Introdução
O presente artigo tem por escopo analisar o regime jurídico aplicável às isenções e diferenciações tarifárias nas concessões e permissões de serviço público, mormente o instrumento normativo necessária para a sua estipulação.
Para tanto, faremos uma distinção entre tributo e tarifa, para prosseguirmos na análise dos dispositivos constitucionais que norteiam aquele regime jurídico, bem como a regulamentação prevista na Lei nº 8.987/1995.
Diferença entre tributo e tarifa
Antes de analisarmos o regramento da isenção e da diferenciação tarifária nas concessões de serviço público, cumpre distanciarmos a situação em foco daquela prevista para o tributo, dada a natureza diversa que tem a obrigação tributária.
Consoante já pacificado na doutrina tributária e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o aspecto essencial que distingue o tributo da tarifa (ou preço público) é a compulsoriedade do primeiro, que por sua vez se relaciona com a ausência do elemento volitivo para o nascimento da obrigação de pagar.
Enquanto o pagamento do tributo se refere a uma obrigação assumida pelo contribuinte,tal qual imposto em lei, em razão da ausência de liberdade quanto à realização do comportamento desejado por meio diverso, o pagamento da tarifa, mormente aquela disciplinada na Lei nº 8.987/1995, fruto deste estudo, decorreria de uma obrigação de natureza contratual, assumida pela utilização de um serviço público.
Nesse sentido caminhou o julgamento do RE 576.189/RS (DJ 26/06/2009), pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, de cujo voto condutor colhemos a seguinte passagem:
"A compulsoriedade de um tributo decorre do fato de que é juridicamente irrelevante o elemento volitivo para que a obrigação de pagar se mostre exigível. É o que pensa Geraldo Ataliba, ao assentar que:
'O fulcro do critério do discrímen está primeiramente no modo de nascimento da obrigação. Se se tratar de vínculo nascido da vontade das partes, estar-se-á diante de figura convencional (obligatioexvoluntate), mútuo, aluguel, compra e venda etc. Isto permite discernir a obrigação tributária das obrigações convencionais.
Se, pelo contrário, o vínculo obrigacional nascer independentemente da vontade das partes - ou até mesmo contra essa vontade - por força da lei, mediante a ocorrência de um fato jurídico lícito, então estar-se-á diante de tributo, que se define como obrigação jurídica legal, pecuniária, que não se constitui em sanção de ato ilícito, em favor de uma pessoa pública'. É dizer, se for possível, a partir apenas da vontade própria, por meios legítimos, e independentemente de qualquer exceção normativa - tais como a não-incidência, a imunidade ou a isenção -, realizar o núcleo de uma conduta, em tese, sujeita a determinado encargo, mas de forma diversa daquela que dá ensejo ao nascimento da obrigação de pagar, inexiste a compulsoriedade inerente aos tributos. Em outras palavras, se a alguém é dado optar por certo comportamento dentre vários outros igualmente possíveis, e estando um ou mais deles liberados do pagamento de determinada obrigação pecuniária, a submissão ao ônus passa a ter caráter voluntário, o que não se coaduna com o conceito de tributo. Se, por outro lado, todos os meios legítimos de realização desse mesmo comportamento levarem ao pagamento compulsório da obrigação, o ônus, por não depender da vontade do responsável, apresentará inequívoca natureza tributária. (...)
Nesse sentido, Aliomar Baleeiro, ao elaborar a distinção entre taxas e tarifas ou preços (esses últimos, que representam o pagamento pela fruição de determinados bens ou serviços públicos), assenta que'(...) só as taxas são tributos, como tais revestidos de compulsoriedade, ao passo que os preços apresentam caráter contratual, voluntário, porque, em geral, remuneram a venda de coisas do patrimônio público (terrenos, água, livros, jornais oficiais, sementes, reprodutores, etc.), ou renda deles provenientes (aluguéis, foros, laudêmios, serviços telefônicos, telégrafos, energia elétrica, etc.)'.
Tanto a taxa quanto o preço público constituem um pagamentorealizado em troca da fruição de um serviço ou bem estatal, divisível eespecífico. A distinção entre ambas está em que a primeiracaracteriza-se pela nota da compulsoriedade, porque resulta de umaobrigação legal, ao passo que o segundo distingue-se pelo traço dafacultatividade por decorrer de uma relação contratual. Ademais,enquanto as receitas das taxas ingressam nos cofres do Estado, asprovenientes dos preços públicos integram patrimônio privado dosentes que atuam por delegação do Estado" (RE 576.189/RS, Rel. Min.Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJ 26.6.2009, grifosnossos).
