As reflexões ora em foco têm por inspiração estudo[1] realizado logo após a edição da súmula vinculante n. 29 e que sugeria cuidadosa reflexão diante de sua peculiar redação, que parecia (e ainda parece) sugerir verdadeira reestruturação das bases dogmáticas do Direito Tributário. Vale adiantar que referida súmula declarou constitucional, a adoção, no cálculo do valor da taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não viesse a ocorrer a integral identidade entre uma base e outra.
Tal redação nos surpreendeu desde o início, na medida em que trazia à baila instrumentos paradigmáticos da Ciência Tributária, ao mesmo tempo em que contribuía para a já fragilizada contextualização do instituto das súmulas vinculantes no universo jurídico brasileiro.
Não há como passar incólume ante o conteúdo desta súmula, quanto mais tendo-se por referência dispositivos legais que balizam, praticamente de forma absoluta (ainda que a relativização seja muitas vezes a tônica da Ciência Jurídica), a matéria objeto de reflexão. A Constituição Federal de 1988 é de clareza pontual. Proíbe, no §2º do seu artigo 145, que as taxas tenham base de cálculo própria de impostos e tal circunstância já seria suficiente para impulsionar discussões acerca do conteúdo da súmula em evidência. Citado dispositivo constitucional reforça uma realidade indissociável: a de que sua existência se dá em função do contribuinte e não do Fisco, representando verdadeira limitação ao poder de tributar. Exatamente por isso, como norma que importa em verdadeiro freio ao poder de tributar, não há de se cogitar em interpretações extensivas, principalmente se estas se derem em franco prejuízo do contribuinte. A súmula vinculante em análise, como se verá, contraria toda esta lógica.
O cidadão não pode ficar à mercê de posicionamento tão emblemático que acaba por escancarar as fragilidades estruturais das súmulas vinculantes como um todo e que vem sendo utilizadas de forma indiscriminada.
Exatamente por isto, forçoso iniciarmos toda esta reflexão, partindo da construção do instituto das súmulas vinculantes em nosso ordenamento, desde seus primórdios, com a dita Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45/2004, como solução para a falta de uniformidade e imprevisibilidade das decisões judiciais), até o momento em que passou a ser alvo de sucessivas críticas (muitas delas, como se verá, oportunas).
Na sequência, enfrentar-se-á, de forma categórica, o conteúdo da súmula vinculante 29, a fim de se contextualizar todo o cenário no qual a mesma se construiu, passando-se, finalmente, para a atualização do estudo, verificando-se, se ao longo dos últimos anos, a se contar de fevereiro de 2010 (ano de sua edição) se citada súmula realmente possui real valia e uso recorrente em nosso ordenamento e se isso trouxe alguma consequência para o Direito Tributário.
Contabilizam-se, até o momento, 32 (trinta e duas) súmulas vinculantes editadas (fazendo-se a observação de que a súmula vinculante 30 teve sua publicação suspensa) pelo Supremo Tribunal Federal, seu órgão editor. Desde a primeira súmula editada, outros tantos projetos se formalizaram e o ritmo com que esses institutos se propagaram, nos deu a impressão inicial de que o número de súmulas vinculantes superaria rapidamente as súmulas sem efeito vinculante (que hoje são 736[2]) e igualmente editadas pela Corte Superior.
Este freio abrupto no número de súmulas editadas (a última súmula vinculante, a de n. 32, data de 16.02.2011[3]) reflete, hoje, não mais como em nosso discurso inicial presente no estudo anteriormente proposto, a crença e a necessidade de reafirmação de citado instituto. As súmulas vinculantes são instrumentos que merecem ser constantemente postos à prova (e o são, via procedimentos de cancelamento e revisão) para que não se incorra em impropriedades que ainda persistem e da qual a súmula vinculante n. 29, a nosso ver, é referência. Vale pontuar, também a título de exemplo, que a súmula vinculante n. 11, que trata do uso de algemas é objeto de pedido de cancelamento desde sua mais “tenra idade”.
