SUMÁRIO: Introdução – 1. Da coisa julgada: 1.1. Noções Gerais; 1.2. Fundamento político – 2. Dos mecanismos legais de impugnação da coisa julgada – 3. Da relativização da coisa julgada: 3.1. Colisão entre princípios constitucionais e sua forma de resolução; 3.2. Relativização da coisa julgada à luz da teoria constitucionalista moderna; 3.3. Instrumentos processuais – Conclusão – Referências.
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo deste trabalho é a teoria da relativização da coisa julgada, uma tendência que vem se registrando, entre respeitável parcela dos processualistas brasileiros e, inclusive, em decisões dos tribunais superiores, no sentido de mitigar a força do instituto da coisa julgada, admitindo sua desconsideração em determinadas circunstâncias, além dos casos expressamente previstos no ordenamento jurídico pátrio.
Para uma melhor compreensão desse movimento doutrinário-jurisprudencial, a pesquisa partirá de uma análise geral do instituto da coisa julgada, que será conceituada e terá seus componentes formal e material devidamente discriminados. Após a análise desses elementos, buscar-se-á o seu fundamento político, de forma a aferir os argumentos que justificam a sua existência.
Num segundo momento, será realizada uma breve explanação acerca dos mecanismos de impugnação da coisa julgada previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro, verificando, assim, as situações excepcionais nas quais o próprio legislador admitiu a modificação de sentenças transitadas em julgado, mitigando a autoridade da res iuducata.
Por fim, será abordado o objeto central do trabalho. Após traçar os contornos gerais da divergência existente em torno da possibilidade de relativização da coisa julgada em situações nas quais ainda não há uma expressa regulamentação legal, pretende-se formular, à luz da teoria constitucionalista moderna, um posicionamento jurídico acerca do assunto.
1 DA COISA JULGADA
1.1 NOÇÕES GERAIS
A sentença, enquanto ainda sujeita a recurso com efeito suspensivo, não é capaz de produzir todos os seus efeitos. Embora não se possa dizer que essa decisão não produz efeito algum – uma vez que ela reflete, por exemplo, na irretratabilidade do juiz (CPC, art. 463) e na possibilidade de hipoteca judiciária (CPC, art. 466) –, é certo que ela não é capaz de produzir os seus efeitos próprios, quais sejam, o declaratório, o condenatório e/ou o constitutivo.
Quando, porém, num determinado momento processual, resta caracterizada a coisa julgada, a sentença adquire a qualidade de imutabilidade e, consequentemente, torna-se lei entre as partes, estando apta a produzir todos os seus efeitos. Esse fenômeno processual, que decorre da impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença, é composto de duas vertentes: uma formal e uma material.
A respeito da coisa julgada formal, o processualista Humberto Theodoro Júnior anota o seguinte:
A coisa julgada formal decorre simplesmente da imutabilidade da sentença dentro do processo em que foi proferida pela impossibilidade de interposição de recursos, quer porque a lei não mais os admite, quer porque se esgotou o prazo estipulado pela lei sem interposição pelo vencido, quer porque o recorrente tenha desistido do recurso interposto ou ainda tenha renunciado à sua interposição.[1]
Trata-se, portanto, da qualidade de imutabilidade que a sentença adquire no âmbito do processo em que foi prolatada, em virtude do exaurimento das vias recursais. Como conseqüência da imutabilidade desse ato jurisdicional, torna-se igualmente imutável o comando dele emergente, dando origem, assim, à coisa julgada material. A propósito, Moacyr Amaral Santos aduz que:
Em conseqüência da coisa julgada formal, pela qual a sentença não poderá ser reexaminada e, pois, modificada ou reformada no mesmo processo em que foi proferida, tornam-se imutáveis os seus efeitos (declaratório, ou condenatório, ou constitutivo). O comando emergente da sentença, como ato imperativo do Estado, torna-se definitivo, inatacável, imutável, não podendo ser desconhecido fora do processo. E aí se tem o que se chama coisa julgada material, ou coisa julgada substancial, que consiste no fenômeno pelo qual a imperatividade do comando emergente da sentença adquire força de lei entre as partes.[2]
Na verdade, as duas facetas da coisa julgada decorrem de uma mesma causa: a impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença. A diferença entre elas reside no fato de que a coisa julgada formal confere imutabilidade à sentença enquanto ato processual, gerando efeitos unicamente endoprocessuais, ao passo que a coisa julgada material torna imutáveis os próprios efeitos dessa sentença, o que gera reflexos, também, fora do processo. Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior pontifica que:
A coisa julgada formal atua dentro do processo em que a sentença foi proferida, sem impedir que o objeto do julgamento volte a ser discutido em outro processo. Já a coisa julgada material, revelando a lei das partes, produz seus efeitos no mesmo processo ou em qualquer outro, vendando o reexame da res in iudicium deducta, por já definitivamente apreciada e julgada.[3]
Destarte, como duas faces da mesma moeda, a coisa julgada formal e a coisa julgada material surgem diante do exaurimento das vias recursais, repercutindo na imutabilidade da sentença enquanto ato processual e, por consequência, dos efeitos que dela emergem. Em virtude desse fenômeno, o ato decisório se torna insusceptível de reforma no âmbito da relação processual em que foi prolatado e a lide não poderá mais ser rediscutida, seja no mesmo processo ou em outras relações processuais supervenientemente instauradas.