O entendimento do Supremo Tribunal Federal a esse respeito já se encontra sumulado nos seguintes termos:
"Súmula 545. Preços de serviços públicos e taxas não seconfundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias etêm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, emrelação à lei que as instituiu."
Não se pode, pois, pretender aplicar às tarifas o regramento constitucional previsto para o pagamento de tributo, sobretudo no tocante às condições para estabelecimento de isenção e diferenciação entre os contribuintes, dispostas no art. 150, § 6º, da Constituição Federal de 1988, e no art. 176 do Código Tributário Nacional, instituído pela Lei nº 5.172/1966, ‘in verbis’:
Constituição Federal de 1988
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
Código Tributário Nacional
Art. 176. A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração.
Parágrafo único. A isenção pode ser restrita a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares.
Feitas essas considerações, passemos à análise específica dos requisitos para a previsão de isenção e da diferenciação tarifária.
Isenção e diferenciação tarifária: possibilidades
Foi visto no tópico anterior, que dada a ausência de natureza tributária, as tarifas decorrentes da prestação de um serviço públicoteriam um regime jurídico próprio, sem as amarras previstas no art. 150 da Constituição Federal de 1988 como limitadoras do poder de tributar.
A exploração de sérvio público pela iniciativa privada, remunerada por tarifa, está prevista no art. 175 da Constituição Federal de 1988, que estabelece a edição de lei ordinária para disciplinar seu regime jurídico, os direitos dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter serviço adequado:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado.
Regulamentando o referido dispositivo constitucional no âmbito da concessão e permissão da exploração do serviço público à iniciativa privada, a Lei nº 8.987/1995 dispôs sobre a tarifa a ser paga pelos usuários nos seguintes termos:
Art. 9º A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.
§ 1º A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior.
§ 1º A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
§ 2º Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro.
§ 3º Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.
§ 4º Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.
Art. 10. Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro.
Art. 11. No atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, observado o disposto no art. 17 desta Lei.
Parágrafo único. As fontes de receita previstas neste artigo serão obrigatoriamente consideradas para a aferição do inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Art. 12. (VETADO)
Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários.
A tarifa é, pois, prevista no contrato estabelecido entro o Poder Concedente e a concessionária ou a permissionária do serviço público, podendo inclusive decorrer sua estipulação da proposta vencedora da licitação, quando for este o critério de julgamento adotado pelo certame, o que torna seu regime jurídico mais flexível.
Sobre o tema, é importante destacar que o sentido de estipulação contratual aqui deve ser compreendido de forma mais ampla, englobando não somente o instrumento do contrato ‘stricto sensu’ como também a regulamentação prevista por ato próprio do Poder Concedente e que tenha sido referenciada naquele instrumento. Nessa trilha são as previsões contidas em Resoluções editadas pelas Agências Reguladoras, com competência para regular e fiscalizar a exploração do serviço público a ser concedido.
Ainda no tocante à disciplina do regime tarifário previsto na Lei nº 8.987/1995, depreende-se que, na faculdade do Poder Concedente de regulamentar o regime tarifário, caberia a ele isentar ou diferenciar o valor da tarifa entre os diferentes usuários do serviço, desde que vinculado à aplicação dos critérios previstos em lei.
Nesse sentido, o art. 13 da Lei nº 8.987/1995, acima transcrito, estabelece a possibilidade de diferenciação das tarifas “em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários”.
Acrescente-se que os critérios de diferenciações tarifárias previstas no art. 13 da Lei nº 8.987/1995 não excluem outros estipulados em legislações específicas, tal como se dá com o art. 37, parágrafo único, do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/1986):
Art. 37. Os aeródromos públicos poderão ser usados por quaisquer aeronaves, sem distinção de propriedade ou nacionalidade, mediante o ônus da utilização, salvo se, por motivo operacional ou de segurança, houver restrição de uso por determinados tipos de aeronaves ou serviços aéreos.
Parágrafo único. Os preços de utilização serão fixados em tabelas aprovadas pela autoridade aeronáutica, tendo em vista as facilidades colocadas à disposição das aeronaves, dos passageiros ou da carga, e o custo operacional do aeroporto.