De toda forma, o que se propõe neste momento, é um reforço na análise acerca dos reais contornos deste instituto, pontuando os meandros de sua edição e passando por elaboradas críticas que colocam seu valor em xeque.
A princípio, vale referenciar que as súmulas vinculantes surgiram em nosso ordenamento como uma alternativa de se contrapor a um cenário jurídico de recorrente insegurança jurídica e falta de celeridade.
De toda forma, vale a lembrança de que o Supremo Tribunal Federal, como inclusive já antecipamos, edita súmulas há algum tempo, mas essas não são dotadas de força vinculativa, tendo apenas caráter interpretativo. Ademais a obviedade desta afirmativa, é assente na doutrina o entendimento de que o efeito vinculante das decisões de Tribunais Superiores não traz inovação alguma. Neste sentido desponta a lição de Nelson de Sousa Sampaio, para quem o efeito das decisões de Tribunais Superiores sobre os atos de instâncias inferiores não configura novidade, estando presente no próprio desempenho da missão do Judiciário, mormente quanto à crescente extensão de seus efeitos, escalonando-se os atos dos juízes em sentença clássica, precedente, sentença normativa, jurisprudência vinculante, atos quase legislativos e plenamente legislativos[4].
Ademais o parêntese, não há como negar, que o grande diferencial do instituto ora tratado é seu efeito vinculante, e é exatamente neste ponto que o mesmo, introduzido em nosso ordenamento pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, torna-se tão diferenciado.
O artigo 103-A da Constituição Federal dispõe, basicamente, que o Supremo Tribunal Federal poderá (de ofício ou por provocação), mediante quórum qualificado de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
De citado artigo muito se absorve, retirando-se as características elementares do instituto, senão vejamos: sua edição por parte do Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação; a matéria objeto de aprovação – constitucional (e após reiteradas decisões sobre a matéria) – e, finalmente, seu já apontado caráter vinculante.
De toda forma, desmembrando as características pontificadas, um ponto ressoa de forma recorrente no presente trabalho: a norma constitucional explicita que a súmula terá por objetivo superar controvérsia atual sobre a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas capazes de gerar insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos[5].
Oportuno insistir nesta premissa, uma vez que, caso a súmula vinculante não venha cumprir esses requisitos constitucionais substanciais (art. 103-A, §1º, CF), repita-se, a supressão da grave insegurança jurídica e a multiplicação de processos sobre questão idêntica, estaremos diante de situação onde o Poder Judiciário estará extravasando seu mandato constitucional, sob risco de se representar ofensa a preceito constitucional indissociável, qual seja, do Princípio da separação dos poderes.
Nestas linhas preliminares já é possível concluir que, apesar da pretendida operacionalidade na adoção das súmulas vinculantes, bem como de sua celebrada inserção em nosso ordenamento, esta vem sendo duramente criticada, não lhe faltando ferrenhos opositores.
Se seus defensores visualizam nas súmulas vinculantes um instrumento apto a efetivar a celeridade, a economia processual e a harmonização do ordenamento, seus opositores questionam, principalmente, seu caráter despótico em relação ao livre convencimento motivado do órgão julgador e o inevitável desequilíbrio no Princípio da separação dos poderes.
Habermas critica a ausência de discurso na formação de tais súmulas. Pontifica que a aparente legalidade do instituto nada apresenta de legítimo aos jurisdicionados. Despidos de dialética, os destinatários da norma não participam da produção do direito. A decisão ignoraria a alocução das partes, tornando-se uma ação estanque e singular do juiz[6].
E não é só isso. Existem vários outros pontos de atrito entre a positivação das súmulas vinculantes e o direito posto. A começar pela transgressão ao princípio constitucional da legalidade, perfazendo, segundo Djanira Maria Radamés de Sá[7], a insustentável situação de “subversão do sistema jurídico nacional pela inversão da ordem de prevalência das fontes do direito”.
Não se pode deixar de mencionar ainda, o não menos instigante entendimento que aponta para ofensa ao direito de petição (e reflexamente ao princípio constitucional da inafastabilidade do Judiciário – artigo 5º, XXXV, da CF/88). José de Anchieta da Silva alerta sobre os perigos desta sistemática, ao profetizar que chegará o momento em que sequer haverá processo, tampouco o contraditório, existindo tão somente uma decisão[8].
