RESUMO: Este trabalho compreende um estudo acerca do direito dos índios sobre a posse das terras que tradicionalmente ocupam, conforme a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 (CF). Defende-se que o direito constitucional dos índios sobre suas terras tem natureza de direito fundamental, embora não esteja previsto no rol do art. 5° da CF, que formalmente elenca os direitos desta espécie. Contudo, esse direito adequa-se ao previsto no art. 5°, §2° da CF, que reconhece a mesma natureza de direitos fundamentais, aqueles preceitos insertos em tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil faz parte, bem como os decorrentes dos princípios e do regime constitucional. A partir destes pressupostos, elencam-se as características dos direitos fundamentais e verifica-se que elas estão presentes no direito dos índios às suas terras, gerando consequências jurídicas de grande importância para se buscar a sua efetividade.
Palavras-chave: Direito fundamental. Posse indígena. Constituição Federal. Efetividade.
SUMÁRIO: Introdução. Resumo. 1 Breve contextualização político social dos direitos indígenas dentre os direitos fundamentais. 2 Da fundamentalidade do direito dos índios sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas. 2.1 Tratados internacionais de direitos humanos e a posse indígena. 2.2 Posse indígena como direito fundamental decorrente do regime e dos princípios adotados pela CF 88 – Características. 2.2.1 Posse indígena como decorrência da dignidade da pessoa humana. 2.2.2 Posse indígena como decorrência do regime democrático. 2.2.3 Posse indígena como princípio jurídico. 2.2.4 Posse indígena e a sua equivalência com os demais direitos fundamentais constitucionais. 3 Efeitos dos direitos fundamentais – Aplicação ao direito dos índios sobre a posse de suas terras. 3.1 Posse indígena como cláusula pétrea. 3.2 Posse indígena e sua aplicabilidade plena e eficácia imediata. 3.3 Posse indígena e a implantação de políticas públicas pelo Estado. 3.4 Aplicação do princípio da ponderação para a colisão entre os direitos fundamentais da posse indígena e da propriedade particular. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe a analisar a natureza das normas constitucionais que tratam dos direitos dos índios às suas terras tradicionalmente ocupadas. Especificamente, partir-se-á de uma construção voltada para sustentar o caráter de “direito fundamental” da posse indígena. Para isso, tomar-se-á como substrato a realidade brasileira e a sua mais recente Constituição Federal, promulgada em 1988. Igualmente, serão também destacadas as características dos direitos fundamentais em geral e os efeitos dessa classificação.
O relevo da demonstração da “fundamentalidade” da posse dos índios sobre as suas terras será a busca por interpretações que auxiliem na efetividade desses direitos indígenas.
Ora, verifica-se que, mesmo tendo passado mais de vinte anos da disciplina constitucional de 1988, que consagra os direitos dos índios sobre a posse de suas terras, ainda hoje, há certa dificuldade para se alcançar a plena aplicabilidade das normas e consequentemente, conferir melhores condições de vida aos índios.
Essas dificuldades foram percebidas por esse subscritor, principalmente a partir do exercício de sua atividade profissional no âmbito da Procuradoria Federal especializada na defesa dos direitos indígenas. A rotina de trabalho informa que parte dos índios brasileiros continuam privados de sua terra e essa carência na regularização da posse das terras indígenas deve-se, em parte, à influência de diversos níveis dos órgãos estatais e atores sociais no tratamento dos direitos indígenas.
Observa-se, assim, que o Estado brasileiro ainda não conseguiu demarcar todas as terras indígenas, como previa a Constituição Federal de 1988. Os particulares, a seu turno, insistem na prática de esbulhos e turbações em terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. E o Judiciário, quando provocado, nem sempre, vem garantindo a titularidade da posse dessas terras aos índios.
Assim, essa inconformação em face das reiteradas distorções na compreensão e no tratamento da posse indígena motivou a construção deste trabalho, haja vista que há normas constitucionais destinadas à proteção dos índios, mas que esbarram em certa inércia administrativa e resistência judicial. Assim, para a melhor proteção desse direito, necessário se faz um estudo contextualizado com a Constituição e atento aos instrumentos jurídicos pertinentes.
O desenvolvimento do tema calcou-se, eminentemente, em pesquisa bibliográfica. Foi realizada averiguação de normas constitucionais e ordinárias e exploração da literatura pátria e estrangeira. Por fim, houve o recurso à jurisprudência para aferir como se tem aplicado, na prática, a literatura e normatividade acerca dos índios.
Diante desse panorama, esse estudo visa contribuir para otimizar a aplicabilidade jurídica do instituto da posse indígena nos conflitos contemporâneos. Daí, ressalta-se a necessidade da correção dos desequilíbrios do passado, a partir de uma aplicação atualizada e constitucional dos institutos possessórios, de maneira que o resultado final possa auxiliar as ações afirmativas em prol dos direitos indígenas, efetivar os seus mandamentos e insuflar a sua pesquisa e conhecimento
1- BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO POLÍTICO SOCIAL DOS DIREITOS INDÍGENAS DENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Este trabalho se propõe a analisar a natureza das normas constitucionais que tratam dos direitos dos índios às terras tradicionalmente ocupadas. Especificamente, partir-se-á de uma construção voltada para sustentar o caráter de “direito fundamental” da posse indígena.
A atual definição dos direitos fundamentais é fruto de um longo desenvolvimento histórico. Assim, é importante um breve retrospecto para entender a formação do Estado moderno constitucional, a adoção de Constituições democráticas e o reconhecimento de direitos fundamentais.
Em meados do século XV, dá-se o arrefecimento do feudalismo, modo de produção típico da Idade Média, baseado principalmente na agricultura de circulação restrita, em que grande parcela da população vivia isolada em feudos, num sistema de servidão dos camponeses aos senhores feudais. Em vista disso, com o reavivamento posterior das rotas comerciais, marcado pelo mercantilismo, favorece-se a unificação dos antigos burgos e fortalecimento dos reinos de então, dando início à formação dos Estados Modernos, marcadamente, influenciados pelas idéias de Bodin (teoria da soberania), Montesquieu (divisão de poderes), Hobbes (Leviathan), e Rousseau (contrato social). (GILISSEN, 1979, p.131)
A partir daí, as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) concretizam as ideias novas nos textos das Constituições e de leis. Esse novo contexto é marcado pelo contínuo desaparecimento dos últimos vestígios de feudalismo; pelas liberdades públicas que garantem direitos subjetivos aos cidadãos, livres e iguais perante o direito; pela soberania que passa das mãos dos reis e dos príncipes para a nação. Esse quadro fático lança profundas alterações no Direito, principalmente, o seu processo de unificação no cenário estatal, onde cada Estado soberano tem o seu próprio Direito, fixado por órgãos legislativos. Assim, a lei torna-se, quase por toda parte, a fonte principal do Direito. (GILISSEN, 1979, p.131)
Assim, inicia-se o surgimento dos “Estados constitucionais” que se confunde, na sua origem, com o advento do Estado Liberal e é pautado pela adoção de constituições escritas[1] que preveem a indicação da forma de governo, a tripartição de poderes e os direitos fundamentais. (BONAVIDES, 2010)
Observa-se que essas diretrizes passam a ser seguidas nas Constituições de grande parte dos países. Em todos eles, ressaltava-se a sua superioridade hierárquica e a sua influência sobre o restante do Ordenamento jurídico[2]. Começava a surgir o contexto ideal para sua maior aplicabilidade e, nos últimos tempos, nota-se que estas passaram a ter um papel ainda maior nas ordens jurídicas nacionais. Foram ultrapassadas as concepções atécnicas de que a Constituição seria um mero documento de declaração de intenções ou direcionada apenas aos entes públicos. Portanto, passa-se a atribuir maior aplicabilidade às normas constitucionais, v.g., elas podem combater a validade das normas infraconstitucionais com ela incompatíveis, tal qual já afirmava Kelsen, bem como tem sido empregadas diretamente na resolução de conflitos interpessoais. (BONAVIDES, 2010, p. 127)
Logo, a partir da aplicação direta das normas constitucionais às relações intersubjetivas, bem como da possibilidade de conflito[3] entre os dispositivos constitucionais, passou-se a indagar, também, sobre uma potencial superioridade de alguns dispositivos constitucionais em face de outros. A maioria da doutrina entende que todas as normas constitucionais têm igual hierarquia (LOPES, 2001, p. 173). Admite-se, com mais frequência, apenas a superioridade das normas decorrentes do poder constituinte originário sobre as emanadas do poder constituinte derivado. Contudo, excepcionalmente, haverá a possibilidade de uma norma constitucional se sobrepor a outra, o que se daria apenas em face de um caso concreto, sem que isso configure a superioridade de uma norma constitucional, em tese.
Mesmo assim, é valoroso observar que os dispositivos previstos na Constituição Federal, como direitos fundamentais, possuem prerrogativas maiores dentro do sistema constitucional. Assim, quando uma norma da CF é considerada “direito fundamental”, passa a ser considerada de aplicabilidade imediata e eficácia plena (art. 5°, §2°, CF); é havida como cláusula pétrea, impossibilitando a sua revogação pelo poder constituinte derivado (art. 60, §4°, CF); e assim recebe o mesmo tratamento dos demais direitos do art. 5° da CF[4]. Por sua importância, os caros valores de justiça essenciais às relações existenciais e ao respeito à pessoa que são conformados no arcabouço principiológico da Constituição são percebidos em sua fundamentalidade, sendo a eles atribuída a classificação de “direito fundamental”, com todas aquelas características essenciais.
Portanto, tendo em vista que os direitos fundamentais possuem maiores garantias no contexto constitucional, defender-se-á, no presente estudo, a hipótese de que o direito dos índios à posse de suas terras faz parte desse grupo. Com isso, se pretende conferir maior logística ao dispositivo previsto no art. 231 da CF, que trata sobre a posse dos índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas e, com isso, fazer frente ao direito fundamental de propriedade civil dos não índios.[5]
A importância de se enquadrar o direito indígena como um direito fundamental aflora no presente contexto histórico/político/ social, decorrentes do avançar do sistema neoliberal. Tem-se observado que o mundo está sendo impelido para a globalização do economia. O neoliberalismo cria, porém, mais problemas do que os que intenta resolver. Sua filosofia do poder é negativa e se move, de certa maneira, rumo à dissolução do Estado nacional. Neste contexto, a globalização política na esfera na normatividade jurídica introduz novos direitos, quais sejam, o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. (BONAVIDES, 2010. p. 594)
Portanto, a consequência direta da globalização e do fortalecimento do neoliberalismo foi a acentuação da marginalização dos países e das pessoas que não conseguem se enquadrar no novo esquema de desenvolvimento capitalista. Nesse contexto, é preclara uma preocupação com os valores mundiais, tais como, a autodeterminação dos povos e o respeito às minorias. Portanto, torna-se cada vez mais forte a necessidade de implementação desses direitos para salvaguardar a convivência entre os povos.
Na formação de uma sociedade pluralista, não se deve pretender a uniformização dos grupos humanos. Antes, deve existir um sistema de proteção jurídica para que as minorias não sejam discriminadas face aos valores da classe predominante. Ora, constantemente se acentua que o papel de uma Constituição moderna não é aquela de simplesmente retratar a vontade comum de um povo, expressa pela maioria de seus membros, mas principalmente a de garantir os direitos de todos, inclusive contra a vontade popular. (FACCHINI, 2003, p. 30)
Portanto, a Constituição Federal deve propiciar um arcabouço normativo que preserve a diversidade e a cultura dos diversos grupos étnicos que compõem o povo brasileiro. Cada povo deve ter o direito de viver de acordo com suas mundividências. Assim, conseguir-se-á a sua pacífica convivência.
