Sumário: 1. Introdução; 2. Dos Direitos Fundamentais; 2.1. Os Direitos Fundamentais e o Princípio da Proibição do Retrocesso Social; 2.2. Cláusula da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial como conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais; 3. Conclusão; 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Entende-se por Direitos Fundamentais os direitos subjetivos aplicáveis nas relações das pessoas com o Estado e na sociedade, positivados na Constituição Federal ou em normas infraconstitucionais. São qualificados como fundamentais não apenas aqueles enumerados na Constituição Federal, mas também os direitos equiparáveis, pelo seu objeto e pela sua importância, aos direitos de natureza constitucional.
São estes direitos, ao mesmo tempo, um tipo especial de direito subjetivo, que outorga a seus titulares a possibilidade de reivindicar que se torne efetivo um determinado comportamento em respeito à dignidade humana, e elemento constitutivo do direito objetivo compondo a base do ordenamento jurídico onde a afirmação e garantia dos Direitos Fundamentais legitimam o Estado de Direito.
A titularidade de tal direito é conferida às pessoas naturais (sejam elas brasileiras, estrangeiras ou apátridas) e a pessoas jurídicas, que disponham de capacidade de fato ou de exercício, ou não. A sua fruição não depende da aptidão intelectual do seu titular.
Embora o Poder Público seja o sujeito passivo, por excelência, dos Direitos Fundamentais, hoje é pacífico o entendimento segundo o qual esses mesmos direitos são aplicáveis no campo do Direito Privado, visto que não existe relação jurídica que possa se afastar dos preceitos básicos desses direitos. É inconcebível a idéia que possam ser afastados os direitos que sustentem a proteção da dignidade humana de qualquer relação social, tendo em mente que a todos os homens é assegurada a proteção de sua dignidade, independente de raça, cor, credo, ou qualquer outro diferencial.
No presente estudo faremos uma abordagem geral a respeito dos direitos fundamentais com enfoque no princípio da proibição do retrocesso, bem como nas cláusulas da reserva do possível e do mínimo existencial.
2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A existência e aplicação dos Direitos Fundamentais são justificadas por correntes doutrinárias distintas. Segundo a teoria realista a partir da Proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 não há mais dúvidas sobre a existência e necessidade de aplicação dos direitos humanos, mas da criação de mecanismos de proteção e de efetivação. Com a concordância da grande maioria dos Estados esse tema se tornou fato consumado e sem justificativas para a sua negação. Não seria mais uma questão filosófica, mas política. Eles existem e necessitam de uma atividade estatal mais concreta para sua realização. Esta teoria foi elaborada por Noberto Bobbio.
No entanto, a teoria jusnaturalista defende a possibilidade de justificação racional dos direitos humanos fundada na existência de valores, princípios e regras que possuem validade universal, objetiva e absoluta, independente da consciência ou experiência dos indivíduos. A aplicação desses direitos no ordenamento jurídico são de aplicação imediata e universal, não sendo necessário um procedimento especial dentro do ordenamento jurídico. Logo, a positivação desses direitos teria mera natureza declaratória. Seriam direitos que precedem a própria organização da sociedade e a elaboração de um ordenamento jurídico, em razão disso sua positivação em leis seria apenas uma confirmação de sua existência, e não sua criação.
Já a teoria juspositivista questiona a possibilidade de justificação racional dos direitos humanos. De acordo com seu maior representante, Hans Kelsen (1998), uma norma somente possui validade na medida em que tenha sido produzida de maneira determinada por outra norma. Sendo assim, é necessário que os Direitos Fundamentais do homem sejam determinados objetivamente e positivados no ordenamento jurídico para serem válidos.
Assim, como destacado por Thiago Lima Breus (2007), os Direitos Fundamentais apresentam os seguintes aspectos: as normas que os vinculam são hierarquicamente superiores às demais normas; possuem limitação constitucional de reforma e emendas; têm aplicabilidade imediata; e vinculam todos os poderes. Os atos da Administração Pública estão vinculados aos Direitos Fundamentais, uma vez que podem ser invalidados caso os desrespeitem. Da mesma forma não podem advir de aplicação de lei ou ato normativo inválido. Ao Judiciário cabe regular a concretização desses direitos, tanto na atividade pública como nas relações privadas.