Ademais, há quem defenda que a diferenciação tarifária pautada em outros princípios dispostos na Lei nº 8.987/1995 já estaria por ela diretamente autorizada, sem necessidade de legislação específica, o que ocorreriase o objetivo fosse atender ao princípio da modicidade tarifária. Trata-se de uma interpretação sistemática da Lei nº 8.987/1995, considerando ainda a disciplina dos serviços públicos pela legislação consumerista.Esse é o entendimento defendido por Jacintho Arruda Câmara (2009, p. 73) quando interpreta a definição de serviço adequado dada pelo art. 6º, § 1º[1], daquela legislação:
Ao conferir ao usuário de serviço público o direito de pagar tarifas módicas, a lei, de modo indireto, acaba autorizando ao poder concedente que adote modelos tarifários que viabilizem o atingimento deste fim. Noutras palavras, para garantir a modicidade de tarifas é possível que o poder concedente lance mão de diversos instrumentos de política tarifária. Para tanto, não se faz necessário buscar respaldo em legislação específica. A autorização legislativa para a adoção de medidas de política tarifária – indispensável, nos termos do art. 175, parágrafo único, III, da CF – é obtida, em casos tais, a partir do princípio da modicidade das tarifas, presente da Lei 8.987/1995.
(...)
Seria o caso da prática de subsídios cruzados. Trata-se, sem dúvida, de um instrumento de política tarifária. Sua aplicação, no entanto, independe de previsão em lei específica desde que, como normalmente ocorre, sua aplicação se dê para fins de proporcionar a determinadas categorias de usuários o acesso ao serviço a tarifas mais baixas. (grifamos)
Situação diversa seria o estabelecimento de uma diferenciação tarifária para determinados grupos de usuários de um dado serviço público com o intuito de concretizar políticas públicas que visem atender ao princípio da isonomia em seu aspecto material.
Nesse sentido, nos deparamos em diversas situações com diferenciações tarifárias que visam uma maior universalização do serviço público, atendendo a classes sociais diversas, ou, v.g, aquelas que desoneram deficientes físicos do pagamento de tarifa de transporte rodoviário coletivo, considerando as dificuldades próprias das pessoas que se encontram nessa situação para se locomoverem.
Consoante bem destacado pelo Ministro Moreira Alves, quando do julgamento da ADC-MC 9/DF, não há dúvida de que a tarifa é um preço público de natureza política, podendo ter efeitos “que extravasam aquilo que é normal do preço público, que é justamente a contraprestação do dinheiro em relação ao serviço ou à mercadoria que é prestada”.
A Constituição Federal de 1988 admitiu, de fato, a possibilidade de se fazer política tarifária no tocante aos serviços públicos prestados diretamente ou sob regime de concessão ou permissão pelo Poder Público, consoante seu art. 175, parágrafo único, inciso III, acima transcrito, desde que prevista em lei ordinária.
Pela literalidade desse dispositivo depreende-se que, a par da flexibilidade existente no regime jurídico tarifário, contrapondo-se ao regime jurídico tributário, a política tarifária deve ser estabelecida por lei, ainda que em formato de diretrizes a serem regulamentadas pelo Poder Executivo.
No art. 12 da Lei nº 8.987/1995, que foi objeto de veto Presidencial, estava estabelecida expressamente a vedação ao Poder Concedente de estabelecer privilégios tarifários, nos seguintes termos:
Art. 12. É vedado, ao poder concedente, estabelecer privilégios tarifários que beneficiem segmentos específicos de usuários do serviço concedido, exceto se no cumprimento de lei que especifique as fontes de recursos.
O veto do Presidente da República se pautou nas seguintes razões:
O impropriamente denominado tratamento privilegiado representa, na totalidade das vezes, medida de cunho eminentemente social, que traduz formas compensatórias de distribuição de rendas através de preços públicos, tendo por motivação os elevados princípios de justiça social que dimanam da Constituição.
Acaso convertido em lei o dispositivo ora vetado, teria ele o condão de revogar (art. 1°, § 1°, do Decreto-lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942) as leis que veiculam esses subsídios sociais por não conterem elas a respectiva fonte de recursos, com graves conseqüências para as classes menos favorecidas da população.