Assim, quando se determina que a posse das terras de ocupação tradicional deve ser destinada aos indígenas, não se pretende apenas preservar o direito ao bem material. Antes, visa-se manter a identidade desse grupo humano, o direito a ser minoria e sua continuidade existencial.
Logo, antes da Constituição Federal de 1988, via de regra, quando se concedia a demarcação das terras indígenas, não se tinha como objetivo fundamental a criação de um território para os povos indígenas. Nesse período, visava-se garantir que as terras ao entorno dos pequenos espaços demarcados ficassem desimpedidas para a alienação para particulares. Igualmente, a visão inicial de terra indígena limitava-se, simplesmente, a um local que permitisse a sobrevivência física dos índios, quando retirados dos locais de desenvolvimento econômico, para evitar a sua mortandade, causada devido, desde ao contágio de doenças, até impossibilidade de se manter nas grandes cidades. Contudo, essas terras não tinham sido pensadas como território. Hoje, contudo, é preciso pensar na ideia não só de uma superfície para os índios, mas também no investimento simbólico que os povos indígenas fazem sobre esse espaço. (SANTILLI, 2011)
Nesse diapasão, Jürgen Habermas (2007, p. 301-347) critica as soluções encontradas pelo liberalismo para preservação dos direitos das minorias, haja vista seu conteúdo genérico e egoístico não ser apropriado para solucionar, com justiça, todos os conflitos existentes na realidade.[6]
Destarte, não se pode infligir às minorias o mesmo tratamento dado a totalidade da população civil. Sem a posse sobre as terras indígenas, pode haver a aceleração da dispersão dos índios e o comprometimento da manutenção dos seus costumes. A posse sobre o seu território é o meio mais eficiente que os índios dispõem para manter os traços que distinguem a sua etnia e a consequente convivência harmoniosa com a coletividade.
Contudo, ainda se observa, em parte da jurisprudência brasileira, um modo de argumentação extremamente lógico-formal que prejudica a melhor interpretação da legislação pátria. Necessário se faz que se abra espaço, ainda que com responsabilidade e cautela, para os pontos de vistas valorativos tendentes a alcançar justiça material. (KRELL, 2000, p. 47 e 50)
Portanto, o reconhecimento da posse indígena como um direito fundamental pode ser um instrumento jurídico eficaz para a pacificação social. Daí a importância do debate sobre a superioridade de prerrogativas que os direitos fundamentais vêm a ter dentro do sistema, posto que, cada vez mais, existem conflitos que envolvam a posse indígena em face de outros direitos fundamentais e que reclamam uma solução pelo Judiciário. Assim, a adoção dessa teoria sobre a natureza da posse indígena tem como fim auxiliar na sua efetivação.
2 DA FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO DOS ÍNDIOS SOBRE A POSSE DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS
O presente estudo considerará a posse dos índios sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas como um direito fundamental. Este direito indígena está situado no art. 231[7] da Constituição Federal brasileira de 1988, portanto, fora do catálogo do art. 5° que, via de regra, elenca os direitos fundamentais[8]. Contudo, essa posição topográfica não impede a fundamentalidade constitucional desta norma.
Destarte, a Constituição Federal não restringe a exclusividade da enumeração dos direitos fundamentais na ordem jurídica brasileira ao seu art. 5°, posto que essa classe de direitos não forma um sistema fechado e autônomo[9]. O próprio texto constitucional apresenta uma norma de extensão que permite a ampliação do elenco desses direitos fundamentais. Trata-se do art. 5°, §2°, CF, que proclama: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Assim, a fundamentalidade do direito dos índios sobre a posse de suas terras, nos termos do art. 5º, §2°, CF pode se justificar tanto por decorrência de tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil seja parte; quanto por decorrência do regime e dos princípios adotados pela CF 88. (SARLET, 2010, p. 68)
2.1 Tratados internacionais de direitos humanos e a posse indígena
Antes de abordar diretamente o tema sugerido neste tópico, importa estabelecer a diferença entre os direitos fundamentais e os direitos humanos.
Os direitos humanos estão previstos na ordem jurídica internacional. Dizem respeito, via de regra, aos valores de liberdade e igualdade, ou seja, prerrogativas imprescindíveis para salvaguardar as potencialidades da humanidade e potencializar uma vida digna. (BOBBIO, 1992, p. 53)
É importante salientar que a previsão de direitos ao homem já existia antes do Estado Moderno, cita-se a Carta de João sem Terra, cunhada na Inglaterra, em 1215, que assegurava os direitos de propriedade para os senhores feudais. Contudo, para Paulo Bonavides (2010), foi na Revolução Francesa o momento da universalização dos direitos do homem, ou seja, deixaram de ser considerados como pertencentes apenas a uma determinada classe social para abranger o homem em si. Logo, mesmo que ainda se verifique uma grande segregação, a partir da Idade Moderna, os direitos humanos vieram a ter uma maior disseminação entre a massa da população e a se difundir pelo mundo.
Quando se fala na disseminação dos direitos do homem, não se pretende afirmar que todos os homens gozam desses direitos, independentemente do local e do período temporal em que se encontre. Assim, esse estudo segue a teoria da “historicidade” dos direitos humanos, pela qual, embora se almeje a sua internacionalização, eles são variáveis no tempo e no espaço. Basta observar a transformação dos direitos humanos nos últimos séculos, que vêm se expandindo e consolidando de acordo com a mudança dos momentos históricos, de valores, das transformações técnicas e culturais (COMPARATO, 2001, p. 87).
Disso decorre a conclusão de que os direitos humanos não foram gestados em uma única ocasião. São frutos de conquistas históricas, marcadas por muitas lutas, não raro, permeadas por dores e sofrimentos. Foram se destacando em determinadas épocas, de forma gradual, com cada realidade histórica. Nesse sentido, basta lembrar que a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores (BOBBIO, 1992, p. 84).
Assemelham-se, nesses pontos, os direitos humanos e os direitos fundamentais. Ora, os direitos fundamentais também são direitos decorrentes da dignidade humana, contudo a grande diferença é que estes somente abrangem aqueles previstos no sistema constitucional de cada país[10]. No entendimento de Paulo Bonavides[11] (2010, p. 22-23), apenas seria cabível falar sobre direitos fundamentais constitucionais quando se tem como objeto os direitos positivados na Constituição.
Logo, sem esta positivação jurídico-constitucional, os direitos do homem seriam meras esperanças ou retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (CANOTILHO, 2010, p. 497). Portanto, o principal ponto de diferença entre os direitos humanos e fundamentais é a previsão constitucional destes últimos.
Alguns autores,[12] como Marcelo Campos Galuppo (1999, p. 235), entende que os direitos fundamentais importam a constitucionalização dos direitos humanos que obtiveram maior justificação durante a história. Nada obstante, embora os direitos fundamentais coincidam em grande parte com os direitos humanos, não é correto entender que os direitos fundamentais de um país decorram exclusivamente da positivação de determinados direitos humanos internacionais. Assim, mesmo que se admita que os direitos fundamentais de uma Constituição possam inspirar-se, em parte, nos direitos humanos, deve ser reconhecida a construção nacional dos direitos fundamentais, sem que estejam necessariamente previstos dentre os direitos humanos. Importante citar a lição de Perez Luño (1986, p. 59) a respeito: “Será la praxis concreta de los hombres, que son quienes a la postre sufren o se benefician de esos derechos, y quienes con sus comportamientos contribuyen a formalos en cada situación histórica, la pauta orientadora de su significación.”
Logo, os direitos fundamentais de um país, embora muitas vezes se inspirem nos direitos humanos internacionais, tem sua origem também relacionada às condições da realidade que os subjazem, sendo fruto de um contexto histórico-econômico-social.
Apresentada, brevemente, a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais, passa-se, agora, a apreciar o primeiro aspecto da cláusula constitucional de abertura dos direitos fundamentais, prevista no art. 5°, §2°, CF, que traz a possibilidade de considerar-se um direito como fundamental, baseado na sua previsão em tratados de direito internacional sobre direitos humanos em que o Brasil seja signatário. Especificamente, cita-se, aqui, a inclusão do direito dos índios sobre suas terras no rol dos direitos fundamentais.
Ora, se o direito dos índios sobre suas terras está contemplado em vários documentos internacionais de declaração de direitos, pode-se, então, considerá-lo como um direito humano, sustentando a legitimidade e a repercussão desse direito no cenário internacional. Destaca-se, para fins deste estudo, a Convenção 169/89 da OIT, aprovada pelo Decreto n° 5.051 de 19 de abril de 2004. Nesse contexto, cumpre analisar o status que essa convenção sobre direitos indígenas possui no Ordenamento brasileiro, ou seja, se possui natureza de lei ordinária, de emenda constitucional ou outro nível normativo. Assim, seria possível inferir se a posse indígena poderia ser considerada um direito constitucional fundamental por estar previsto nessa Convenção.
Antigamente, a maioria da doutrina e o Supremo Tribunal Federal (STF) entendiam que os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, ainda que versassem sobre direitos humanos, ingressavam no ordenamento jurídico pátrio como norma infraconstitucional. Portanto, teriam o mesmo tratamento de uma lei ordinária. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 01)
Contudo, doutrinadores, como Flávia Piovesan, Luiz Flávio Gomes e Cançado Trindade (2003, p. 70), já entendiam que os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, desde que versem sobre direitos humanos, seriam substancialmente constitucionais. Para Sarlet (2007, p. 141), o objetivo da Constituição Federal é de ampliar e completar o catálogo dos direitos fundamentais, integrando, além disso, a ordem constitucional interna com a comunidade internacional cada vez mais marcada pela interdependência entre os Estados e pela superação da tradicional concepção da soberania estatal.
Dessa forma, os autores acima entendem que, mais do que o zelo inabalável pela soberania nacional, deve-se dar preferência aos mecanismos que propiciem à proteção dos direitos humanos.
Para tentar estabelecer uma regra sobre o assunto, a Emenda Constitucional n° 45/2004, acresceu o §3° ao art. 5° da CF, dispondo que, para um tratado internacional de direitos humanos ter status de norma constitucional, seria necessário o mesmo procedimento de aprovação de uma emenda constitucional, qual seja, deveria ser aprovado em dois turnos por ambas as Casas do Congresso Nacional e com três quintos dos votos dos seus membros.
Nada obstante, a atual posição do STF, consoante teoria sustentada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no RE 466.343-SP, defende que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo Brasil, mas sem o rito das emendas constitucionais, “seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade”. Assim, esses tratados estariam em uma posição intermediária entre a Constituição e as leis ordinárias.
Esse julgamento, que tratava de uma prisão de depositário infiel, tinha como objeto mediato a discussão da impositividade do Pacto de São José da Costa Rica (PSJCR) no Ordenamento brasileiro. Destarte, este documento internacional prevê a impossibilidade da prisão do depositário infiel, no que se confronta com a Constituição brasileira. Contudo, a partir do julgamento do STF, acolheu-se o direito previsto pelo PSJCR, ficando impedida a prisão, prevista pela CF.
Nota-se que o STF, para não contradizer a previsão constitucional do §3°, art. 5° da CF, que prevê procedimento especial de ratificação de normas internacionais, não considerou formalmente o PSJCR como uma emenda constitucional. Em vez disso, preferiu criar o caráter de “supralegalidade” para uma norma. Contudo, no final, deu-lhe os mesmos efeitos práticos de uma emenda, posto que foi modificado o entendimento previsto na CF e foi considerado um novo direito fundamental na ordem jurídica nacional, qual seja, o da impossibilidade de prisão do depositário infiel.