Diante de todas estas fragilidades, a própria sistemática constitucional tratou de tipificar um, digamos, “freio”, à atuação do Supremo Tribunal Federal, contemplando a possibilidade, no §2º do artigo 103-A, da revisão e cancelamento da súmula vinculante, possuindo esta prerrogativa tanto o próprio Supremo quanto os legitimados do artigo 3º da Lei 11.417/2006.
Entendemos que tal ponto é a verdadeira pedra de toque do tema proposto. É possível concluir, que os instrumentos de controle da edição das súmulas vinculantes são praticamente ineficazes, vez que esbarram em uma constante: seu órgão julgador é ao mesmo tempo seu órgão editor. E ademais toda a lisura e respeito que se espera desta condição, fica complicado exigir que prevaleça a dialética que se espera em uma dinâmica democrática.
E este será o quadro não importa o instrumento de controle que venha a servir de referência. Assim, seja um mandado de segurança, seja um expediente de cancelamento e revogação da súmula vinculante, seja uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, ou até mesmo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI (ademais a polêmica sobre sua adoção), o fato é que a Corte Suprema será sempre “Juiz de si mesmo”.
Desta feita, ao que tudo indica, o único instrumento de controle que se encontra ao alcance daqueles que venham a se sentir prejudicados em seus direitos pela edição de determinada súmula vinculante será o bom senso dos Ministros de nossa Suprema Corte, na qualidade de guardiões da Constituição. Em verdade, bom senso tanto no momento em que antecede a edição destas súmulas, bem como em eventual discussão, por qualquer instrumento que seja, a exigir sua revisão e exclusão do sistema.
Em linhas gerais, este é o quadro do instituto das súmulas vinculantes em nosso ordenamento.
Na sequência, a questão será enfrentada de forma mais específica, no que concerne à edição da súmula vinculante n. 29, para então, empreendermos reflexão acerca de suas conseqüências três anos após sua edição.
Como se viu, não faltam argumentos contrários ao instituto da súmula vinculante, independentemente da matéria sobre a qual a mesma venha versar.
A súmula vinculante n. 29, nos termos em que foi editada, parece, a princípio, fornecer ainda mais material argumentativo para aqueles que discursam contra o instituto. Dita a mesma:
É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra[9].
Tal conteúdo merece ser imediatamente confrontado com o conteúdo do já mencionado no §2º do artigo 145 da Constituição Federal, que, ipsis literis, determina: “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.
Essa simples contraposição (entre a súmula vinculante n. 29 e o dispositivo constitucional) bastaria para causar o mínimo de desassossego em toda a comunidade jurídica, que deve se basear sempre na primazia de um Estado Democrático de Direito, pautado na Constituição vigente. O desconforto, a sinalizar para a quebra da ordem constitucional posta, deve se fazer latente em todo operador do Direito que se vir diante de conteúdos, no mínimo, perturbadores.
Acontece que a edição desta súmula vinculante representa apenas, o que chamaremos de “a ponta do iceberg”, vez que é da própria estrutura da aprovação deste expediente, que seja proveniente de “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”. Como se verá, não se pode recriminar a súmula em questão, nem ao menos tratá-la como novidade e como sendo a única responsável por um eventual questionamento acerca de suposta reconstrução da dogmática tributária.
Vale mencionar que, antes mesmo da edição da súmula vinculante n. 29, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante n. 19, onde restou assentado que “A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal”. De fato, tal redação já sinalizava o porvir.
O desenho proposto pela edição da súmula vinculante em estudo, já vem sendo delineado ao longo dos tempos pela nossa Corte Constitucional. A ofensa ao Estado Democrático de Direito já vem se perpetuando há tempos.