A eficácia dos Direitos Fundamentais no âmbito do Direito Público ocorre em todas as suas atividades. Na atividade legislativa, os Direitos Fundamentais devem ser respeitados na confecção das leis, tanto em seu processo de formação como em seu conteúdo, inclusive na imperatividade da construção de normas indispensáveis à regulamentação desses direitos. Ou seja, não poderão ser promulgadas normas que contrariem ou ofendam o bem jurídico protegido pelos Direitos Fundamentais. Assim como não poderá o Poder Legislativo deixar de editar normas que se façam necessárias para o cumprimento efetivo dos direitos referidos acima.
Os Direitos Fundamentais, segundo Guilherme Penã Moraes (2008), caracterizam-se basicamente por serem inalienáveis, históricos e relativos. A inalienabilidade indica que tais direitos não podem ser renunciados ou ser objeto de negócios jurídicos que importem em transmissão de sua titularidade.
A historicidade significa que os Direitos Fundamentais se renovam ao longo do tempo, podendo ser retratados em gerações. Isso possibilita um caráter de permanente atualidade que resguarda, para a sociedade, os novos direitos que surgem diante de situações inéditas até então.
A relatividade, por sua vez, retrata a possibilidade de colisão entre os Direitos Fundamentais. Situação que deverá ser resolvida pelo mecanismo de ponderação, responsável por gerar uma harmonia entre os princípios a fim de alcançar uma resultante mais efetiva, onde não se perca a essência da garantia dos direitos em jogo.
Segundo Edilsom Farias (1996), essa ponderação significa o ajuste dos bens jurídicos na busca da solução do conflito dos Direitos Fundamentais com o menor sacrifício dos valores constitucionais. O intérprete, durante a ponderação, utilizar-se-á dos princípios da concordância prática, da unidade da Constituição e da razoabilidade.
A dignidade da pessoa humana também deverá valer-se de norte na ponderação entre a efetivação dos Direitos Fundamentais em colisão, posto ser valor atribuidor de unidade teológica aos princípios e normas do ordenamento jurídico, assegurando o reconhecimento e proteção dos Direitos Fundamentais.
No pensamento de José Afonso da Silva (2007), a tais características seriam acrescidas a imprescritibilidade e a irrenunciabilidade. Gilmar Ferreira Mendes (2002) anota como características o fato desses direito serem universais e absolutos, constitucionalizados, de vincularem os Poderes Públicos à sua aplicação e á sua aplicabilidade imediata.
No que diz respeito às gerações dos Direitos Fundamentais, atualmente reconhece-se a existência de cinco destas. Paulo Bonavides (2012) ensina que na classificação dos Direitos Fundamentais, o vocábulo “dimensão” substitui com vantagem lógica e qualitativa a expressão “geração”, vez que esta sugere um sentido de sucessão cronológica de direitos, com a idéia de declínio dos direitos antecedentes, o que é inverídico, visto que os Direitos Fundamentais, ainda que situados em dimensões distintas, convivem harmonicamente.
A primeira geração surge no contexto da Revolução Francesa e funda-se na idéia de liberdade. Os direitos de primeira geração têm o dever de abstenção do Estado frente a determinadas liberdades do indivíduo, conforme preleciona Gilmar Ferreira Mendes (2002). São garantidores da liberdade do indivíduo contra os abusos cometidos pelo Estado. Esta geração estabeleceu os direitos civis e políticos, ou seja, as liberdades públicas. São exemplos desses direitos a liberdade de ir e vir, a inviolabilidade do domicílio, a liberdade religiosa e a liberdade de associação.
Esses direitos também são chamados de negativos, uma vez que impõem ao Estado uma obrigação negativa, qual seja a de não interferir nas liberdades individuais do cidadão.