Dentro desse raciocínio de conferir eficácia a um dispositivo de direitos humanos dentro do território nacional, urge que também se considerem os direitos indígenas previstos na Convenção 169 da OIT como direitos fundamentais na Constituição Federal, haja vista a sua constante violação em face do direito fundamental de propriedade.[13]
Dessa forma, atenta-se que a Convenção 169 da OIT e o PSJCR têm o mesmo nível hierárquico normativo dentro do Ordenamento brasileiro, pois ambos, por terem sido ratificadas antes da Emenda Constitucional 45/04, não tiveram o rito especial similar aos das emendas constitucionais em sua aprovação. Assim é possível aplicar à Convenção 169 da OIT o mesmo entendimento do STF sobre o PSJCR que inseriu um novo direito fundamental no ordenamento jurídico pátrio.
Assim, pelo entendimento do STF sobre o art. 5°, § 3°, CF, ainda que não se considere a Convenção 169 da OIT, formalmente, como uma emenda constitucional, também não haveria de ingressar no Ordenamento jurídico brasileiro como uma mera lei ordinária, mas sim com “status” de supralegalidade. Disso resultam os mesmos efeitos práticos de uma emenda constitucional, já que poderia alterar a aplicação da Constituição.
A partir desse raciocínio, agrega-se que é possível a defesa da fundamentalidade do direito dos índios sobre suas terras tendo como um dos respaldos, a parte do art. 5°, § 2°, CF, que dispõe que as normas sobre direitos humanos previstas em tratados internacionais de que o Brasil faz parte terão “status” de direito fundamental. Destarte, a Convenção 169 da OIT versa sobre direitos humanos, tem um caráter de supralegalidade no Ordenamento pátrio, poderia modificar a aplicação da Constituição Federal e, portanto, conduzir dispositivos considerados direitos fundamentais.
Atenta-se, igualmente, que ainda será possível a defesa da fundamentalidade do direito dos índios sobre a posse de suas terras, com esteio na primeira parte do art. 5°, §2°, CF, que contem a previsão de que um direito também poderá ser considerado fundamental se “decorrente do regime e dos princípios por ela adotados.”
O art. 5°, §2°, da CF permite concluir que existe, também no Brasil, um sistema aberto e flexível de direitos fundamentais (TRINDADE, 2003, p. 512). A doutrina costuma chamar de direitos fundamentais “materiais” esses novos direitos decorrentes do regime e princípios adotados pela CF, bem como dos tratados internacionais que o Brasil seja parte.[14]
Assim, é possível que se considere a fundamentalidade de normas constitucionais ainda que formalmente se encontrem em outros artigos ou mesmo fora[15] da Constituição Federal. [16] Logo, para a consideração da fundamentalidade de uma norma, o aplicador do direito não pode ficar cingido às questões formais de localização topográfica, muito menos, deve ficar preso ao momento histórico da edição da norma. Portanto, se há uma evolução do pensamento popular e jurídico, deve haver uma interpretação que produza maiores efeitos à Constituição Federal, no presente caso, a partir da consideração de um determinado dispositivo como direito fundamental.
Assim, também sustentar-se-á a fundamentalidade do direito indígena à posse das terras tradicionalmente ocupadas, demonstrando que decorre do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou seja, que se inspira no princípio da dignidade da pessoa humana e no regime democrático; equivale a um princípio jurídico e compara-se com os demais direitos fundamentais constitucionais.[17]
2.2.1 Posse indígena como decorrência da dignidade da pessoa humana
Os direitos fundamentais têm direta imbricação com o princípio da dignidade da pessoa humana, dele retirando seu fundamento. Buscam gerar e cultivar os pressupostos basilares de uma vida na liberdade e na justiça.
A dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais e a sua fonte jurídico-positivo-ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. (SANTOS, 1999, p. 97)
Dessa forma, salienta-se a importância de se considerar a dignidade da pessoa humana como fundamento para os direitos fundamentais[18], posto constituir-se como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no Título I da CF 88[19].
Compreendida, assim, a eminência da dignidade da pessoa humana no Ordenamento jurídico brasileiro, como princípio fundamental da República e como base para os direitos fundamentais, tem-se o ponto de partida para estabelecer os seus contornos.
Sem ter a pretensão de se estabelecer uma definição absoluta para a dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 60) explica que esse princípio não pode ser conceituado de maneira estática. O estabelecimento de rígidos contornos conceituais não se harmonizaria com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas, razão pela qual seria mais correto afirmar-se que, também aqui, se teria um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. Contudo, na intenção de oferecer elementos para a uma melhor compreensão, Sarlet conclui que se tem por dignidade da pessoa humana, a qualidade intrínseca e distinta de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Observa-se que, na tentativa de se conceber um conceito de dignidade da pessoa humana, é mais fácil imaginar situações em que a dignidade não se verifica para, de uma forma inversa, compreender as condições mínimas necessárias para a sua realização. [20]
Logo, sem a pretensão de exaurir todas as situações, entende-se que inexistirá dignidade sem o gozo das mínimas condições de liberdade de ir e vir, pensar ou tomar as decisões de seu destino, bem como quando não se tem uma alimentação adequada, o acesso à educação básica, à saúde, ao transporte. Igualmente, inexistirá dignidade da pessoa humana quando se desprezam as primárias noções de igualdade e submetem os indivíduos a constrangimentos por razões de discriminação de cor, sexo, orientação sexual, idade e etnia. Então, pode-se intuir que, via de regra, haverá o respeito à dignidade da pessoa humana naquelas situações em que os indivíduos gozem dos elementos presentes nos direitos fundamentais.
Trazendo essa ideia para a questão indígena, verifica-se que a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios facilita aos seus membros a efetiva realização dos demais direitos. Dentre eles, cita-se o exemplo de determinadas comunidades indígenas brasileiras que, por possuírem a posse permanente sobre tais áreas, conseguem cultivar a terra sob a forma de agricultura de subsistência para extrair seu alimento, podem morar conforme seus padrões e ainda empregar as ervas medicinais para a sua saúde, enfim, ter uma forma de vida, de certo modo, semelhante a de seus antepassados e fiel às suas tradições, conforme seu ideal de dignidade.
Ademais, mesmo nas comunidades indígenas com maior contato com a sociedade não-índia, observa-se que a convivência em torno da terra tradicional ainda assim facilita a transmissão da educação nativa a seus descendentes, além da preservação da sua cultura e de seus costumes.
Logo, privar os índios da posse de suas terras poderá comprometer a dignidade das suas vidas em muitos aspectos. Daí, é possível entrever na posse indígena um direito fundamental, posto que um dispositivo será assim considerado quando garantir uma situação sem a qual estará comprometida a vida digna dos envolvidos.[21]
2.2.2 Posse indígena como decorrência do regime democrático
Continuando a qualificação da posse indígena como um direito fundamental, passa-se à análise de mais uma nuança, qual seja, a sua decorrência do regime democrático. A opção do Brasil por um regime democrático é extraída do art. 1° da CF, que apregoa que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.
Em linhas gerais, democracia é o regime governamental em que o poder político é exercido pelo povo, direta ou indiretamente. Hoje, a democracia desenvolve-se para além da ideia de maioria, mas na busca do consenso, à luz dos direitos humanos (COMPARATO, 2001). Assim sendo, espera-se que um Estado democrático preveja direitos fundamentais para a proteção do povo que o legitima, tais como a promoção da posse indígena.
Nota-se que há uma estreita correlação entre os direitos fundamentais e o nível de democracia de um Estado. Importante citar a lição de Jorge Miranda (1988, p.08) de que não há direitos fundamentais sem reconhecimento de uma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político, e não há direitos fundamentais em Estados Totalitários. Afirma, ainda, o citado autor que não há verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o poder, beneficiando-se de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das condições a que pertençam.
Agregue-se que a democracia é o grande motor para o estabelecimento e o gozo, de fato, dos direitos fundamentais. Logo, geralmente, o quanto maior for o grau de democracia de um país, tanto maior será a promoção dos direitos fundamentais.
De outro quadrante, atente-se que os direitos fundamentais em um país democrático servirão como um núcleo intangível em cada Constituição para garantia das condições mínimas de convívio entre os particulares e o Estado. Nesse campo, vicejará as bases democráticas na condução dos destinos da nação.[22]
Assim, os direitos fundamentais têm a possibilidade, dentre outras, de demonstrar a forma como cada Estado pretende se relacionar com os indivíduos. Trata-se de uma decisão basilar do Estado sobre como realizar as suas atividades e políticas públicas, em respeito a cada pessoa e camada da sociedade, bem como a convivência com as minorias.
Desta forma, observa-se na CF, a previsão de normas destinadas à proteção dos mais variados interesses nacionais[23]. Neste contexto, foi promovido constitucionalmente o direito dos índios sobre suas terras, para a salvaguarda dos povos indígenas, com base no multiculturalismo e na plurietnicidade.[24]
Portanto, observe-se que a proteção da posse indígena pela CF não se constitui apenas como mais um dispositivo constitucional para as relações interpessoais, antes, trata-se de uma decisão estatal de proteger a minoria indígena a fim de se legitimar o estado democrático.
Desta feita compreende-se que o direito dos índios às suas terras decorrem do regime (democrático) da CF brasileira e portanto deve ser considerado como um direito fundamental.
2.2.3 Posse indígena como princípio jurídico
Passando-se para uma outra característica importante dos direitos fundamentais, vale lembrar que estes, via de regra, assumem natureza de “princípio” (Branco, 2000, p. 182). Assim, distinguem-se das demais “regras” previstas na Constituição Federal.
A definição de princípio é explicitada por Celso Bandeira de Mello (1992, p.408) ao considerá-lo como mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro alicerce, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
Insta lembrar que num primeiro momento, os princípios eram considerados apenas como aquelas normas que expressavam o fundamento do sistema de direitos, serviam de justificação para as demais regras e davam harmonia ao sistema. Paulo Bonavides (2010, p. 266) ensina que o ideário de se franquear força normativa aos princípios é algo novo e que sofreu longo processo evolutivo.[25]
Para entender a importância de se considerar as normas que veiculam os “direitos fundamentais” como princípios, é necessário conceber a força normativa destes e a sua distinção das regras.
A dogmática constitucional contemporânea considera a Constituição como um sistema normativo aberto de regras e princípios. Seguindo-se essa linha de raciocínio, J. J. Gomes Canotilho (2010, p. 67) explica:
O sistema jurídico do Estado Democrático Português é um sistema normativo aberto de regras e princípios. [...] Sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica, (Caliess) traduzida na capacidade e disponibilidade de aprendizagem das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’. É sistema de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem se revelar sob a forma de princípios, como sob a sua forma de regras.
Nesses termos, o Direito Constitucional, como um sistema normativo aberto, é passível de complementações pela dinâmica social. Isso possibilita que se busque na norma uma resposta sempre atualizada em face das demandas modernas. Dessa forma, o sistema constitucional permite seu preenchimento por valores jurídicos que estão além do direito positivo e que devem trazer a possibilidade de realização dos direitos fundamentais e dos ideais de justiça. Assim, um “constitucionalismo adequado” será aquele em que seu arcabouço normativo apresenta aplicabilidade através tanto de regras quanto de princípios, pois um sistema composto apenas de regras o tornaria incompleto e engessado. De outro lado, um sistema exclusivamente de princípios o faria carecer de segurança jurídica. (CANOTILHO, 2010, p. 68)
Atualmente os princípios são enxergados com força normativa dentro do ordenamento jurídico. Leciona Alexy (2001, p.163) que tanto as regras, quanto os princípios podem conceber-se como normas. Em tal caso, o que se trata é de uma distinção dentro da classe das normas. O atual status de norma jurídica dos princípios foi importante para que eles adquirissem aplicação direta e respeitabilidade.