Nesse particular, citem-se as lições do processualista Moacyr Amaral Santos:
Pode-se dizer, com Liebman, que a coisa julgada formal e a coisa julgada material são degraus do mesmo fenômeno. Proferida a sentença e preclusos os prazos para recursos, a sentença se torna imutável (primeiro grau – coisa julgada formal); e, em conseqüência, tornam-se imutáveis os seus efeitos (segundo degrau – coisa julgada material).[4]
Nem todas as decisões judiciais são capazes de atingir esse segundo patamar, que é a coisa julgada material, pois apenas as sentenças que extinguem o processo com resolução de mérito (CPC, art. 269) são, em regra, aptas a adquirir tal qualidade. Assim, não fazem coisa julgada material as sentenças terminativas (CPC, art. 267), as sentenças proferidas em processos de jurisdição voluntária, as sentenças proferidas em processos cautelares (CPC, art. 807), as decisões interlocutórias (CPC, art. 162, §2º) e os despachos de mero expediente.
Frise-se, por fim, que também é efeito do transito em julgado da sentença de mérito a preclusão quanto às alegações e defesas tendentes ao acolhimento ou à rejeição do pedido e que tenham sido omitidas (CPC, art. 474). A imutabilidade da sentença e dos seus efeitos, portanto, induz à preclusão das alegações e das defesas que a parte poderia opor ao acolhimento ou à rejeição do pedido.
1.2 FUNDAMENTO POLÍTICO
O processo, enquanto complexo coordenado de atos, é um instrumento que tem por finalidade a composição da lide, isto é, a atuação da lei sobre o caso concreto deduzido em juízo. No juízo de primeiro grau, o exaurimento da fase de conhecimento do processo ocorre com a publicação da sentença. Contudo, conforme foi dito anteriormente, a sentença ainda sujeita a recurso com efeito suspensivo não é capaz de produzir os seus efeitos principais. A propósito, Moacyr Amaral dos Santos afirma que:
Assim como a lei, logo que promulgada, ou o ato administrativo, logo que produzido, têm eficácia, também a sentença poderia tê-la assim que proferida. Mas o Estado, atendendo ao cuidado com que deve exercer o função jurisdicional, de modo a reduzir ao mínimo possível a possibilidade de decisões erradas ou injustas, permite o reexame das decisões por meio de recursos para o mesmo ou para outro juiz.
(...)
Somente quando preclusos os recursos de efeito suspensivo é que a sentença passará a produzir o efeito que lhe é próprio, declaratório, constitutivo, condenatório. Com a preclusão dos recursos de efeito suspensivo, a sentença se apresenta como sua eficácia natural, com aptidão de produzir os seus efeitos normais.[5]
Destarte, com o objetivo de reduzir a ocorrência de decisões erradas ou injustas, o legislador pátrio criou os recursos como mecanismos destinados ao reexame de litígios e à reforma de decisões judiciais. Contudo, conforme assevera Moacyr Amaral dos Santos, por motivos de ordem social, a possibilidade de correção das decisões judiciais através da interposição de recursos não pode ser ilimitada:
A procura da justiça, entretanto, não pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por uma exigência de ordem pública, qual seja, a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um termo além do qual a sentença se tornasse imutável. Não houvesse esse limite, além do qual não se possa argüir a injustiça da sentença, jamais se chegaria à certeza do direito e à segurança no gozo dos bens da vida.[6]
O fenômeno processual que culmina na imutabilidade da sentença e dos seus efeitos é a coisa julgada. Embora os recursos não sejam capazes de eliminar completamente as decisões judiciais erradas ou injustas, há razões de ordem social, reconhecidas pelo Estado, que impõem a necessidade de fixar um momento processual no qual a prestação jurisdicional seja considerada ultimada.