A segunda geração é informada pela igualdade. Busca-se não somente a igualdade perante a lei, mas a igualdade material ou real. Essa geração de direitos surge no contexto da Revolução Industrial.
São considerados de segunda dimensão os direitos sociais, econômicos e culturais. Esses direitos exigem do Estado uma prestação, por isso são direitos positivos. Nasce para o Estado o dever de intervir em algumas relações privadas, a exemplo das relações trabalhistas, a fim de evitar concorrências desleais. É obrigação do Estado ainda fornecer condições ou prestação de serviços necessários a digna sobrevivência do indivíduo que não possui recursos financeiros para realizá-los sem intervenção estatal. São exemplos desses direitos: educação, saúde, trabalho, lazer, moradia, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância.
A terceira geração fundamenta-se na idéia de fraternidade, abrangendo os direitos à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente equilibrado e sadio, à proteção ao patrimônio cultural, e ao direito do consumidor, dentre outros. São direitos transindividuais ou também chamados de direitos de solidariedade, vez que traduzem uma responsabilidade coletiva no tocante ao total desenvolvimento dos seres humanos.
Em relação aos direitos de quarta e quinta geração não há consenso doutrinário. Norberto Bobbio (1992) defende a posição segundo a qual são de quarta geração os direitos ligados à genética e são direitos de quinta dimensão aqueles referente à cibernética.
Os Direitos Fundamentais podem também classificar-se, segundo Gilmar Mendes (2002), como direito de defesa (ou de ações negativas), direito a prestações (ou de ações positivas) ou direitos de participação. Os primeiros são os direitos de garantem as liberdades individuais, tais como direito à liberdade, à intimidade, à propriedade, entre outros. Esses direitos exigem uma abstenção do Estado, daí falar-se em ações negativas.
Os direitos a prestação, por sua vez, exigem uma ação objetiva do Estado que vise efetivar os direitos contidos na norma. Versa, em geral, sobre os direitos sociais: seguro desemprego, escolas, atendimento médico, etc.
Esses direitos buscam minimizar as diferenças de oportunidades na sociedade por meio de uma distribuição mais equitativa das riquezas. Em razão disto, é necessário que haja recursos para sua efetivação. Por vezes, o Estado é obrigado a fazer uma escolha para o uso das verbas, em razão da restrição dos recursos econômicos. Diante deste obstáculo, diz-se que os direitos prestacionais encontram limite na reserva do possível.
Em contrapartida, a cláusula da proibição do retrocesso impede que prestações já efetivadas sejam removidas do mundo fático.
Os direitos de participação asseguram aos cidadãos o poder o intervirem na formação do país. Seja na criação de associações e movimentos sociais pacíficos, seja por intermédio do exercício dos direitos políticos.
Outra categorização dos Direitos Fundamentais é feita conforme os critérios formal e material. No aspecto formal os Direitos Fundamentais são aqueles cuja Constituição, seus princípios, bem como os acordos, tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário os declara como tal. O critério material refere-se ao conteúdo tutelado pelos Direitos Fundamentais expresso na Constituição Federal, sobretudo os instituídos no seu artigo 5°.
Segundo Sarlet (2001, p. 82), Direitos Fundamentais são:
“[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância, (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos fundamentalidade formal, bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados. agregando-se à Constituição material, tendo ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do catálogo).”
Há um sistema protecional dos Direitos Fundamentais composto por diferentes mecanismos providos de natureza normativa, institucional ou processual.
O mecanismo normativo de proteção consiste na cláusula pétrea ou limitação material explícita ao poder constituinte reformador. Esta cláusula impede que o poder reformador toque na essência dos institutos elencados no artigo 60, § 4º, da CF.
Os mecanismos institucionais são executados pelo Poder Judiciário, Funções Essenciais à Justiça e Tribunais de Contas. Por meio do controle de constitucionalidade e do controle dos atos administrativos, o poder judiciário torna ineficaz leis e atos normativos que violam Direitos Fundamentais. Há ainda a Defensoria Pública e o Ministério Público que, dentre outras funções, possuem o dever institucional de viabilizar a proteção de interesses públicos sociais indisponíveis.