A diferença entre princípios e regras reside além do fato daqueles serem o fundamento destas. Atualmente, o traço distintivo de maior destaque é o fato de que, na resolução de um conflito entre regras, uma perecerá ante a validade da outra[26]. Já no conflito entre princípios, a solução não segue a lógica do tudo ou nada. A apreciação em cada caso concreto informará o princípio prevalente, sem a desconsideração total do princípio vencido.
Nesse norte, Dworkin (2002, p. 74) entende que a diferença entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. Assim, as regras são aplicadas à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribuiu para a decisão. Já os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm, qual seja, a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se entrecruzam, aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um.
Assim, no caso concreto em que se vislumbre um conflito aparente de princípios, prevalecerá algum deles, sempre respeitando o espaço mínimo dos demais, em perfeita convivência.
Considerando que os direitos fundamentais se apresentam, via de regra, sobre a forma de princípios, eventual conflito entre eles, demandará uma interpretação apta à ponderação, pois tais direitos não se articulam pela primazia abstrata de uns sobre os outros.[27] Eventual tensão entre princípios condutores de direitos fundamentais somente se resolverá pela técnica interpretativa no âmbito do caso concreto.
Feito esse ligeiro apanhado sobre os princípios jurídicos, é possível, a partir de agora, desenvolver a hipótese de que o art. 231 da CF, que encarta a o direito dos índios sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas, tratando-se de um verdadeiro princípio constitucional.
A hipótese de posse indígena como princípio jurídico é fundamentada a partir do cotejo do art. 231, CF com as características gerais dos princípios vistas até aqui. Ora esse dispositivo traz o fundamento e parâmetro interpretativo para todas as demais regras previstas nos parágrafos desse artigo, quais sejam, os dispositivos que especificam sobre a impossibilidade de remoção dos índios dessas terras, art. 231, § 5°, CF; sobre a nulidade dos títulos particulares sobre essas terras, art. 231, § 6°, primeira parte, CF; sobre as indenizações pelas benfeitorias dos particulares de boa-fé, art. 231, § 6°, última parte, CF; dentre outras. E ainda justifica as regras previstas na legislação infraconstitucional, v.g., o Estatuto do Índio estabelecido pela Lei 6.001/73, naquilo que foi recepcionado pela CF 88.
Ademais, tal qual no conflito entre os princípios, verifica-se também, na colisão entre o direito dos índios sobre suas terras e o direito dos particulares sobre a propriedade da mesma área, que o legislador trouxe medidas paliativas para não desnaturar nenhum dos direitos fundamentais em jogo. No caso, previu a indenização pelas benfeitorias de boa-fé na área, art. 231, § 6°, CF, bem como determinou que fossem levadas em consideração o desenvolvimento histórico e fático no momento de demarcação das terras indígenas, art. 25 da Lei 6.001/ 73. Ainda possibilita-se, para os casos extremos, a utilização do princípio da proporcionalidade.[28]
Essa ideia também encontra esteio em diversas obras de Gilmar Ferreira Mendes (1988, p. 70), segundo a qual, os dispositivos constitucionais sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios explicitam “princípios” integrantes do Direito Constitucional positivo.[29]
Logo, percebe-se que a proteção da posse das terras indígenas na titularidade destes representa um ideário há muito consagrado no Ordenamento nacional, que a tradição já considera como um verdadeiro princípio jurídico dentre as constituições brasileiras.
Portanto, seguindo a linha de pensamento de considerar o direito dos índios sobre suas terras como um princípio, corrobora-se com mais um elemento para a sua visão como um direito fundamental.
2.2.4 Posse indígena e a sua equivalência com os demais direitos fundamentais constitucionais
Em prosseguimento à enumeração dos elementos que gravam um direito como fundamental, destaca-se a indicação de Sarlet (2006, p. 91) que, para um direito ser considerado como tal, há que se atestar uma equivalência com os demais direitos fundamentais do “Catálogo”[30].
Os direitos Fundamentais são todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram por seu conteúdo e importância integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo ou não assento na Constituição formal. (SARLET, 2006, p.91)
Então, para se ratificar a qualificação de um direito como um direito fundamental, será preciso verificar os demais direitos fundamentais previstos no sistema constitucional brasileiro. Em vista disso, observa-se que a posse indígena está em sintonia com os demais direitos fundamentais previstos na CF, quais sejam, os direitos à alimentação, saúde, liberdade, igualdade, vida etc. Todos esses direitos guardam um ponto em comum por excelência entre si, pois inspiram-se na dignidade da pessoa humana.
Logo, nem todo dispositivo previsto na Constituição será, por esse simples fato, compreendido como direito fundamental, pois é patente a não inclusão nesse rol dos dispositivos constitucionais que tracem, v.g., o procedimento de elaboração das leis ordinárias, que tragam o número de ministros que devam compor cada Tribunal ou que disponham sobre gastos orçamentários etc.
Dessa feita, parte-se da premissa da unidade e coerência do sistema jurídico para aplicar os mesmos efeitos a uma norma que possua as mesmas razões que as normas previstas no art. 5° da CF. Portanto, há que se verificar caso a caso, num dispositivo que pretenda sua inclusão como fundamental, se este comunga de essência similar aos demais direitos fundamentais.
Em remate, quanto ao direito constitucional dos índios à posse das terras tradicionalmente ocupadas, verifica-se a existência de todas as características dos direitos fundamentais, até aqui apontadas. Ora, a posse indígena é um direito que decorre diretamente da dignidade da pessoa humana, posto ser irradiador dos demais direitos indígenas. Portanto, a partir dele, facilitar-se-á melhor qualidade de vida a essa minoria étnica. Igualmente, a proteção da posse indígena é uma medida do grau de democracia adotado pelo Estado brasileiro, haja vista a escolha do Brasil por uma sociedade pluriétnica e a adoção de uma política multicultural com suas minorias. Da mesma sorte, destaca-se a sua natureza de “princípio”, uma vez que não se resume a uma regra de aplicação “tudo ou nada”, mas exige ponderações na hora de sua aplicação, bem como se perfaz em um valor interpretativo no sistema jurídico constitucional.
É importante destacar, nesse momento, que, embora a propriedade das pessoas não índias conste formalmente no capítulo dos direitos fundamentais da CF, tal fato não desnatura a percepção da posse indígena como um direito de igual grandeza. Destarte, dentre as razões que inspiraram o legislador a considerar a propriedade como direito fundamental, citam-se as melhores condições de sobrevivência e a preservação da segurança jurídica nas negociações sociais. De igual modo, é possível empregar esses fundamentos para a posse indígena. Nesse contexto, uma maior proteção jurídica à posse dos índios aumenta a possibilidade de extrair da terra as condições para sua sobrevivência, bem como franqueia segurança jurídica em relação a terceiros, que saberão da titularidade estatal sobre essas terras.
Logo, o direito do índio sobre suas terras deve ser reconhecido como um direito fundamental. A partir daí, a Constituição Federal deve ser empregue como o arcabouço jurídico disciplinador da questão possessória indígena. Só assim, essas discussões conseguirão ultrapassar o campo meramente privado e patrimonial, e a posse da terra pelos índios chegará ao seu real enfoque, qual seja, um direito fundamental de onde emana os demais direitos indígenas.
Nesse sentido, tem- se verificado a existência de várias características dos “direitos fundamentais” na posse indígena, com os efeitos daí decorrentes. Esse fato só potencializa a aplicação da norma, como se abordará a seguir.
3 EFEITOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – APLICAÇÃO AO DIREITO DOS ÍNDIOS SOBRE A POSSE DE SUAS TERRAS
Neste trabalho, tem-se procurado demonstrar a natureza de direito fundamental da norma constitucional que define o direito dos índios à posse das suas terras, ainda que esta norma não esteja localizada no art. 5° da CF.
Como visto, a importância de se considerar a posse indígena como um direito fundamental exsurge do tratamento especial previsto pela Constituição Federal para essa classe de direitos. Dessa forma, são acrescidas várias garantias a uma norma quando ela é considerada como tal. Portanto, identificar o direito do índio à posse de suas terras como um direito fundamental é, antes de tudo, dotá-lo de maiores efeitos e proteções, quiçá propiciar um ambiente favorável para efetivação desses direitos.
Muitas são as peculiaridades que diferem os direitos fundamentais das demais normas previstas na CF. Contudo, sem fim de exaurimento, esse estudo procurará destacar aqueles efeitos que mais se correlacionem com o direito indígena. Nesse ponto, buscam-se novos instrumentos jurídicos para somar forças na defesa da questão indígena no direito brasileiro.
Tratar-se-á, dentre esses efeitos dos direitos fundamentais, da inclusão do direito do índio sobre suas terras dentre às cláusulas pétreas, bem como da manutenção do seu núcleo essencial que irá limitar a atividade do legislador ordinário. Ainda se verificará a eficácia plena e aplicabilidade imediata do art. 231 e parágrafos; observar-se-á a priorização dos dispositivos indigenistas na implantação de políticas públicas e, por fim, a aplicação do princípio da proporcionalidade quando em conflito com outros direitos constitucionais.
3.1 Posse indígena como cláusula pétrea
Iniciar-se-á essa enumeração de efeitos dos direitos fundamentais, a partir do efeito da irrevogabilidade dos direitos fundamentais. Nesses termos, as cláusulas pétreas[31] são os dispositivos da CF que não podem sofrer alterações pelo poder constituinte derivado. Assim, quando da promulgação da CF, o poder constituinte originário elencou alguns direitos como intangíveis, ou seja, que não seriam passíveis de emenda constitucional.
Assim, no que pertine ao tema dos direitos fundamentais, cumpre perquirir o que a Constituição Federal de 1988 considera como “cláusula pétrea”: “Art. 60 [...], §4° - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...], IV – os direitos e garantias individuais.”
Observa-se, de uma interpretação literal da norma, que, a princípio, somente os direitos e as garantias “individuais” estariam acobertados pela intangibilidade. De outro quadrante, verifica-se que os direitos dos índios sobre as suas terras de ocupação tradicional não se configuram como um direito individual ou isolado de cada membro da comunidade. Antes, afigura-se, a princípio, como um direito pertencente a toda à comunidade indígena que habita dada área.
Contudo, defende-se aqui a hipótese de que nem por isso o direito fundamental do índio à posse de suas terras será privado da prerrogativa da imutabilidade constitucional. Para se chegar a essa conclusão, que não é consenso na literatura jurídica, será necessário trazer novos argumentos sobre os fundamentos das cláusulas pétreas.
A razão para a imutabilidade de alguns dispositivos da CF deve-se a sua maior importância dentro do sistema constitucional. Trata-se da essência do Estado e cuja alteração comprometeria a sua própria razão de ser.
As cláusulas pétreas constituem núcleo intangível que se presta a garantir a estabilidade da Constituição e conservá-la contra alterações que aniquilem o seu núcleo essencial, ou causem ruptura ou eliminação do próprio ordenamento constitucional, sendo a garantia de permanência da Constituição e dos seus princípios fundamentais. (PEDRA, 2006, p.137)
Igualmente, destaque-se o pensamento trazido por Gilmar Mendes (2005, p. 2 e 3), sobre o alcance das cláusulas pétreas. Segundo esse autor, a prerrogativa da imutabilidade constitucional não se restringiria apenas ao disposto nos incisos do art. 40, §4°, CF, posto que alcançaria todos os dispositivos que comprometessem a identidade da Constituição. [32]
Portanto, mesmo que o direito fundamental dos índios sobre suas terras não seja um direito “individual”, como previsto no art. 40, §4°, CF, ainda assim, por sua importância, é considerado, consoante essa teoria, um valor essencial para a ideia de Estado construído pela CF 88. A sua supressão descaracterizaria a sociedade solidária e o padrão de dignidade que se pretende conferir ao povo brasileiro. Portanto, tal direito deverá ser considerado como cláusula pétrea. Logo, a posse indígena como um direito fundamental não pode ser revogada ou restringida pelo poder constituinte derivado.