Assim, essas pessoas teriam, de inopino, sacrificadas suas rendas familiares, ao ter que arcar, por exemplo, com o pagamento de tarifas de energia elétrica e gás liquefeito de petróleo às mesmas tarifas pagas pelos usuários de renda mais elevada; pessoas portadoras de deficiência física e aposentados se veriam privadas da gratuidade das tarifas de transportes coletivos.
Ademais, tal modalidade de proteção do concessionário encontra sede mais adequada no contrato de concessão, no qual devem ser claramente definidos os "direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária" (art. 23, V, do projeto), que naturalmente incluem todas as medidas de proteção desta última. (grifamos)
Não está claro em suas razões que o veto se justificaria pela possibilidade inerente ao Poder Concedente de, por atos infralegais, estabelecer os benefícios tarifários. A fundamentação parece mais relacionada à desnecessidade de condicionar a aplicação dos benefícios tarifários estipulados por lei à indicação prévia da respectiva fonte de recursos, já que essa indicação poderia constar no próprio contrato de concessão.
Dessarte, entendo, s.m.j, que o veto ao art. 12 da Lei nº 8.987/1995 não representou a possibilidade de se estabelecer política tarifária por ato infralegal, até porque esse entendimento iria de encontro com o art. 175, parágrafo único, III, da Constituição Federal de 1988.
Nessa trilha, destaca-se decisãodo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 2733/ES[2], que entendeu pela inconstitucionalidade da Lei nº 7.304/2002 do Estado do Espírito Santo, que concedeu benefícios referentes às tarifas de pedágio às motocicletas e aos estudantes.
Entendeu aquela Corte Suprema que a estipulação de benefício tarifário pelo Poder Legislativo afetou o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão firmado pelo Poder Executivo daquele ente federado, afrontando o princípio da harmonia entre os Poderes. Eis o contido em sua ementa:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.304/02 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. EXCLUSÃO DAS MOTOCICLETAS DA RELAÇÃO DE VEÍCULOS SUJEITOS AO PAGAMENTO DE PEDÁGIO. CONCESSÃO DE DESCONTO, AOS ESTUDANTES, DE CINQUENTA POR CENTO SOBRE O VALOR DO PEDÁGIO. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATROS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. VIOLAÇÃO. PRINCÍPIO DA HARMONIA ENTRE OS PODERES. AFRONTA. 1. A lei estadual afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de obra pública, celebrado pela Administração capixaba, ao conceder descontos e isenções sem qualquer forma de compensação. 2. Afronta evidente ao princípio da harmonia entre os poderes, harmonia e não separação, na medida em que o Poder Legislativo pretende substituir o Executivo na gestão dos contratos administrativos celebrados. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
É interessante verificar que, conforme relatado pelo Ministro Eros Grau, a manifestação da Advocacia-Geral da União naqueles autos foi pela constitucionalidade da legislação estadual, por entender, quanto ao seu conteúdo: “que a norma insculpida no artigo 84, inciso VI, alínea ‘a’[3], da CB, não retira da reserva legal a matéria objeto da lei atacada, “tendo em vista que o disposto no art. 175 da Constituição Federal autoriza o poder concedente a introduzir, por lei, uma política tarifária”.
Outra questão relevante se refere à fundamentação do voto condutor, que considerou, naquela situação específica, a ausência de previsão na legislação impugnada de “qualquer forma de compensação por essa redução”.
Essa situação pode ser diversa daquela em que o legislador estabeleça uma diferenciação tarifária ou um benefício tarifário indicando a fonte de custeio, nos moldes do que estava previsto na redação proposta para o art. 12 da Lei nº 8.987/1995 e que foi objeto do veto Presidencial.
Assim, não entendo possível interpretar aquele julgado como uma desconsideração da reserva legal estipulada no art. 175, parágrafo único, III, da Constituição Federal de 1988, até porque há outros julgados da Corte Suprema que atestam a constitucionalidade de políticas tarifárias estabelecidas pelo Poder Legislativo. Entre esses julgados, destacam-se a ADC 9/DF[4]e o RE 576.189/RS[5], que apreciaram a constitucionalidade de diferenciações tarifárias no setor energético, previstas, respectivamente, na Medida Provisória nº 2.152-2/2001 e na Lei nº 10.438/2002.