A atuação dos Tribunais de Contas ocorre no controle da execução orçamentária, que pode ser feito através do julgamento de atos da administração que gerem prejuízo ao erário, ou pelo julgamento das contas prestadas pelos administradores. Havendo lesão ou ameaça a algum direito fundamental objeto de fiscalização, a efetividade das decisões definitivas adotadas pelo Tribunal de Contas é assegurada com a expedição de medidas cautelares determinadas pelo Poder Judiciário.
Os mecanismos processuais de proteção dos Direitos Fundamentais, por sua vez, são realizados pelos remédios constitucionais, que são ações de cunho constitucional que buscam efetivar as garantias constitucionais dos Direitos Fundamentais. São eles: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, a ação popular e a ação civil pública.
2.1 Os Direitos Fundamentais e o Princípio da Proibição do Retrocesso Social
Ao estabelecer na Constituição previsão de Direitos Fundamentais, o constituinte originário impõe que sejam atendidas todas as fases para a efetivação de tais direitos. Ademais, é necessário que haja uma certeza de que esses direitos não possam ser cerceados por ausência de amparo normativo hábil.
A Carta Magna gera para o legislador o dever de promulgar leis que assegurem a concretização dos Direitos Fundamentais Sociais, bem como estatui que as leis responsáveis por esta função não sejam revogadas, sem que haja uma norma substitutiva. É intolerável também a restrição arbitrária ou desproporcional da base normativa infraconstitucional de um direito social.
No instante em que um direito social é concretizado, este adquire o status de direito de defesa, assim sendo, o Estado deve agir visando ao desenvolvimento ou a conservação dos níveis gerais de tutela social auferidos anteriormente.
Cumpre ressaltar que os Direitos Fundamentais estão consubstanciados nas cláusulas pétreas, sendo vedada, portanto, a sua supressão, bem como uma inadequada restrição de seus efeitos.
Conforme instrui Thiago Lima Breus (2007), a proibição do retrocesso social ligado aos princípios da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana e está expresso na constituição por meio de alguns institutos, tais como: direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada; limitações constitucionais às restrições legislativas aos Direitos Fundamentais; limites materiais ao poder de reforma da Constituição; e vedação de produção normativa que leve ao retrocesso na concretização dos Direitos Fundamentais.
Canotilho (1999) assevera em sua obra que o princípio da proibição do retrocesso social ganhou destaque na jurisprudência portuguesa no Acórdão do TC de Portugal n. 39/84 (DR, 1, 5-5-84).
Referido acórdão a inconstitucionalidade do DL nº. 245/82, o qual revogara grande parte da Lei nº. 15/79, criadora do Serviço Nacional de Saúde, aduzindo o seguinte:
“[...] a partir do momento que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.” (grifo nosso)
O acórdão supra expõe com clareza a proteção exercida pelo princípio da proibição do retrocesso social sobre os Direitos Fundamentais, vez que justifica um limite à ação do interprete e do legislador, proibindo-o de realizar mudanças que impliquem um retrocesso na área juridicamente protegida pelo direito fundamental em discussão.
Na jurisprudência brasileira, defrontamo-nos com o emprego desse princípio em decisão do TRF da 4ª Região (Apelação Cível n. 2006.72.99.000635-6/SC) na qual um adolescente postulava o benefício previdenciário pela morte de sua avó, que era sua guardiã. Com fundamento no princípio da proibição do retrocesso, prevaleceu o Estatuto da Criança e do Adolescente sobre a Lei nº. 8.213/91, que negava o direito pleiteado pelo autor da ação, assegurando assim a pensão previdenciária do adolescente.
Suzana Toledo de Barros (1996) considera haver conflito entre o princípio da proibição do retrocesso, enquanto garantidor dos Direitos Fundamentais Sociais perante a lei, e o princípio da autonomia do legislador.