Os direitos fundamentais dos índios às suas terras, nesse ponto, são tidos como um dos núcleos do ordenamento jurídico constitucional. Isso acontece pela importância de se respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana na forma do Estado se relacionar com os indivíduos. Por isso, a impossibilidade de que uma emenda venha a alterá-los.[33]
Destaca-se, de outro quadrante que, além da proibição de emenda constitucional que venha a abolir os direitos fundamentais, o Judiciário já tem se manifestado contra reforma que diminua a sua incidência.[34]
Assim, ressalta-se que a impossibilidade de supressão do direito fundamental do índio à posse de suas terras não deverá ser direcionado apenas ao poder constituinte derivado. Ora, como se aplica essa restrição às emendas constitucionais, com muito mais razão, deve ser observado pelo legislador infraconstitucional.
A máxima de não contrariedade a um dispositivo constitucional pelo restante do ordenamento jurídico é regra conhecida no Direito brasileiro, fundamentando-se no sistema hierárquico das normas e na rigidez constitucional, adotados pela CF. Contudo, quando se trata de um direito fundamental, deve haver um cuidado ainda maior com o seu disciplinamento. Assim, na regulamentação legislativa de um direito fundamental, deve sempre ser preservado o “conteúdo essencial”.
Para Ana Maria D’Ávila Lopes (2004, p. 13), a garantia do conteúdo essencial é concebida como um limite à atividade disciplinadora dos direitos fundamentais. Atua como uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimitando o espaço que não pode ser 'invadido' por uma lei sob o risco de ser declarada como inconstitucional.
É imperioso informar que, em dias atuais, o Judiciário e a literatura jurídica nacional têm acatado o temperamento legislativo dos direitos fundamentais. A razão para essa prática deve-se à necessidade de adaptá-los às exigências da realidade e para propiciar uma convivência entre os demais direitos fundamentais.
Destarte, no mundo fático, haverá ocasiões que um direito fundamental não poderá ser aplicado em sua inteireza. Caberá ao legislador demarcá-lo para que se adapte à realidade. Desta forma, cumprirá ao intérprete confrontá-los com os demais direitos fundamentais e ponderar a sua aplicação.
Contudo, não se admite que a limitação dos direitos fundamentais atinja-lhes o núcleo essencial. Assim, as limitações apostas pelo legislador não podem ser confundidas com supressões das características básicas do direito, ou seja, a disciplina infraconstitucional não pode desnaturaliza-los, situação configurada quando o direito é impraticável ou o direito não pode mais ser protegido e ainda quando o exercício do direito tem sido dificultado além do razoável. (LOPES, 2004, p.7)
Logo, se uma determinada lei ordinária ferir o conteúdo essencial do direito constitucional, isso importará, via de regra, na vulnerabilidade do interesse jurídico em foco. Assim, quando houver severa dificuldade na proteção do direito, devido a alterações legislativas, considera-se que houve afetação do seu conteúdo essencial. Nesses casos, haverá possibilidade de controle constitucional.
Portanto, a lei que regule o direito dos índios às suas terras não deve comprometer os requisitos mínimos previstos na CF. Assim, v.g., para se perquirir a fonte do direito dos índios à ocupação de suas terras, a lei não poderá exigir títulos dominiais. Antes, deve buscar elementos no instituto constitucional do indigenato. Da mesma sorte, a aferição da posse há que buscar elementos na tradicionalidade de sua ocupação, sem que a lei possa cobrar os requisitos da posse civil.
3.2 Posse indígena e sua aplicabilidade plena e eficácia imediata
Dando continuidade à verificação dos efeitos dos direitos fundamentais e sua aplicabilidade à posse indígena, cita-se outra decorrência dos direitos fundamentais, qual seja, a eficácia de suas normas.
Assim preceitua o § 1º, do art. 5 º da CF 88: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Nesse sentido, defende-se que as normas constitucionais definidoras dos direitos indígenas (art. 231 e §§, CF) têm efeito concreto, ou seja, são autoaplicáveis, haja vista não precisarem de complementação legislativa para sua aplicação nos conflitos de interesses.
Na teoria constitucional atual, os constitucionalistas classificam as normas constitucionais em função do grau de eficácia e aplicabilidade que apresentam, sem pretenderem, contudo, negar eficácia jurídica a qualquer de suas categorias. Todas as normas contidas em uma Constituição rígida são normas jurídicas, inexistindo norma constitucional privada de eficácia.
Dentre as classificações mais aceitáveis na doutrina constitucional, cita-se, por exemplificação, as formulações de Crisafulli, defendidas por Paulo Bonavides (2010, p. 216); a classificação apresentada por Luis Roberto Barroso (1993, p. 89); a classificação elaborada por Canotilho (2010, p.167) e a construída por José Afonso da Silva (2010, p. 39), em sua obra.
Adotar-se-á, para os fins deste trabalho, a classificação das normas constitucionais apontadas por José Afonso da Silva (2010, p. 39) e por Luís Roberto Barroso (1993, p. 89). Começar-se-á pela análise desta última, que apresenta os seguintes tipos de normas: a) normas constitucionais de organização; b) normas constitucionais definidoras de direitos e c) normas constitucionais programáticas.
As normas constitucionais de organização são as que instituem os órgãos de soberania, definindo-lhes a competência e determinando as formas e os processos de exercício do poder político. Constituem uma categoria específica de regras “com estrutura normativa própria, destinados à ordenação dos poderes estatais, à criação e estruturação de entidades e órgãos públicos, à distribuição de suas atribuições, bem como à identificação e aplicação de outros atos normativos”. Não se confundem com as normas de conduta porque não se destinam a disciplinar comportamentos de indivíduos ou de grupos. Têm caráter instrumental e antecedem a incidência das demais normas, pois, além de estruturarem organicamente o Estado, disciplinam também a criação das normas de conduta (BARROSO, 1993, p. 89).
As normas constitucionais definidoras de direitos são aquelas que enunciam os direitos fundamentais, tripartidos em três categorias: os direitos políticos, os direitos individuais e os direitos sociais, ao lado da nova categoria de direitos - os direitos coletivos ou difusos. De acordo com Luís Roberto Barroso (1993, p. 90), as normas consagradoras de direitos fundamentais, em sede de sua eficácia, podem gerar três situações, quais sejam: a) geram situações prontamente desfrutáveis, dependentes apenas de uma abstenção. Cita-se, como exemplo, o direito à greve, assegurado pela Constituição Brasileira de 1988, no art. 9º, cabendo ao Estado o dever de abster-se de reprimir ou punir os que exercem; b) ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado; ou c) contemplam interesses cuja realização depende da edição de norma infraconstitucional integradora. Neste último caso, em virtude da concisão do texto constitucional, transfere-se ao legislador ordinário a competência para regular o exercício de determinados direitos constitucionais. Como exemplo, cita-se o artigo 7º, inciso XI, da Constituição Federal de 1988, que trata do direito do empregado à participação nos lucros ou resultados da empresa, desvinculada da remuneração, conforme definido em lei. Nota-se que a Constituição não dá ao legislador ordinário competência para conceder esses direitos; cabe-lhe apenas instrumentalizar a sua realização, regulamentando-os.
Por fim, têm-se as normas constitucionais programáticas que, na definição de Luis Roberto Barroso (1993, p. 91), são aquelas “destinadas a conformar a ordem econômica e social a determinados postulados de justiça social e realização espiritual, levando em conta o indivíduo em sua dimensão comunitária para protegê-lo das desigualdades econômicas e elevar-lhes as condições de vida em sentido amplo”.
Para o autor, as normas programáticas têm valor jurídico idêntico ao dos demais preceitos da Constituição, produzindo duas ordens de efeitos irradiadores: I - Do ponto de vista objetivo, desde o início de sua vigência, as normas programáticas geram os seguintes efeitos imediatos: “a) revogam os atos normativos anteriores que disponham em sentido colidente com o princípio que substanciam e b) carreiam um juízo de inconstitucionalidade para os atos normativos editados posteriormente, se com elas incompatíveis” e II -Do ponto de vista subjetivo, atribuem, de imediato, ao administrado o direito a: “a) opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição a atos que o atinjam, se forem contrários ao sentido preceptivo constitucional; b) obter, nas prestações jurisdicionais, interpretação e decisão orientadas no mesmo sentido e direção apontados por estas normas, sempre que estejam em pauta os interesses constitucionais por ela protegidos (BARROSO, 1993, p. 98).
Em consideração à eficácia e à aplicabilidade das normas constitucionais, José Afonso da Silva (2010, p. 39 e segs.), classificou-as em: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição e c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que compreendem as normas definidoras de princípio institutivo e as definidoras de princípio programático. De acordo com essa formulação, as normas de eficácia plena são as que recebem do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata, independendo de interferência do legislador infraconstitucional para a sua aplicação. As normas de eficácia contida também recebem normatividade suficiente para reger os interesses que cogitam, mas preveem meios normativos capazes de lhes reduzir a eficácia e a aplicabilidade. Por fim, as normas de eficácia limitada são as que não receberam do constituinte normatividade suficiente para a sua aplicação, dependem da regulamentação do legislador ordinário para manifestarem os seus efeitos com plenitude.
Considera-se, portanto, que o art. 231 CF e os seus parágrafos, definem os direitos dos índios e estabelecem garantias que possibilitam a sua execução material, haja vista suas normas, definidoras de direitos plenamente desfrutáveis, serem de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
No art. 231, caput, a Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos originários dos índios sobre as suas terras, ratificando, como dito em capítulos anteriores, o instituto do indigenato, e atribui à União a competência para demarcar e proteger tais terras. No parágrafo primeiro do mesmo artigo, a Constituição define o que sejam terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, com vistas a facilitar a aplicação do artigo. Nesses casos, quando o texto constitucional define os direitos dos índios e atribui à União a competência para protegê-los, não se exige qualquer intermediação do legislador ordinário para que a vontade da Constituição seja aplicada; a determinação constitucional em tais dispositivos é bastante, por si só, para operar efeitos concretos.
Da mesma forma se entende quanto ao disposto no parágrafo segundo, que destina as terras tradicionalmente ocupadas à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos seus habitantes indígenas. O legislador constituinte estabelece taxativamente a destinação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, dispensando qualquer interferência do legislador ordinário.
Os parágrafos terceiro, quarto, quinto e sexto do artigo 231 tratam de normas proibitivas. [35] O parágrafo terceiro impõe restrições ao aproveitamento em terras indígenas, de recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, à pesquisa e à lavra das riquezas minerais, condicionando-os à autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas.
O parágrafo quarto dispõe sobre a inalienabilidade e indisponibilidade das terras tradicionalmente ocupadas. O parágrafo quinto veda a remoção dos grupos indígenas de suas terras, estabelecendo, como exceção, os casos de catástrofe ou epidemia que ponha em risco a saúde de sua população ou o interesse da soberania do País, mediante autorização do Congresso Nacional, garantindo o imediato retorno tão logo cesse o risco.