Tal fato é bastante peculiar, na medida em que ao se retroceder, se verifica uma surpreendente mudança de paradigma de nossa Corte Suprema, vez que não faltam casos em que a Jurisprudência daquela Corte considerou inconstitucionais taxas com bases imponíveis inadequadas (Taxa de conservação e manutenção de vias públicas, Taxa de construção, conservação e melhoramentos de estrada de rodagem, Taxa de serviços urbanos e Taxas de licenciamento de importação), no que citamos o seguinte ementário:
EMENTA:- Recurso extraordinário. Mandado de segurança . Taxa de Conservação e Manutenção das Vias Públicas. Inconstitucionalidade incidental. 2. Acórdão que declarou a inconstitucionalidade de lei que instituiu a cobrança de Taxa de Conservação e Manutenção das Vias Públicas, por afronta ao disposto no art. 145, II, da CF. 3. Entendimento firmado pelo STF no sentido de que a base de cálculo é "própria de imposto e não de taxa por serviços específicos e divisíveis postos à disposição do seu contribuinte" e "não tendo o município - uma vez que, em matéria de impostos, a competência é da União - competência para criar tributos outros que não os que a Constituição lhe atribui, o imposto dissimulado pela taxa é inconstitucional (RE 121.617). 4. Recurso não conhecido. Lei Complementar n.º 37, de 29 de dezembro de 1998, do Município de Aracaju, declarada inconstitucional. (RE 293.536, Rel. Ministro Néri da Silveira, DJ de 17-05-2002)
EMENTA: - Taxa de construção, conservação e melhoramento de estrada de rodagem. Artigos 212 a 215 da Lei nº 1.942/83 do Município de Votuporanga. Inconstitucionalidade. - Base de cálculo que é própria de imposto e não de taxa por serviços específicos e divisíveis postos à disposição do seu contribuinte. - Não tendo o município - uma vez que, em matéria de impostos, a competência implícita é da União - competência para criar tributos outros que não os que a Constituição lhe atribui, o imposto dissimulado pela taxa é inconstitucional. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos 212 a 215 da Lei nº 1.942, de 22.12 .83, do Município de Votuporanga (SP). (RE 121.617, Rel. Ministro Moreira Alves, DJ 6-10-2000)
EMENTA. TRIBUTÁRIO. TAXA DE SERVIÇOS URBANOS. LEI N. 5386/83 (ART. 126). CAMPINAS/SP.BASE DE CÁLCULO IDENTIFICÁVEL COM A DO IPTU. DESCARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DA TAXA (...) A coincidência de bases imponíveis, referentes a exações tributárias diversas, afeta a validade jurídico-constitucional do tributo instituído. Não se revela exigível, em conseqüência, porque infringente da vedação estabelecida pelo ordenamento constitucional (CF/88, Art. 145, §2º), a taxa de serviços urbanos, cuja base de cálculo repouse em elementos – localização, área e dimensões do imóvel -, que se identifiquem, em seus aspectos essenciais, com o conteúdo da base imponível pertinente ao IPTU. (RE 120.811/SP, 1ª T., relator Ministro Ilmar Galvão, DJ. 02.03.1993)
EMENTA: TRIBUTÁRIO. TAXA DE LICENCIAMENTO DE IMPORTAÇÃO. ART. 10 DA LEI N. 2.143/53. REDAÇÃO DADA PELO ART. 1º DA LEI N. 7690/88. Tributo cuja base de cálculo coincide com a que corresponde ao imposto de importação, ou seja, o valor da mercadoria importada. Inconstitucionalidade que se declara do dispositivo legal em referência, em face da norma do art. 145, §2º, CF/88. Recurso não conhecido. (RE 167.992/PR, Pleno, rel. Ministro Ilmar Galvão, DJ 23.11.1994)
Decerto que a mudança de paradigmas se mostra, muitas das vezes, a própria força motriz da evolução da Ciência Jurídica, desde que, logicamente, pautada em referências pontuais dadas por esta própria Ciência. Não nos causa espanto o impulso transformador e sim, as bases (muitas vezes frágeis) em que citada mudança de diretiva venha a ser construída.