2.2 Cláusula da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial como conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais
Em um quadro de contínuo progresso, é notável a expansão dos Direitos Fundamentais na doutrina e jurisprudência nacional e internacional. Exemplo disso é a Constituição Federal Brasileira de 1988, que dedicou um título a este assunto (Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais).
Entretanto, a normatização destes direitos não assegura, por si só, seu total cumprimento por parte dos órgãos públicos. Compete ao titular, em havendo violação de seus Direitos Fundamentais, utilizar-se dos meios legais cabíveis a fim de segurar-lhes o respeito e a efetivação.
A conquista dos Direitos Fundamentais pelos cidadãos se deu por meio de inúmeras batalhas empreendidas e não pela benevolência do Estado. Tais conquistas buscam assegurar o mínimo essencial à dignidade da pessoa humana, sem que o Estado possa exercer nenhuma discricionariedade sobre isto. Trata-se, pois, de uma garantia absoluta a ser resguardada pelo Estado Democrático de Direito.
O Mínimo Existencial consiste na essência dos Direitos Fundamentais, impossível de ser relativizado. É inatingível e funciona como uma barreira para a atuação do Estado. Assim, pode ser considerado como um núcleo fundamental, sem o qual não existiria o direito. Deste modo os direitos sociais que exorbitem o Mínimo Existencial sujeitam-se a restrições pelo legislador.
Embora o Mínimo Existencial não esteja expresso no ordenamento jurídico brasileiro, este encontra fundamento no princípio da dignidade humana. Este instituto é intrínseco à definição de Direitos Fundamentais. Conforme ensinamentos de Ingo Sarlet (2008), o mínimo necessário para a existência humana digna é um direito cujo Estado não pode intervir e que reclama prestações positivas dele.
Dessa forma, a cláusula do Mínimo Existencial pode ser observada sob dois aspectos: uma dimensão positiva, que abrange a prestação de serviços pelo Estado e uma dimensão negativa, que consiste numa margem de proteção aos Direitos Fundamentais de cada indivíduo contra ações de Estado ou outros particulares.
Pode ainda ser conceituado o Mínimo Existencial como a reunião de prestações materiais essenciais à garantia de uma vida digna a cada indivíduo. Neste sentido afirma Ana Paula de Barcellos em sua obra:
“O Mínimo Existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência ai considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento.” (2002, p. 45, grifo nosso)
Corroborando essa idéia, Ricardo Augusto Dias da Silva (2010) conceitua o Mínimo Existencial como “condições mínimas que o individuo necessita para viver dignamente e não somente sobreviver no aspecto vital como pessoa” (grifo nosso) e ressalta que esta cláusula deve ser atendida por meio de “políticas públicas e demais ações estatais e da sociedade civil”.
Conceitua Sarlet (2004, p. 60/61):
“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Destarte, concluímos que o Mínimo Existencial está além do necessário para a sobrevivência humana. É imprescindível que proporcione uma vida digna, ou seja, que se evolua com qualidade nos âmbitos físico, psicológico e social.
Neste sentido o Ministro Celso de Mello afirma no Recurso Extraordinário nº 436996/SP:
“(...) não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder público, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições mínimas de existência (...) a clausula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo, não poderá ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”
Induvidoso, pela análise da decisão acima, que os cidadãos têm o direito de requerer ao Poder Judiciário as condições mínimas de existência que não forem asseguradas pelo Estado.
O posicionamento jurisprudencial que tem prevalecido nos tribunais superiores é o de assegurar a concretização das garantias fundamentais dos cidadãos a despeito do entendimento de que a questão orçamentária consiste num empecilho à efetivação dos Direitos Fundamentais.
A Cláusula da Reserva do Possível surgiu na Alemanha , na década de 1970 como objeto limitador à ação do Estatal na implementação de políticas públicas. No Brasil, tem sido reiteradamente utilizada pela Administração Pública como justificativa para eximir-se da responsabilidade do cumprimento de direitos prestacionais em favor da sociedade. Direitos estes constitucionalmente assegurados e imprescindíveis à dignidade da pessoa humana.