O parágrafo sexto do art. 231 CF, declarou a extinção dos efeitos jurídicos dos atos que tenham por objeto a ocupação, a posse ou o domínio sobre terras indígenas. E, para não deixar dúvidas quanto ao direito dos índios sobre as suas terras, acrescenta que a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos desses atos não ensejará direito à indenização contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
É de salientar, contudo, que o legislador ordinário já disciplinou, em parte, o art. 231 da CF na Lei 6.001/73, diploma conhecido como Estatuto do Índio. Contudo, face a edição dessa lei ser anterior à CF 88, entende-se que, no que esse estatuto contrariar o “conteúdo essencial” da CF, esta deve se sobrepor. Nesse caso, será possível aplicar o art. 231 da CF, diretamente, independente de positivação ordinária.
Portanto, considerando a natureza de direito fundamental das normas definidoras dos direitos dos índios às suas terras, conclui-se que essa norma tem, igualmente, eficácia jurídica plena, sendo suscetível de aplicação direta e imediata.
3.3 Posse indígena e a implantação de políticas públicas pelo Estado
Questão que suscita grande interesse é a possibilidade de se exigir do Executivo a implementação de políticas públicas para concretizar os direitos fundamentais. Nesse sentido, busca-se identificar até que ponto o Judiciário pode impor ao Executivo que execute um serviço ou uma obra pública para a execução desse dever. O presente trabalho não tem como finalidade exaurir esse conteúdo, posto não ser este seu objetivo imediato. Contudo, não há como se furtar de tecer breves comentários sobre a possibilidade de pressão judicial sobre o Executivo para implementar os direitos fundamentais.[36]
A busca da efetividade dos direitos fundamentais é uma atitude que deve ser cobrada de todas as funções do poder do Estado. De um lado, exige-se que o Judiciário venha aplicar os dispositivos constitucionais no caso concreto, diretamente. Isso tem sido realizado mesmo nos casos que existam leis disciplinando o caso, contudo em contrariedade à CF. Por outro lado, o Legislativo também deverá colaborar com a efetivação dos direitos fundamentais, máxime na edição de leis infraconstitucionais que disciplinem aquelas normas. Do Executivo, por sua vez, cobra-se a realização de políticas públicas que concretizem os mandamentos constitucionais fundamentais na vida do povo brasileiro.[37]
Nesse contexto, tem tido grande repercussão esse tipo de controle judicial sobre a Administração pública, acerca da realização dos direitos fundamentais em geral (Andrade, 3929, p. 226 e ss.). A literatura jurídica brasileira mostra-se divergente quanto a esse tema. Nada obstante, tem-se observado por parte dos autores essa possibilidade de intervenção. Nesse sentido, posiciona-se o presente trabalho, desde que feita para implementar os direitos fundamentais.
Não se trata de concordância com a invasão indevida do Judiciário sobre a atividade do Executivo. Muito menos a admissão de que o juiz desacate a lei para conseguir o seu ideal pessoal de justiça.
Destarte, entende-se que a Administração Pública não deve fugir aos fins constitucionais. Ora, já foi discutida a posição de destaque dos direitos fundamentais na CF 88, bem como os motivos para tanto e os atributos resultantes dessa qualificação. Dessa feita, o Executivo não pode fugir a essa realidade. Portanto, deverá priorizar a realização dos direitos fundamentais na eleição de suas políticas públicas. [38]
Logo, não se está a admitir a imissão desarrazoada de um poder sobre outro nem a substituição de funções entre os poderes. Na verdade, o que se defende é o acompanhamento pelo Judiciário da implementação dos direitos fundamentais. Trata-se de um controle judicial, para os casos em que se verifica inércia arbitrária do Executivo.
Portanto, o princípio da proporcionalidade pode ser aqui aplicado para exigir o cumprimento de uma atitude devida pelo Estado. Nesse quadrante, intui-se que o Executivo deve priorizar a realização dos direitos indígenas sobre as suas terras. Assim, uma vez verificada a “fundamentalidade” desse direito, não se concebe, v.g., o descaso com a demarcação das terras indígenas. Destarte, O ADCT, no seu art. 67, prevê que a demarcação das terras indígenas deveria ser concluída em até cinco anos após a promulgação da CF. Contudo, até os dias atuais, parte considerável dessas demarcações ainda não foi concluída[39]. O Judiciário em tais casos poderia impor responsabilização da Administração (ANDRADE, 3951, p. 360 e ss.), ou medidas de coerção para realizar os direitos fundamentais dos índios. Na hipótese, ora discutida, poderia, ao verificar a tensão decorrente da não demarcação em uma dada área, conceder um prazo razoável para a realização do processo demarcatório, sob o aviso de aplicação de multa diária, no caso de desacatamento.
3.4 Aplicação do princípio da ponderação para a colisão entre os direitos fundamentais da posse indígena e da propriedade particular
Destaca-se aqui outro ponto de significância em considerar a posse indígena como direito fundamental. Trata-se da aplicação do “princípio da ponderação” para os casos de conflitos de interesses que envolvam a propriedade particular e a posse indígena.
É certo que já existe uma solução, a priori, para tal choque de direitos. Como já visto, extrai-se da própria Constituição Federal, no seu art. 231, § 6°, que os títulos de propriedade sobre terras indígenas são nulos de pleno direito. Essa norma é autoaplicável e independente de regulamentação legislativa para produção de efeitos. Logo, nos casos em que houver os dois interesses em jogo, já se sanaria o problema com a simples subsunção da lei. Portanto, prefacialmente, o direito do índio à posse se sobreporia ante os títulos de propriedade de particulares.
Acentua-se que, mesmo nos casos em que a terra indígena não é demarcada, ainda assim, a posse indígena deve se sobressair juridicamente sobre a propriedade civil. Isso porque o Estatuto do Índio, em seu art. 25, dispõe que o direito dos índios sobre essas terras independe de sua demarcação. Por conseguinte, a conclusão do referido processo administrativo é mero ato declaratório de um direito pré-existente. Logo, já seria possível conferir proteção à posse dos índios antes da demarcação de suas terras.[40]
Entretanto, o campo de aplicabilidade do princípio da ponderação exsurge ultimamente, como forma de contrapor-se, justamente, ao desacato do Judiciário a estas normas, previstas no art. 231, §6°, CF e no art. 25 do Estatuto do Índio.
Trata-se, principalmente, de decisões do juízo de primeiro grau que desprivilegiam a posse indígena em face da propriedade particular. Alegam alguns magistrados que a falta de conclusão do processo administrativo não confere certeza sobre qual terra o processo administrativo irá reconhecer como indígena. Em tais casos, preferem dar primazia aos títulos de propriedade particular, para assegurar a segurança jurídica das relações[41].
Nessa situação, há que se socorrer do argumento de que a posse dos índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas é um direito fundamental. A partir dessa premissa, corrobora-se com a ideia de que tanto a posse indígena, quanto a propriedade particular tem grande importância no sistema constitucional e no segurança jurídica nacional. Logo, se lançaria mão do princípio da ponderação para a composição do conflito.
Destarte, uma vez que se considere a força normativa dos princípios constitucionais que veiculam direitos fundamentais, também se vislumbra a possibilidade de um conflito aparente de princípios no caso concreto. Essa conclusão deve-se ao fato de os princípios admitirem sua pesagem, caso a caso, quando em choque com outros princípios.
Assim, tem-se verificado a existência de um número cada vez maior de interesses jurídicos protegidos pelo Estado. Contudo, esses elementos devem guardar coerência interna dentro dos Estados. Nesse contexto, importante destacar o princípio da unidade da Constituição, pelo qual as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma harmônica. Atenta-se para a lição de Marcel Queiroz Linhares (2001, p. 223) que ensina que o princípio da unidade da Constituição assume relevância, quando se exige que o aplicador do Direito considere a Constituição em seu todo e procure equilibrar as tensões existentes entre as normas constitucionais a serem realizadas.
Considera-se, nesses casos, que há uma colisão aparente entre normas de direitos fundamentais. A solução para o conflito poderá, ser sanada pelo princípio da ponderação, que impõe um sopesamento dos princípios, para se saber, no caso concreto, quem tem o maior valor e preponderância. (ANDRADE, 2010, p. 176).
A literatura jurídica nacional tem se manifestado sobre a preponderância dos valores humanos, baseados na dignidade da pessoa humana para definir qual o direito que deve ter primazia no caso concreto. Nesse caminho, Gilmar Mendes (2003, p. 184) e Ana Paula Barcellos (2003, p. 108) entendem que na tentativa de fixar uma regra geral, os valores relativos às pessoas têm precedência sobre valores de índole material, devendo prevalecer soluções que consagrem a dignidade da pessoa humana.
Então é possível deduzir que a missão do princípio da ponderação será fazer prevalecer os mais caros elementos constitucionais, dentre eles os direitos fundamentais, os objetivos e os fundamentos do Estado brasileiro. Portanto, prevalecerá o princípio que esteja em maior consonância com tais ideais.
Dessa forma, verifica-se que o Brasil está constituído em um Estado Democrático de Direito e adotou, dentre os seus fundamentos, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1, inc. I e II). Igualmente, determinou, como objetivos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação à pobreza e à marginalização, bem como redução das desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3, I e III).
Portanto, nos conflitos entre a posse indígena e a propriedade particular, muitas vezes, vislumbra-se a proteção, respectivamente, do direito à vida, à dignidade da pessoa humana e à diversidade cultural dos índios, e, do outro lado, o direito ao patrimônio particular e os interesses econômicos.
No que pertine à propriedade, deve-se lembrar que a proteção que a Constituição lhe garante, não é absoluta. Portanto, relativiza-se esse amparo sempre que outras razões em jogo mostram-se mais relevantes ao interesse público e à justiça social. É o caso das desapropriações por interesse social e público (arts. 5°, XXIV, 184 e 185 da CF) e as requisições civis e militares (art. 22, III, CF).
De outro lado, é preciso assentar que, via de regra, a relação do índio com a terra é mais que uma relação econômica, porquanto se traduz numa relação de pertencimento e identificação com aquele habitat. Portanto, como os índios tendem a manter essa ligação cultural e histórica com o ambiente em que foram criados, a sua retirada poderia gerar um forte trauma.
Contudo, para o melhor emprego do princípio da ponderação, só a partir da apreciação do caso concreto[42], poder-se-á verificar qual dos direitos fundamentais deverá prevalecer, uma vez que, regra geral, não se admite a superioridade de um direito fundamental em tese. Muito embora, registra-se que a ponderação não se trata de uma justiça casuística, mas uma forma de decidir conforme a principiologia constitucional. (CANOTILHO, 2010, p.1238 e 1240).
Dessa feita, mesmo que se considere, em tese, a igualdade valorativa dos direitos fundamentais, é possível que, no caso concreto a posse indígena, como direito fundamental, tenha uma primazia quando em conflito com a propriedade particular.
Assim, quando verificado, na realidade fática, que o interesse jurídico indígena é mais condizente com os fundamentos e objetivos da Constituição Federal do que a mera proteção ao patrimônio particular, aquele deverá prevalecer.
Portanto, a aplicação do princípio da ponderação tem se mostrado indispensável na pacificação com justiça da colisão entre os direitos fundamentais da propriedade tradicional e da posse indígena, baseada numa visão democrática do direito.
CONCLUSÃO
O Brasil vem mantendo uma disciplina legal toda própria para a proteção dos índios. Desde a época que era uma Colônia até os dias atuais, tem insculpido previsões constitucionais, bem como leis ordinárias, dentre elas, um Estatuto próprio direcionado aos direitos indígenas.
A Constituição Federal de 1988 também ofereceu os elementos básicos da definição do que sejam terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, condicionando-os aos usos, costumes e às tradições de cada comunidade indígena. De sorte que a posse indígena deve ser identificada a partir da forma de viver de cada comunidade indígena, segundo os seus usos, costumes e as suas tradições, marcando definitivamente a sua diferença com a posse regulada pelo Código Civil brasileiro.