De toda forma, o momento da reconstrução de novos paradigmas (que serviram de base para a edição da súmula em mote) se deu especificamente com o Recurso Extraordinário 232.393-SP. Nesta oportunidade, a Corte Suprema foi instada a se manifestar acerca de taxa de coleta domiciliar de lixo instituída pelo Município de São Carlos-SP. O Município se baseou, para fins de repartir os custos da prestação do referido serviço, na área construída de cada imóvel beneficiado, fazendo uma correlação entre a área construída de determinado imóvel e os valores despendidos pelo Estado para nele coletar lixo.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que “o fato de um dos elementos utilizados na fixação da base de cálculo do IPTU - a metragem da área construída do imóvel – que é o valor do imóvel (CTN, art. 33), ser tomado em linha de conta na determinação da alíquota da taxa de coleta de lixo, não quer dizer que teria essa taxa base de cálculo igual à do IPTU[10]” - Grifamos.
Já naquela oportunidade, é possível concluir diante de citada decisão, que a Suprema Corte deu preferência, na análise do fato, pela redação mais elástica contida no parágrafo único do artigo 77 do Código Tributário Nacional, que dispõe que a taxa não pode ter base de cálculo ou fato gerador idênticos aos que correspondem a imposto.
Em uma interpretação gramatical de citada norma, podemos concluir que o Código Tributário Nacional foi menos, digamos, exigente, do que a norma Constitucional (§2º do artigo 145). O Código Tributário Nacional ao se utilizar do termo “idêntico”, parece catalisar todos os interesses buscados, fornecendo o elemento necessário para abarcar as intenções acerca da real interpretação que se pretendia dar à matéria.
Não há como negar que tal preferência se evidencia em total detrimento à vedação mais ampla contida no, já repetidamente citado, §2º do artigo 145 da Constituição Federal de 1988. Seria desnecessário pontuar que tal opção se dá à mercê de norma tecnicamente superior (ofensa à supremacia formal da Constituição) à estatuída pelo Código Tributário Nacional, a evidenciar quebra de paradigmas elementares.
Mas a questão que causa mais indisposição não é somente factual e sim, contextual.
As taxas são tributos contraprestacionais ou retributivos, ligados a uma prestação estatal específica em favor do contribuinte, cobrados pela prestação de serviços públicos ou pelo exercício do poder de polícia.
Seriam, portanto, dois, os “‘fatos do Estado’ que podem ensejar a cobrança de taxas: a) o exercício regular do poder de polícia, que legitima a cobrança da taxa de polícia; e b) a utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos ou divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, que possibilita a cobrança de taxa de serviço[11]”.
Por outro lado, nos termos do artigo 16 do Código Tributário Nacional, os impostos são tributos cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relacionada ao contribuinte. Ou seja, a contraposição conceitual entre os institutos da taxa e dos impostos é paradigmático.
Logo, uma vez que partimos de conceitos absolutamente distintos, o estatuído pelo artigo 145, §2º da Constituição Federal de 1988, parece-nos decorrência lógica das mencionadas definições.
Nota-se que o intuito da diferenciação dos tributos existe justamente para limitar o poder de tributar atinente aos entes públicos, em prol dos contribuintes.
Suplantado todo este necessário desenvolvimento dos fatos e da matéria, interessante acompanhar os trâmites que conduziram à aprovação da súmula em estudo.
Na proposta da súmula vinculante em análise (PSV 39), questões relevantes foram pontuadas. Os Ministros Marco Aurélio de Mello e Eros Grau demonstraram toda a sua insatisfação para com a edição de citada Súmula, merecendo traslado as palavras de Marco Aurélio de Mello, na seguinte ordem:
Quando o preceito revela que as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos, simplesmente sinaliza que a base há de ser de incidência específica, mesmo porque decorre do exercício do poder de polícia ou da utilização efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou colocados à disposição dele.
Não vejo como, Presidente, engessar-se a matéria mediante a edição de um verbete de súmula quando esse engessamento, a meu ver, implica conferir alcance limitado ao §2º do artigo 145 que atenderá, sim, ao Fisco, ao Estado, mas não àquele a quem o §2º do artigo 145 visa proteger – o contribuinte[12]. Grifamos.
