000 pacientes com insuficiência renal crônica estão em tratamento pela diálise. Destes, somente três mil conseguem ser transplantados anualmente. A razão dessa longa fila de espera se deve ao pequeno número anual de transplantes renais. No Brasil, só conseguimos transplantar 10 % dos pacientes que estão na lista de espera.
Além disso, a mortalidade em hemodiálise em todo o mundo e no Brasil é da ordem anual de 15 a 25 %. Se somarmos os pacientes transplantados (10 %) aos que morrem em hemodiálise (15 a 25 %) restam anualmente 65 a 75 % de pacientes na lista de espera. A esse grupo deve-se somar os novos renais crônicos que surgem todo o ano, em torno de 35 a 50 para cada um milhão de habitantes.
No entanto, o processo burocrático existente no Brasil, o qual termina por restringir a realização de transplantes no referido país, não apenas se constitui no único fator existente que promove óbitos na espera por uma operação dessa natureza. As disparidades proporcionadas pela própria legislação, ao estabelecer uma única fila de espera a qual atenda todos os indivíduos necessitados de um órgão sem considerar as especificidades de cada situação, também contribuem para o fato de esta fileira, muitas vezes, não ser respeitada, principalmente ao se ter em vista a recente constatação de um tráfico de organismos, o qual favorece pessoas com maior poder aquisitivo e que, por essa condição, poderiam adquirir a parte do corpo que necessitasse para fazerem a operação de transplante.
A propósito, este comércio ilegal, como poderia ser denominado, adveio, sobretudo, da própria legislação brasileira, a qual facilitava anteriormente o processo para se tornar um doador de órgãos de maneira que, para obter o título de concessor de partes do próprio corpo, bastava o indivíduo apenas exprimir sua própria vontade em doá-los. Diante desta circunstância, os legisladores emendaram a Lei 9434/97 a partir da criação de outra norma jurídica – a Lei 10211/01 –, a qual dispõe que a doação post morrem, isto é, a doação de organismos por parte da pessoa após o seu falecimento dependerá de autorização do cônjuge ou parente maior de idade até o segundo grau, com o intuito claro de garantir o respeito máximo à fileira de espera estabelecida pelo legislador brasileiro para a realização dos transplantes de órgãos.
Caso esta revoltante situação fosse trazida para o episódio em análise, seria como se o pai morresse e seu rim que ele relutava em doar fosse retirado do corpo por alguém o qual não fosse médico e tivesse um destino diverso do esperado, ou seja, o transplante ocorreria não no filho à beira da morte, e sim em alguém alheio à situação paterna e que, provavelmente, gozava de situação econômica saudável. Esta hipotética situação poderia ter sido ponderada pelo pai no momento em que decidiu não ceder em vida o seu rim à criança doentia, apenas fazendo-o em ocorrência de morte mediante a permissão da família, a qual seria totalmente favorável ao transplante que salvaria o filho da morte.
A partir da análise da postura paterna em não conceder o rim ao seu descendente mais próximo, faz-se importante registrar o fato de ele não demonstrar qualquer remorso quanto às possíveis consequências ocasionadas pela sua decisão, considerada muito arriscada pelo fato de pôr alguém – no caso, o seu filho – em uma situação de vida ou morte a qual poderia ser evitada se o pai superasse o medo e transplantasse um de seus rins. Esta afirmação de sua atitude ocorre ao menos enquanto a criança sobrevive, pois uma possível morte desta pela não ocorrência de transplantação poderia mudar completamente o comportamento do pai, o qual provavelmente se julgaria covarde e, em certo ponto, moralmente culpado pelo óbito, pois eliminou quaisquer chances de sobrevivência do filho a partir da prevalência de suas fraquezas em um momento decisivo para a própria vivência do pai enquanto pessoa.
Diante de uma abordagem psicológica, verifica-se que o indivíduo arriscou-se a ser condenado à eterna culpa pelo próprio consciente ao utilizar o seu medo de forma mais intensa, se comparado com a esperança de curar o seu filho de uma enfermidade a qual mostrara não possuir tratamento para o indivíduo doentio – a insuficiência renal progressiva.