Defende-se, neste trabalho, a natureza de direito fundamental da posse dos índios sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas. Isso é possível ainda que o artigo 231 da Constituição Federal, que versa sobre o direito dos índios, esteja fora do catálogo constitucional que elenca os direitos fundamentais. Esse argumento ampara-se no art. 5°, §2°, CF que estende a fundamentalidade às disposições previstas em tratados internacionais sobre direitos humanos que o Brasil faz parte, bem aos direitos decorrentes do regime e princípios desta Constituição.
No que pertine à fundamentalidade dos direitos humanos insertos em tratados internacionais, cita-se que o Brasil assinou a Convenção 169 da OIT, que prevê o direito dos índios sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas. Essa convenção foi ratificada pelo Brasil antes da Emenda Constitucional 45/04, que acrescentou o § 3° ao art. 5° da CF, que exige um quórum especial, não obedecido pela presente Convenção. Nesse sentido, o STF emitiu entendimento recente sobre normas previstas em tratados internacionais aprovados antes da referida Emenda Constitucional. Entende-se que essas normas possuem natureza “supralegal”, portanto são hierarquicamente superiores às leis ordinárias. Esse julgamento do STF, ainda que não tenha modificado formalmente a Constituição Federal, fez com que se alterasse o “entendimento” desta, posto que os direitos previstos nos aludidos tratados internacionais ratificados pelo Brasil geram efeitos no território nacional mesmo que disponham de forma contrária à Constituição. Nesse caso, houve informalmente o acréscimo de mais um direito ao Ordenamento Jurídico Brasileiro e por ter sido inserido via tratado internacional, goza do status de direito fundamental. O mesmo entendimento aplica-se à posse indígena.
Justifica-se, ainda, a fundamentalidade da posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, no fato desse dispositivo decorrer do regime e dos princípios da Constituição Federal brasileira. Destarte, o art. 231 da CF, aqui configurado como verdadeiro princípio jurídico, assenta-se diretamente no princípio fundamental da República Federativa do Brasil, qual seja a dignidade da pessoa humana. Além disso, advém do regime democrático e equivale aos demais direitos fundamentais constitucionais.
A importância de se considerar os direitos dos índios como um direito fundamental decorre das prerrogativas que essa classe especial de direitos possui no Ordenamento pátrio. Dentre elas, cita-se a possibilidade de aplicabilidade direta e eficácia imediata, a impossibilidade de sofrer emenda constitucional que lhe restrinja sobremaneira o conteúdo ou exclua sua existência, a sua priorização na implantação de políticas públicas e, principalmente, a sua equiparação em importância constitucional, com o direito de propriedade particular, que, por vezes, demandará o princípio da ponderação para melhor resolução de conflitos.
Entretanto, mesmo que o Ordenamento Jurídico brasileiro tenha estabelecido os parâmetros para proteção da posse das terras de ocupação tradicional indígena, ainda é possível constatar, na realidade, o desrespeito a esses direitos. Trata-se, de um turno, da inércia administrativa na demarcação das terras indígenas à revelia até mesmo do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que estabeleceu um prazo até 1993 para que todas as terras indígenas fossem efetivamente demarcadas. Por outro ângulo, observa-se a continuidade de permanência de particulares nas terras indígenas que, em muitos casos, abrigam potenciais energéticos e turísticos. Por fim, denuncia-se a verificação de julgamentos, principalmente em primeira instância, que desacatam as normas protetivas indígenas e recalcitram em tratar a posse indígena nos mesmos moldes que a meramente civil. Tudo isso tem privado os indígenas da completa disposição sobre a posse de suas terras. E essa espoliação gera um efeito progressivo e negativo nos seus demais direitos básicos, tais quais, à educação, saúde, moradia, segurança, reprodução física e cultural e ao meio ambiente.
Portanto, o reconhecimento da posse indígena como um direito fundamental pode ser um instrumento jurídico eficaz para a pacificação social. Daí a importância do debate sobre a superioridade de prerrogativas que os direitos fundamentais vêm a ter dentro do sistema, posto que, cada vez mais, existem conflitos que envolvam a posse indígena em face de outros direitos fundamentais e que reclamam uma solução. Assim, a adoção dessa teoria sobre a natureza da posse indígena tem como fim auxiliar na sua efetivação.
Contudo, constata-se, na realidade jurídica nacional, certa falta de efetividade das normas, problema que afeta até mesmo os direitos fundamentais. Em vista disso, para caminhar rumo à pacificação social, é preciso que os dispositivos jurídicos, máxime os mandamentos constitucionais “fundamentais”, tenham uma interpretação e aplicação adequada e gerem efeitos práticos na vida social. Uma Constituição se torna inútil se não for efetivamente aplicada e respeitada pelos governantes e governados.
Portanto, não é suficiente que se considere o direito dos índios sobre suas terras como um direito fundamental, para pacificar os conflitos sociais. Logo, só a roupagem diferenciada de um mandamento não conduzirá a sua operatividade. Contudo, é um passo importante para o fortalecimento deste direito, frente aos demais direitos colidentes. Assim, é preciso que o Estado, principalmente nas suas funções executivas e judiciárias, de forma conjunta com os movimentos indígenas e os diversos atores comunitários envolvidos, venham, realmente, cumprir as normas protetoras da posse indígena, a fim de produzir eficácia social e buscar transformações na realidade brasileira.
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[1] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, França, 1789: “Art. 16 – “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem constituição.”
[2] Nesse sentido, acrescenta Carlos Ari Sundfeld (2000, p.40), que as relações entre Estado e indivíduo durante o Estado constitucional moderno passam a ser regidas pelos seguintes pressupostos: “(a) a supremacia da Constituição; (b) a separação de poderes; (c) a superioridade da lei; e (d) a garantia dos direitos individuais.” (grifo proposital)
[3] O estudo sobre o conflito aparente de normas constitucionais no caso concreto e a utilização do princípio da ponderação será estudado mais adiante, neste trabalho.
[4] Será feito adiante, o detalhamento sobre as prerrogativas especiais dos direitos fundamentais.
[5] Os conflitos próprios do constitucionalismo contemporâneo ocorrem frequentemente entre direitos fundamentais justamente porque não é possível hierarquizá-los em abstrato, dada a sua fundamentalidade. (BARCELLOS, 2003, p. 39)
[6] Parafraseamos, a seguir, o pensamento de Habermas (2007, p. 301-347): “O pensamento liberal tem por objetivo proteger a liberdade do indivíduo enquanto cidadão da sociedade (liberdades subjetivas iguais para todos). Essa visão, porém, permite o surgimento de uma interpretação egoísta da liberdade. [...] A liberdade ética igual para todos cai em contradição consigo mesma no decorrer da execução do programa liberal, pois uma Constituição liberal garante a todos os cidadãos a igual liberdade de configurar sua vida seguindo os ditames de sua própria concepção do bom. [...] Daí a retomada pelo republicanismo, de uma idéia de liberdade ampliada intersubjetivamente e ligada ao papel de cidadão democrático (solidário, participativo). [...] Mesmo assim, a fusão entre cidadania do Estado e cultura nacional gera uma interpretação dos direitos dos cidadãos insensível às diferenças culturais. Por isso, no âmbito de sociedades pluralistas, quando se atribui precedência política a um bem comum impregnado politicamente em detrimento da garantia efetiva de liberdades éticas iguais, gera-se discriminação de modos de vida divergentes. [...] Direitos culturais decorrem da proteção à dignidade humana, pois deve-se assegurar ao homem igual acesso aos padrões de comunicação, às relações sociais, às tradições e condições de reconhecimento, os quais são necessários ou desejáveis para o desenvolvimento, a reprodução e a renovação de sua identidade pessoal. Daí assegura-se direitos coletivos (direitos de certos 'grupos de identidade'). [...] Direitos coletivos autorizam grupos culturais a manter recursos e a disponibilizá-los para que seus membros possam lançar mão deles a fim de formar e estabilizar sua própria identidade pessoal. [...] Assim, uma vez que o procedimento democrático faz a legitimidade das decisões depender das formas discursivas de uma formação inclusiva da opinião e da vontade, as normas destinadas a garantir iguais direitos só podem surgir quando se tem conhecimento dos fardos diferenciados que implicam e após a avaliação desses fardos. [...] Apenas o universalismo igualitário que exige iguais direitos, sem deixar de ser sensível às diferenças, tem condições de satisfazer as exigências individualistas que consistem em garantir equitativamente a integridade vulnerável do indivíduo que é insubstituível e cuja biografia é inconfundível”.
[7]“Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no Art. 174, §§ 3º e 4º”.
[8] Prefere-se não adentrar, por não ser objeto desta pesquisa, na discussão sobre se os direitos fundamentais estão previstos somente no art. 5° da CF, posição da maioria da doutrina, ou se abrange todos os dispositivos do título II da CF, arts. 5° a 17, como defende Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p. 210 a 250). Contudo, para fins desse trabalho, passar-se-á a mencionar somente o art. 5° da CF para se referir ao elenco dos direitos fundamentais.
[9] Entendimento comungado por Hesse, Stern e Canotilho, apontado na obra de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 84-87).
[10] Também são considerados direitos fundamentais aqueles que, mesmo não expressos na Constituição, são decorrentes de tratados internacionais e do regime e princípios constitucionais, conforme o art. 5°, § 2°, CF. Portanto, quando se utiliza da assertiva simplificada de que os direitos fundamentais são aqueles que estão positivados na Constituição, na verdade se está querendo dizer que serão direitos fundamentais os que se inserem no sistema constitucional de cada país, afirmação essa mais cônsona com o sistema constitucional aberto brasileiro.
[11] Do ponto de vista formal, podem ser designados como direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Já do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem os seus direitos fundamentais específicos. (BONAVIDES, 2010, p. 22)
[12] Habermas (2007, p. 56)se limita a dar uma justificação filosófica aos direitos fundamentais, ou seja, os Direitos Humanos, que foram adotados por determinado ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito. Isso é péssimo para os indivíduos de inúmeros Estados do planeta que não possuem garantias jurídicas mínimas.
[13] Segundo Piovesan (2006, p.27), o processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais vulneráveis, como as mulheres, as populações afrodescendentes e os povos indígenas.
[14] A esse respeito, é esclarecedor o entendimento de Ana Maria D’Ávila Lopes (2008, p. 03): “Com efeito, o art. 5°,§ 2°, estabelece que são direitos fundamentais os que se encontram expressos no texto constitucional sem restringir, desse modo, sua existência apenas aos elencados no Título II (‘Dos direitos e garantias fundamentais’)[...]Constata-se, desse modo, a existência na ordem constitucional de diversos direitos fundamentais estando, alguns deles, dirigidos a proteger de forma geral a dignidade humana de todos os brasileiros e estrangeiros (caput, art. 5), e outros, direcionados especificamente a determinados grupos minoritários (mulheres, portadores de necessidades especiais, idosos, crianças e adolescentes, etc., citando-se, dentre eles, as comunidades indígenas).”(grifo proposital).
[15] Alexy (2001, p.70), corrobora esse entendimento, ao afirmar que: “las normas de derecho fundamental pueden, por ello, dividirse en dos grupos: en las normas de derecho fundamental directamente estatuidas por la Constitución y las normas de derecho fundamental a ellas adscriptas.”
[16] Como assinala Jorge Miranda (1988, p. 12), em nota sobre a cláusula de abertura, semelhante nas Constituições Americana e Portuguesa: “[...] pode acrescentar-se que, indiretamente, a Constituição - a americana, como a portuguesa - os prevê é porque adere a uma ordem de valores (ou ela própria encarna certos valores) que ultrapassem as disposições dependentes da capacidade ou da vontade do legislador constituinte; é porque a enumeração constitucional, em vez de restringir, abre para outros direitos – já existentes ou não –que não ficam à mercê do poder político.”