E complementa:
“Vossa Excelência compreende a minha dificuldade? Não posso interpretar um preceito que visa a proteger o contribuinte de forma contrária aos interesses deles[13]”.
O Ministro César Peluso, verificando a amplitude dada à redação proposta, sugeriu outra, nos seguintes termos: “É inconstitucional a taxa que tenha a base de cálculo integralmente idêntica à de imposto”. É certo que a proposta do Ministro foi rechaçada, mas se mostraria uma opção (inversamente) bem mais “discreta” do que a redação aprovada.
Ademais todo o desenvolvimento relatado, prevaleceu a redação originariamente proposta, já inicialmente trasladada no início deste capítulo.
Mesmo não sendo escopo do presente estudo, é possível verificar que o Recurso Extraordinário 232.393-SP serviu como verdadeiro caso paradigma para a concretização da ofensa aos preceitos contidos §2º do artigo 145. Na fundamentação do acórdão, o Tribunal acatou a presunção sugerida de que os imóveis maiores produziriam mais lixo que os imóveis menores, sendo justa a cobrança da taxa com valores proporcionais, reconhecendo a aplicação do princípio da capacidade contributiva às taxas, o que acaba por golpear outro preceito constitucional, assentado no §1º do artigo 145 (dispositivo de clareza abissal ao mencionar que citado princípio diz respeito a “impostos”) da Carta da República. Tal trecho merece traslado a título de conhecimento:
Numa outra perspectiva, deve-se entender que o cálculo da taxa de lixo, com base no custo do serviço dividido proporcionalmente às áreas construídas dos imóveis, é forma de realização da isonomia tributária, que resulta na justiça tributária (CF, art. 150, II). É que a presunção é no sentido de que o imóvel de maior área produzirá mais lixo do que o imóvel menor. O lixo produzido, por exemplo, por imóvel com mil metros quadrados de área construída, será maior do que o lixo produzido por imóvel de cem metros quadrados. A previsão é razoável e, de certa forma, realiza também o princípio da capacidade contributiva do artigo 145, §1º, da C.F., que, sem embaraço de ter como destinatária (sic) os impostos, nada impede que possa aplicar-se na medida do possível, às taxas.
Em estudo anterior lançamos a dúvida sobre a falta de limites dos precedentes que culminaram na edição da súmula vinculante 29 e o que isto poderia provocar. Hoje, mais de três anos depois de sua edição, citada súmula jamais foi questionada, não existindo qualquer pedido de revisão, ou mesmo, pedido de cancelamento. Seu uso se dá, em sua grande maioria em julgamentos de Recursos Extraordinários[14], no que citamos, exemplificativamente, o RE 549.085 e o RE 487.363 e onde se reforça o conteúdo da súmula.
A súmula vinculante n. 29, mais uma vez em estudo, persevera em nosso ordenamento, sem maiores questionamentos. Não existe qualquer reflexão doutrinária que acrescente um tom de indignação e dúvida acerca de sua redação, servindo a mesma como mais um instrumento que parece sobreviver à margem da ordem jurídica posta.
A crise enfrentada pelo Poder Judiciário acabou por promover a tão propalada Reforma do Judiciário concretizada via Emenda Constitucional n. 45/04. Além de algumas outras ditas “novidades”, trouxe como instrumento de inovação, a súmula vinculante, com a missão de garantir celeridade e segurança jurídica.
Apesar de toda a esperança depositada em citado instituto, não faltam críticos a apontar a súmula vinculante como um problema e não como uma solução. Seus opositores proclamam seu caráter despótico (uma vez que o seu órgão editor é também seu órgão controlador e revogador), bem como inúmeras ofensas a postulados constitucionais elementares como ao livre convencimento motivado do órgão julgador, ao princípio da separação dos poderes e da legalidade. Sob esta óptica, as súmulas vinculantes representam verdadeiro retrocesso, sendo instituto que se desenvolveria na contramão de um Estado Democrático de Direito.