A reserva do possível é classificada em fática ou jurídica. Entende-se que a reserva fática consiste na impossibilidade da prestação dos serviços em razão de inexistência de orçamento disponível nos cofres públicos. A jurídica diz respeito à indisponibilidade de previsão orçamentária que autorize a efetuação da despesa.
Entende-se, no entanto, que a Cláusula da Reserva do Possível não pode ser aplicada como fator limitante à efetivação do Mínimo Existencial.
O Mínimo Existencial sujeita-se ao crivo da reserva legal, especialmente da lei orçamentária. Na ausência de norma do direito positivo que garanta a efetivação dos Direitos Fundamentais, o Mínimo Existencial submete-se à atuação da Administração ou do Legislativo, ainda que não dependa da discricionariedade destes Poderes. Neste caso, compete à Administração definir o conteúdo do Mínimo Existencial. Entretanto, em havendo a previsão da reserva legal na lei orçamentária a Administração fica estritamente vinculada a esta.
Saliente-se que no Estado Democrático de Direito deve-se ampliar ao máximo as possibilidades de efetivação da garantia do Mínimo Existencial. Tanto maior valoração deverá ser aplicada ao direito social pretendido, quanto maior for a necessidade material a ele relacionada. Preleciona Ricardo Lobo Torres (2003, p. 351):
“As imunidades e os privilégios dos pobres e as suas pretensões à assistência requerem interpretação extensiva. Embora paradoxal, o Mínimo Existencial protege ricos e pobres dentro do limite necessário à defesa da liberdade. As políticas públicas, inclusive judicializadas, devem garantir o máximodo Mínimo Existencial, e não apenas o mínimo do Mínimo Existencial.”
Em países emergentes, onde a sobrevivência da maioria da população ainda depende da efetivação de políticas públicas, o Mínimo Existencial deve alcançar dimensões superiores, se comparados aos países desenvolvidos.
3. CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais são essenciais no ordenamento jurídico pátrio. Estes constituem um mínimo de direitos assegurados aos cidadãos pela Constituição Federal, a fim de proporcionar uma vida digna a cada indivíduo. Em regra, estão dispostos na Constituição Federal, contudo há direitos não positivados na Carta Magna que, pela sua importância, equiparam-se a eles.
A observância a estes direitos gera para o Estado obrigações positivas e negativas. Ou seja, o Estado está obrigado a agir (obrigação positiva) a fim de atender aos direitos fundamentais e é seu dever também se abster (obrigação negativa) de violar qualquer direito fundamental previsto no ordenamento jurídico.
Dessa forma, os Direitos Fundamentais passaram a ser o ponto de destaque de todo o planejamento das ações a serem desenvolvidas pelo Estado, sobretudo na implementação de políticas públicas, que se definem como a atividade do Estado voltada para a prestação de serviços e condições materiais que possibilitem às pessoas menos favorecidas economicamente um Mínimo Existencial garantidor da dignidade humana, constitucionalmente protegida.
Exsurge da hermenêutica constitucional a obrigatoriedade do cumprimento de um Mínimo Existencial, capaz de efetivar o núcleo essencial dos Direitos Fundamentais, preservando a dignidade humana e proibindo o retrocesso das condições já alcançadas por essas políticas públicas. O Estado, em contrapartida, tem feito um constante apelo à Cláusula da Reserva do Possível a fim de desvencilhar-se do cumprimento destas obrigações.
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Procurador Federal, Membro da Advocacia Geral da União. Graduado pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-graduado em Direito do Trabalho. Pós-graduando em Direito Administrativo e Direito Penal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Felipe Grangeiro de. Os direitos fundamentais à luz do princípio da proibição do retrocesso social e da cláusula de reserva do possível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35216/os-direitos-fundamentais-a-luz-do-principio-da-proibicao-do-retrocesso-social-e-da-clausula-de-reserva-do-possivel. Acesso em: 22 nov 2024.
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