Pois bem, a análise do episódio apenas reforça o fato de o indivíduo cometer um crime, uma vez que, ao buscar a defesa de sua integridade física, reduziu as chances de sobrevivência do próprio filho que ele, como pai, auxiliou na sua criação e no seu desenvolvimento. Esta posição poderia ser considerada, caso o episódio fosse hipoteticamente trazido para o âmbito do Direito Penal, um “homicídio doloso” – aquele no qual se verifica a intenção de matar, pois o pai sabia do problema grave de saúde pelo qual o filho passava e da necessidade de seu tratamento, e mesmo assim não concedeu um organismo seu ao filho.
Na perspectiva jurídica, isso fere o direito à vida, previsto no caput do artigo 5º e considerado não um direito como um fim de si, mas sim para a realização de um valor. Apesar disso, é inviolável pelo fato de ser o ápice da situação existencial do indivíduo, o que pode ser verificado em Amaral (2003 apud GONÇALVES, 2011, p. 193):
A vida humana é o bem supremo. Preexiste ao direito e deve ser respeitada por todos. É bem jurídico fundamental, uma vez que se constitui na origem e suporte dos demais direitos. Sua extinção põe fim à condição de ser humano e a todas as manifestações jurídicas que se apoiam nessa condição.
A mesma situação, caso seja analisada à luz dos Direitos de Personalidade positivados no Código Civil de 2002, infringirá um princípio a ser perseguido pela referida codificação: a socialidade, paradigma o qual trouxe uma nova realidade que atingiu o arcabouço das relações privadas de tal modo que houvesse uma prevalência dos aspectos sociais em detrimento dos individuais. Predomínio esse o qual teria a finalidade de garantir o bem comum como um elemento imprescindível ao perfeito estabelecimento dos vínculos travados entre os particulares na coletividade.
Dentre os princípios de socialidade existentes no Código Civil de 2002, destaca-se a função social da propriedade, a qual receberá especial proteção dos Direitos de Personalidade pelo fato de o mencionado documento prever o exercício de tais direitos em conformidade com os papéis sociais detidos pelos domínios, o que pode ser verificado mediante a leitura do artigo 1228, parágrafo 1º do CC/2002, dispositivo o qual dispõe o seguinte:
O direito de personalidade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades [...] sociais [...].
A partir da análise da norma jurídica, perceber-se-á um argumento paterno juridicamente equivocado na medida em que o pai exerceu um Direito de Personalidade – a proteção à integridade física – em contraponto à finalidade social de ajudar o próximo mediante a concessão ao seu filho de um rim o qual seria imprescindível a ele, visto o fato de depender do órgão transplantado para fins de sobrevivência, e não causaria deficiência ao doador, uma vez que este goza de excelentes condições de saúde em relação ao indivíduo doentio e ainda o seu corpo poderia funcionar perfeitamente com apenas um rim.
Portanto, pode-se dizer que o pai, no âmbito do Direito Civil, cometera uma violação ao Direito de Personalidade conhecido como integridade física, ao agir de forma a não respeitar sua função social – proteger o corpo e, ao mesmo tempo, preservar a vida da pessoa humana –, embora houvesse uma lei que permitisse ao indivíduo praticar a conduta que exercitou e, consequentemente, garantisse fundamentação legal ao ato paterno.
Todavia, a defesa do argumento pelo qual se justificaria a não doação de órgãos, apesar de parecer consistente pelo fato de o pai possuir medo quanto ao resultado da cirurgia de transplante, revela-se parcialmente frágil por esse motivo. Caso a pessoa realmente tenha algum temor quanto à violação à integridade física, ela não poderia fazer coleta de sangue tampouco tomar vacinas contra quaisquer tipos de enfermidades, haja vista que esses atos, apesar de imprescindíveis para a preservação da saúde do indivíduo, também representariam agressões à integridade física desse.
Dentro desse contexto, é proveitoso observar também a verificação de um estudo histórico realizado nos Estados Unidos e divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo em 11/03/2010, o qual informa a seguinte compreensão: os indivíduos que doam um de seus rins vivem da mesma forma que aqueles os quais sobrevivem com dois. Este fato é possível de ser comprovado em virtude do seguinte registro obtido pela análise: a cada 10 mil doadores, apenas 3 sofrem complicações fatais depois de decorridos 3 meses da realização do transplante. Isso representa um risco de falecimento seis vezes menor ao verificado em intervenções comuns no corpo humano, tais como a remoção da vesícula biliar. Depreende-se, portanto, que o transplante renal é uma operação bastante segura e, na maioria das situações, não causa danos graves os quais poderiam levar o indivíduo a morte.