Colaboram para o fortalecimento do movimento em desfavor das súmulas vinculantes, a edição de exemplares peculiares, como o da súmula ora em estudo. Além do mais, causa certo alvoroço e mesmo, insegurança (que a princípio é o que se pretendia expurgar com a edição de súmulas vinculantes), o reavivamento de discussões acerca de súmula vinculante já editada.
A súmula vinculante 29, conforme todo o raciocínio implementado ao longo deste estudo, representa o cume de um equívoco que teve como epicentro, a nosso ver, a decisão proferida no Recurso Extraordinário 232.393-SP (ainda que na Proposta de Súmula Vinculante 39 se faça menção ao Recurso Extraordinário 576.321 como precedente principal). Diz-se equívoco, uma vez que toda a dinâmica desenvolvida nestas linhas provoca reflexão e questionamentos acerca de dogmas jurídicos por demais consolidados na sistemática tributária.
A súmula vinculante 29 não deveria representar, em nenhuma hipótese, qualquer ameaça à quebra de ponto fundamental e indiscutível da ciência tributária: os elementos conceituais que diferenciam taxas de impostos permanecem assentados na máxima de que taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos (conforme inteligência do, já por demais citado, artigo 145, §2º da Constituição Federal). O que a súmula vinculante 29 pode vir a representar, é um precedente indigesto de autorização indiscriminada do poder de legislar em matéria tributária, ferindo limitações constitucionais contundentes.
Limitações ao poder de tributar não podem ser relativizadas. Os interesses do Fisco não podem se sobrepor aos interesses dos contribuintes. As limitações ao poder de tributar são um dogma tributário absoluto e mais, garantidor de fundamento elementar da República Federativa do Brasil - a cidadania. Exatamente por isto, compactuamos com o entendimento, ademais inúmeras vozes em contrário, de que as súmulas vinculantes podem sim vir a ser objeto de ações direta de inconstitucionalidade (ADI), a fim de se ver garantida a supremacia constitucional. A súmula em foco merece ser expurgada do ordenamento, não importando qual instrumento se preste a tal fim.
Nesta ordem, mais de três anos após a edição da súmula vinculante 29, reforça-se, em verdade, o quão estéril e sem sentido se mostraram as reflexões inicialmente propostas, vez que referida súmula continua servindo de referência para os julgamentos da Corte Constitucional e jamais foi objeto de quaisquer questionamentos aprofundados seja por parte da doutrina mais autorizada, seja por parte dos legitimados a questionarem sua revisão ou cancelamento.
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[1] SILVA, Daniela Juliano. Súmula Vinculante n. 29 – Uma nova dogmática tributária? In Revista Dialética de Direito Tributário – RDDT. n, 190. Julho/2001, p. 09/18.
[2] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_701_800, acesso em 04/06/2013, às 18:38h.
[3] Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/RE_588149.pdf, acesso em 04/06/2013, às 15:39.
[4] SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário, RDP, 75/5 e s.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Editora Saraiva: São Paulo, 2008, p. 966.
[6] HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 2. p. 203.
[7] SÁ, Djanira Radamés de. Súmula vinculante: análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 113-114.
[8] SILVA, José Anchieta da. A súmula de efeito vinculante amplo no direito brasileiro: um problema e não uma solução. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 76.
[9] DJe n. 28, p. 1, em 17/02/2010.
[10] DJ n. 64, publicação em 05/04/2002, Ementário vol. 02063-03, p. 470.
[11] ALEXANRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 2ª. São Paulo: Ed. Editora Método, p. 50.
[12] DJe n. 45, publicação em 12/03/2010, Ementário 2393-1, p. 3.
[13] DJe n. 45, publicação em 12/03/2010, Ementário 2393-1, p. 4.
[14] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1282, acesso em 04/06/2013, às 21:43h.
Advogada. Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Daniela Juliano. A Súmula Vinculante n. 29 e sua repercussão no universo tributário três anos depois de sua edição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35445/a-sumula-vinculante-n-29-e-sua-repercussao-no-universo-tributario-tres-anos-depois-de-sua-edicao. Acesso em: 22 nov 2024.
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