Assim, em prol da segurança jurídica e com vistas a evitar a perpetuação dos litígios, garantindo, assim, a paz social, o próprio ordenamento jurídico confere à decisão judicial, em um dado momento do processo, a autoridade de coisa julgada, conferindo-lhe a força de lei entre as partes, nos limites da lide e das questões decididas (CPC, arts. 468 e 472). A coisa julgada é tão importante para a manutenção da paz social e para a segurança jurídica que ela foi elevada ao status de garantia constitucional.[7]
Parte da doutrina defende a coisa julgada com o fundamento de que a sentença transitada em julgado é dotada de presunção de verdade ou de justiça. Rebatendo esses argumentos, Humberto Theodoro Júnior sustenta que,
(...) ao instituir a coisa julgada, o legislador não tem nenhuma preocupação de valorar a sentença diante dos fatos (verdade) ou dos direitos (justiça). Impele-o tão-somente uma exigência de ordem prática, quase banal, mas imperiosa, de não mais permitir que se volte a discutir acerca das questões já soberanamente decididas pelo Poder Judiciário. Apenas a preocupação de segurança nas relações jurídicas e da paz na convivência social é que explicam a res iudicata.[8]
Portanto, o fenômeno processual da coisa julgada não se justifica pela verdade ou pela justiça da decisão por ela qualificada, pois, ao instituí-lo, o legislador não pretendeu atribuir essas cargas valorativas às sentenças transitadas em julgado. A necessidade de, num determinado momento do processo, considerá-lo encerrado se presta apenas à manutenção da paz social e à garantia da segurança jurídica, bens constitucionalmente tutelados.
Contudo, como nenhuma garantia constitucional é absoluta,[9] há algumas situações excepcionais nas quais a coisa julgada é mitigada, sendo legalmente admitida a modificação de sentenças transitadas em julgado. Os mecanismos de impugnação da coisa julgada previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro serão doravante delineados.
2 DOS MECANISMOS LEGAIS DE IMPUGNAÇÃO DA COISA JULGADA
Segundo Fredie Didier Júnior,[10] há, no nosso ordenamento jurídico, os seguintes instrumentos que, em situações excepcionais, se prestam à impugnação de decisões transitadas em julgado: a) a querela nullitatis ou exceptio nullitatis; b) a impugnação com base na existência de erro material; c) a impugnação da sentença inconstitucional; d) a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos formulada perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos; e) a ação rescisória.
A querela nullitatis ou exceptio nullitatis é o meio de impugnação da sentença de mérito transitada em julgado em virtude da “falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia” (CPC, art. 475-L, inc. I, e art. 741, inc. I). É uma ação bastante específica, cabível apenas em face da revelia decorrente da ausência ou do vício da citação, mas que não se submete a qualquer prazo prescricional, podendo ser manejada a qualquer tempo.
A revisão em razão de erro material refere-se à possibilidade de o juiz, após a publicação da sentença, “corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou Ihe retificar erros de cálculo” (CPC, art. 463, inc. I). Esse mecanismo não se presta a uma alteração do julgado propriamente dita, mas, apenas, à correção de um mero erro material, podendo, em virtude disso, ser manejado inclusive após o trânsito em julgado da sentença.
A impugnação da sentença inconstitucional diz respeito à possibilidade de, na fase de cumprimento da sentença ou na execução contra a Fazenda Pública, alegar a inexigibilidade do “título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal” (CPC, art. 475-L, §1º, e art. 741, § único).
Trata-se, portanto, de um instrumento de controle difuso de constitucionalidade, tendente a impedir o cumprimento de sentenças baseadas em normas ou interpretações declaradas incompatíveis com a Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal.
Há, ainda, um remédio externo de revisão da coisa julgada, qual seja, a denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, que é julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja jurisdição o Brasil se submeteu (Decreto Legislativo n. 89, de 03 de dezembro de 1998, art. 1º c/c Decreto Presidencial n. 4.463, de 08 de novembro de 2002).