Deste modo, a postura do pai de uma criança com cinco anos de idade a qual necessita de um rim não merece ser vista como aceitável, uma vez que ele agiu de modo a se preservar enquanto o caráter maior da questão elencada no presente trabalho seria a vida do filho, pela qual o ascendente reuniu todos os esforços possíveis para garanti-la com dignidade, além de o sujeito do caso em questão, diante de uma complexa colisão entre distintos direitos fundamentais, optar pelo exercício de um direito – a proteção á integridade física – em desacordo com a função social da propriedade, princípio o qual terá por intuito assegurar o perfeito estabelecimento das relações sociais travadas entre os particulares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação elencada – o fato de o pai da criança com cinco anos não querer doar um de seus rins ao filho acometido de insuficiência renal progressiva por segurança física – poderia ser considerada banal, principalmente ao se ter em vista o fato de o amor e a solidariedade para com o próximo conseguir superar, na maioria dos casos, os medos existentes, o que tenderia a levar o pai ao sacrifício nesses momentos.
No entanto, o pai, embora equivocado e até ‘maldoso’ para com seu filho no intuito de buscar a sua defesa, não agira de má-fé. Ele sabia dos riscos inerentes à cirurgia de retirada de órgãos, a qual poderia ser bem ou malsucedida, dependendo dos profissionais que a realizem. Em hipótese de fracasso na operação, o paciente torna-se mais suscetível a doenças, pode ficar com sequelas ou até vir a óbito no caso de a parte retirada do corpo ser insubstituível. Por esse motivo, justificou-se a preocupação do pai e decisão decorrente dessa.
Diante deste risco, a decisão paterna, juridicamente válida ao mesmo tempo em que é incorreta no aspecto moral, certamente terá efeitos psicológicos sobre o consciente do indivíduo, em especial na hipótese de falecimento do filho. Neste caso, o pai possivelmente considerar-se-á um indivíduo fraco, fatalmente não conseguirá olhar para sua família com a mesma alegria outrora existente e entrará em profunda depressão pelo fato de ter ‘assassinado’ o seu próprio filho a partir da não concessão de um rim.
Assim, evidenciou-se, neste episódio recém-analisado, um exemplo claro da colisão entre distintos direitos fundamentais – no caso, a liberdade, a integridade física e a vida – e a influência desse choque nas diversas escolhas realizadas pelo ser humano no decorrer de sua vivência em sociedade, o qual as faz na maioria das situações de modo a preservar a sua dignidade e o bem tanto seu quanto dos familiares. Isso, todavia, não foi verificado na situação analisada a partir da opção pela integridade física em detrimento de, quem sabe, a vida de uma criança doentia de cinco anos com insuficiência renal progressiva.
REFERÊNCIAS
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BUSATO, Otto. Transplante Renal. Artigo ABC da Saúde, 2001. Revisão, 2010.Disponível em:<http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?418>. Acesso em 16 set. 2010.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
DOAR rim não reduz expectativa de vida, mostra estudo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estudo-mostra-que-doar-rim-nao-reduz-expectativa-de-vida,522638,0.htm>. Acesso em 16 set. 2011.
DONEDA, Danilo. Os Direitos da Personalidade no Código Civil. In: _____________. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos de Goitacases: Faculdade de Direito de Campos, p. 71-100, jan-jun. 2005.
FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2011.
MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang et al. (orgs.) Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Revista e Ampliada. 3ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 77-96.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. Transplante de órgãos e o biodireito constitucional. In: GARCIA, Maria. Revista de Direito Constitucional e Internacional – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 7-24, out-dez. 2007.
Graduando do curso de direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Frederico de Bortoli. Colisão entre direitos fundamentais: a dificuldade em se tomar uma decisão neste momento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33630/colisao-entre-direitos-fundamentais-a-dificuldade-em-se-tomar-uma-decisao-neste-momento. Acesso em: 22 nov 2024.
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