Consta no voto da Ministra Ellen Gracie, proferido na análise da medida cautelar daquela ADC 9/DF, a seguinte passagem:
Estimular a redução de demanda, na impossibilidade momentânea de aumentar a oferta, é afinal de contas, o objetivo final do plano e a bonificação oferecida aos consumidores ditos mais frágeis é tornada possível mediante a utilização dessa tarifa diferenciada.
(...)
Afasto, por isso, a imputação de natureza tributária dessa sobretarifa, pois vejo presente, de fato, na hipótese, a construção e uma política tarifária o que é permitido pela Carta Maior. O art. 175, parágrafo único, III, reserva à lei (e, portanto, também à Medida Provisória com força de lei) o dispor sobre tal matéria.
O entendimento proferido naquela ADC foi reafirmado quando do julgamento mais recente do RE 576.189/RS, assim ementado:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. ENERGIA ELÉTRICA. ENCARGOS CRIADOS PELA LEI 10.438/02. NATUREZA JURÍDICA CORRESPONDENTE A PREÇO PÚBLICO OU TARIFA. INAPLICABILIDADE DO REGIME TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE COMPULSORIEDADE NA FRUIÇÃO DOS SERVIÇOS. RECEITA ORIGINÁRIA E PRIVADA DESTINADA A REMUNERAR CONCESSIONÁRIAS, PERMISSIONÁRIAS E AUTORIZADAS INTEGRANTES DO SISTEMA INTERLIGADO NACIONAL. RE IMPROVIDO. I - Os encargos de capacidade emergencial e de aquisição de energia elétrica emergencial, instituídos pela Lei 10.438/02, não possuem natureza tributária. II - Encargos destituídos de compulsoriedade, razão pela qual correspondem a tarifas ou preços públicos. III - Verbas que constituem receita originária e privada, destinada a remunerar concessionárias, permissionárias e autorizadas pelos custos do serviço, incluindo sua manutenção, melhora e expansão, e medidas para prevenir momentos de escassez. IV - O art. 175, III, da CF autoriza a subordinação dos referidos encargos à política tarifária governamental. V - Inocorrência de afronta aos princípios da legalidade, da não-afetação, da moralidade, da isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade. VI - Recurso extraordinário conhecido, ao qual se nega provimento.
Decerto, a previsão de políticas tarifárias por ato do Poder Executivo, seja qual for o instrumento normativo utilizado (Decreto, Portaria ou Resolução), que extrapole os critérios diferenciadores já previstos em lei, parece conflitar com o art. 175, parágrafo único, III, da CF/88.
Nessa situação, além de restar indicado que a diferenciação, tal como recomendada, poderá onerar os demais usuários do serviço público que não se enquadrem em suas condições, a omissão quanto à fonte de custeio e quanto a outros aspectos necessários para o seu delineamento poderia dificultar eventual regulação da matéria pelo Poder Concedente, considerando os limites da diferenciação ou isenção técnica permitidas na Lei nº 8.987/1995.
Conclusão
Pelo exposto, não se aplicam ao regime tarifário as limitações previstas no art. 150 da Constituição Federal de 1988, dada a distinção entre tarifa e tributo.
No regime aplicável para as concessões e permissões de serviço público, há possibilidade de estabelecimento de isenção ou diferenciação tarifária em ato normativo infralegal, desde que observados os requisitos e condições previstos na Lei nº 8.987/1995, que impõem a necessidade de justificativa técnica para tanto.
Quando se tratar de isenção ou diferenciação tarifária que tenha por objetivo a concretização de uma política pública necessária será a sua estipulação em lei ordinária, em face do mandamento previsto no art. 175, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
Referência bibliográfica:
CÂMARA, Jacintho Arruda. Tarifa nas Concessões. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
[1]Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
[2]Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2005, DJ 03-02-2006 PP-00011 EMENT VOL-02219-02 PP-00280
[3]Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VI - dispor, mediante decreto, sobre:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
[4]Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 13/12/2001, DJ 23-04-2004 PP-00006 EMENT VOL-02148-01 PP-00001
[5]Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 22/04/2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-07 PP-01424 RIP v. 11, n. 56, 2009, p. 291-304 LEXSTF v. 31, n. 367, 2009, p. 249-268
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Regulatório, pela Universidade de Brasília. Exerce o cargo de Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Isabella Silva Oliveira. Isenção e diferenciação tarifária nas concessões e permissões de serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jun 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35503/isencao-e-diferenciacao-tarifaria-nas-concessoes-e-permissoes-de-servico-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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