[17] Este estudo não tem como fim exaurir as características dos direitos fundamentais trazidas pela doutrina, senão citar algumas delas, que são consideradas importantes para a compreensão inicial sobre o tema.
[18] Nesse sentido, comenta José Afonso da Silva (2000, p.147): “A eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspira a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Portanto não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí a sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.”
[19] “Art. 1° - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre inicativa; V – o pluralismo político.”
[20] Nesse sentido, ensina Carmem Lúcia Antunes Rocha (1999, p. 60): “E a dignidade da vida fez-se direito. A própria vida tornara-se conteúdo fundamental dos ordenamentos jurídicos no Estado Moderno. Percebe-se que não basta o viver-existir. Há que se assegurar que a vida seja experimentada em sua dimensão digna, entendida como qualidade inerente à condição do homem em sua aventura universal. Assim, o que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.”
[21] Por sua vez, passando a centrar a nossa atenção na dignidade da pessoa humana, desde logo há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, indissociável vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo. (SARLET, 2010, p. 26)
[22] É o que ensina Ana Paula Barcellos (2006, p.39): “Os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo político, seja porque constituem elementos valorativos essenciais, seja porque descrevem exigências indispensáveis para um procedimento de deliberação democrática. “
[23] Ressalta-se a lição de Marcel Linhares (2001, p.219): “É característica dos Estados efetivamente democráticos a tutela dos interesses relativos aos diversos segmentos sociais que o compõem. Por isso, os ordenamentos jurídicos inerentes às sociedades pluralistas não se resumem ao reconhecimento apenas de valores defendidos apenas por um determinado grupo de interesses: ao revés, refletem a complexidade das mais diversas aspirações do todo o corpo social.”
[24] Os exemplos de sociedades multiculturais demonstram que uma cultura política sobre a qual estão enraizados princípios constitucionais não tem de modo algum que estar baseada no fato de todos os cidadãos partilharem uma língua comum ou a mesma origem étnica ou cultural. Ao invés, a cultura política deve servir de determinador político para um patriotismo constitucional que simultaneamente aguça uma consciência da multiplicidade e integridade das diferentes formas de vida que coexistem numa diferente sociedade multicultural. (HABERMANS, 1995, p. 264)
[25] Na fase jusnaturalista, os princípios eram vistos somente como a fonte de onde se originavam as regras. Já na fase positivista, os princípios passaram a constar nos Códigos e tinham aplicação subsidiária. Nos últimos anos do século XX, num momento pós-positivista, o autor observa que: “As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidas em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais” (BONAVIDES, 2008, 266).
[26] Há na Constituição Federal normas que visam estabelecer “regras” para cada caso concreto. Cita-se, os exemplos do procedimento de elaboração da lei ordinária, da composição dos tribunais superiores, dentre outros. Nesses casos, ou a hipótese subsume-se ao comando e daí este é aplicado, ou então não há sua não aplicação ao caso concreto.
[27] Habermans e Günther (seguindo a orientação de Dworking) também concordam com a força normativa dos princípios. Contudo, não o fazem nos mesmos termos da teoria de Alexy. A diferença reside no momento de tensão entre os princípios a fim de se alcançar a ‘integridade’ do sistema. Pois Alexy entente que aí deve ser utilizado o critério da preferibilidade. Nesse ponto, discorda Habermans, pois diz que tal critério só é aplicável à valores. Logo, no campo normativo, não deve ser utilizada uma gradação, mas uma cessão, no caso concreto, de um princípio perante outro. Esse processo é chamado de adequabilidade (GALUPPO, 1999, p. 196, 200 e 203.)
[28] A aplicação do princípio da proporcionalidade será discutida no tópico a seguir quando serão enfrentados os efeitos de se considerar a posse indígena como um direito fundamental.
[29] “Sem embargo da relevância de eventuais objeções que podem ser levantadas contra a posse indígena, não se há de perder de vista que a proteção, que constitucionalmente se lhe empresta, vem da Carta Magna de 1934 (art.129), configurando, sem dúvida, princípio já tradicional do Direito Público Brasileiro (Carta de 1937, art.157; Constituição de 1946, art.216; Constituição de 1967, art.186; Constituição de 1969 (Emenda n°. 1), art. 198)”. (MENDES, 1989, p. 51)
[30] Expressão cunhada por Ingo Wolfgang Sarlet para designar o rol dos direitos fundamentais da CF.
[31] Esclarece, assim, Uadi Lammêgo Bulos (2005, p. 1-2):Traduzindo a etimologia da palavra para o campo constitucional, cláusula pétrea é aquela imodificável, irreformável, insuscetível de mudança. [...] Tem efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, logrando incidência imediata. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução.
[32] Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes (2005, p. 2-3): “Não se fazia mister que a Constituição declarasse a imutabilidade de determinados princípios (Schmitt). É que a revisão não poderia, de modo algum, afetar a continuidade e a identidade da Constituição.[...]Em qualquer hipótese, os limites do poder de revisão não se restringem, necessariamente, aos casos expressamente elencados nas garantias de eternidade. Tal como observado por Bryde, a decisão sobre a imutabilidade de determinado princípio não significa que outros postulados fundamentais estejam submetidos ao poder de revisão.” (Grifou-se)
[33] Nesse sentido, o pensamento de Ana Paula Barcellos (2006, p. 42): “Quando a Constituição consagra cláusulas pétreas – que, na Carta de 1988, incluem os direitos fundamentais (CF, art. 60, § 4°, IV)-, nada há o que o poder político ordinário possa fazer acerca de tais normas, salvo submeter-se. Com efeito, esse conjunto de normas imodificáveis constitui um núcleo mínimo de decisões que deve ser observado por qualquer grupo político no poder, sobretudo no que no que diz respeito aos direitos fundamentais.”
[34]“O STF dispõe sobre a impossibilidade de se reformar a Constituição sobre determinadas matérias. Tal quando proíbe que se faça plebiscito para se aceitar a pena de morte, por entender que é um limite material imposto pelo poder constituinte originário que o poder constituinte derivado não pode desrespeitar. [...] Emenda inconstitucional - A irreformabilidade desse núcleo temático acaso desrespeitada pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta da constitucionalidade.” (BRASIL, 1991, p. 5.526 a 5.929).
[35] Ensina José Afonso da Silva (2010, p. 39) que as normas constitucionais proibitivas prescindem de regulamentação posterior, podendo ser direta e imediatamente aplicáveis. Para o autor, “as vedações não são subordinadas a gradações para que possam ser deixadas a uma regulamentação ulterior. Não teria sentido a Constituição conter uma norma que dissesse: a lei vedará..., a lei proibirá..., pois se o constituinte entende que uma conduta merece ser proibida, não tem sentido deixar a proibição para o legislador ordinário”. Assim, ou a Constituição proíbe determinada conduta, sendo esta proibição bastante em si, ou não a proíbe.
[36] Recomenda-se, dentre outras, a leitura do trabalho de Ana Paula Barcelos: Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas, para compreensão do controle do mérito administrativo pelo Judiciário.
[37] Tal exigência é premente na literatura jurídica pátria: “Começou-se a questionar sobre o tipo de eficácia dos direitos fundamentais (justamente a parte mais nobre do direito constitucional) poderiam ter no âmbito das relações estritamente intersubjetivas. Na nova concepção de direitos fundamentais, diretamente vinculantes, a Administração deve pautar suas atividades no sentido não só de não violar tais direitos, como também de implementá-los praticamente, mediante a adoção de políticas públicas que permitam o efetivo gozo de tais direitos fundamentais por parte dos cidadãos. Quanto ao legislador, o reconhecimento da eficácia jurídica dos direitos fundamentais impõe aos mesmos deveres positivos, no sentido de editar legislação que regulamente as previsões constitucionais, desenvolvendo os programas contidos na Carta. Mas também o Judiciário foi chamado a dar sua contribuição, então o juiz ao interpretar e aplicar o direito privado, deve também levar em conta as regras e os princípios constitucionais que tratam diretamente do tema objeto do litígio... Daí porque se defende que a Constituição deve ser aplicada diretamente, inclusive em relações interprivadas, ao menos sempre que a controvérsia de que se trata não possa ser resolvida com base na lei, seja por ser a lei lacunosa, seja porque a lei oferece uma solução aparentemente injusta.” (FACCHINI NETO, 2003, p. 43-44)
[38] Essa é a posição defendida por Ana Paula Barcellos (2006, p.45):Com efeito, controlar as decisões do Poder Público nesse particular significará, e.g., concluir que determinada meta constitucional é prioritária e, por isso, a autoridade pública está obrigada a adotar políticas por ela associadas. Significará, também, afirmar que determinada política pública, embora aprovada pelos órgãos majoritários, não deve ser implementada até que as metas prioritariamente estabelecidas pelo constituinte originário tenham sido estabelecidas... As decisões do Poder Público acerca de definições de políticas públicas podem - e devem - ser controladas juridicamente, pois toda ação estatal está vinculada à Constituição em geral e a seus fins em particular... Os fins constitucionais podem ser descritos como a realização da dignidade humana e a promoção e proteção dos direitos individuais.
[39] Para citar um exemplo contundente do descaso com a demarcação das terras indígenas, informe-se que no estado brasileiro do Ceará, há 18 (dezoito) terras habitadas tradicionalmente pelos indígenas. Contudo, somente 01 (uma) encontra-se com o processo de delimitação e demarcação completamente concluído, qual seja a Terra Indígena Córrego João Pereira.
[40] Consoante o art. 25 da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) que trata sobre os efeitos meramente declaratórios do processo administrativo de delimitação e demarcação de terras indígenas.
[41] Cite-se, como exemplo, a ação de reintegração de posse, processo n° 0001542-51.2005.4.05.8100 (2005.81.00.001542-2), que tramita perante a 10ª Vara Federal do Ceará, em que figuram, como demandante, Juraci de Souza Araújo, e, como demandado, a Fundação Nacional do Índio e outros. O objeto da ação trata sobre a terra indígena Tapeba, situada na cidade de Caucaia-CE. Essa terra reúne a maior comunidade indígena do estado cearense. Contudo, sofre severo preconceito, em parte causado pela localização vizinha à cidade de Fortaleza e porque a maioria de seus índios tem contato com a população não-índia. Assim, em face do processo administrativo de delimitação e demarcação da presente terra ainda não ter sido concluído, o juiz proferiu sentença em que determinou a retirada dos índios da referida terra, preferindo privilegiar os títulos de propriedade sobre a área, do que conferir a proteção possessória aos índios. Agregue-se que a área e os índios atingidos pelo presente mandado de reintegração de posse já foram objeto de estudos antropológicos que conferem verossimilhança à etnicidade indígena da comunidade, recebem assistência da FUNAI e teve escola construída com verbas públicas. Informe-se, por fim que da presente sentença, foi interposta apelação pela Procuradoria Federal – AGU, que aguarda julgamento do TRF 5ª região. (CEARÁ, Sentença, 2010)
[42]Para Canotilho (2010, p. 419-420), há duas teorias sobre a preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais. A teoria absoluta diz que esse núcleo deve ser extraído abstratamente, sem se levar em conta o caso concreto. Já a teoria relativa, diz que o conteúdo essencial será observado caso a caso. O autor adere à primeira teoria.
Procurador Federal (atualmente Coordenador do Contencioso, Cobrança e Recuperação de Crédito do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUíS DE FREITAS JúNIOR, . O direito fundamental dos índios à posse das suas terras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2013, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36257/o-direito-fundamental-dos-indios-a-posse-das-suas-terras. Acesso em: 22 nov 2024.
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