Segundo Fredie Didier Júnior, “a Corte Interamericana pode ser chamada para apreciar qualquer ato ou omissão estatal brasileiro (executivo, legislativo ou jurisdicional), inclusive decisões judiciais acobertadas pela coisa julgada material que violem garantias fundamentais”.[11] Destarte, como, por meio desse mecanismo, pode haver o rejulgamento ou a invalidação de sentença brasileira transitada em julgado, ele também se mostra um meio excepcional de revisão da coisa julgada.
Todavia, o principal meio de impugnação da coisa julgada existente no nosso ordenamento jurídico é, sem dúvida, a ação rescisória, pois as suas hipóteses de cabimento são bem mais amplas que as dos mecanismos até então mencionados.[12] O problema é que a ação rescisória se submete ao prazo decadencial de 02 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença (CPC, art. 495), após o qual, de acordo com a literalidade do dispositivo legal, não é mais admissível a sua interposição.
Diante disso, Humberto Theodoro Júnior, na esteira dos ensinamentos de Frederico Marques, aduz que:
Há, outrossim, diante da possibilidade de ação rescisória da sentença (art. 485), dois graus de coisa julgada, conforme a lição de Frederico Marques: a coisa julgada e a coisa soberanamente julgada, ocorrendo esta última quando se escoe o prazo decadencial de propositura da ação rescisória (art. 495), ou quando seja ela julgada improcedente.[13]
De acordo com esses ensinamentos, portanto, após o transcurso in albis do prazo decadencial, configurar-se-á a chamada coisa soberanamente julgada, que, em tese, obstaria o cabimento da ação rescisória. No entanto, tem ganhado espaço, na doutrina e na jurisprudência pátrias, um movimento de relativização da coisa julgada, que defende, em situações excepcionalíssimas, a admissibilidade da interposição da ação rescisória ou a utilização de outros meios processuais tendentes a impugnar sentenças transitadas em julgado mesmo após o decurso desse prazo decadencial de 02 (dois) anos.
3 DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
A relativização da coisa julgada é uma tendência que vem se registrando, entre respeitável parcela dos processualistas brasileiros e, inclusive, em decisões dos tribunais superiores, no sentido de mitigar a força do instituto da coisa julgada, admitindo sua desconsideração em determinadas circunstâncias, além dos casos expressamente previstos no ordenamento jurídico pátrio, elencados no tópico anterior deste trabalho.
Conforme foi visto anteriormente, a coisa julgada se presta à manutenção da paz social e à garantia da segurança jurídica. Embora reconheçam a importância desses valores constitucionalmente tutelados, os defensores da relativização da coisa julgada sustentam que eles devem ceder ante o conflito com outros valores, igualmente relevantes. Nessa esteira, as sentenças absurdas, injustas, imorais, ilegais, inconstitucionais ou eivadas de fraude processual, por exemplo, não mereceriam a proteção do trânsito em julgado. A propósito, Luiz Rodrigues Wambier anota que:
Alguns autores, assim como algumas decisões dos Tribunais, têm entendido que há valores merecedores de proteção mais acentuada por parte do sistema jurídico do que a segurança. Portanto, nessa linha de raciocínio, sentenças evidentemente imorais ou inconstitucionais não transitariam em julgado.[14]
Nesse mesmo sentido, estão as lições de José Augusto Delgado, Ministro do Superior Tribunal de Justiça:
(...) não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente desconheça que o branco é branco e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice-versa.[15]
Essa corrente doutrinária tem ganhado aceitação inclusive nos tribunais superiores, conforme pode ser observado no seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça (grifos nossos):
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DÚVIDAS SOBRE A TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. PRINCÍPIO DA JUSTA INDENIZAÇÃO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. 1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última parcela do precatório (art. 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão. 2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado. 3. "A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada." (WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. 'O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização', São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 25) 4. "A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade - esse, sim, o problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e do leque de possibilidades que sugere, como: a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo; e c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas." (DINAMARCO, Cândido Rangel. 'Coisa Julgada Inconstitucional' — Coordenador Carlos Valder do Nascimento - 2ª edição, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, págs. 63-65) 5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos. 6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou não presentes no caso dos autos. 7. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 622405/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/08/2007, DJ 20/09/2007 p. 221)
Entrementes, a extensão da relativização da coisa julgada para além das hipóteses legalmente previstas não é unanimemente aceita. O processualista Fredie Didier Júnior, por exemplo, aduz que:
O problema é que admitir-se a relativização com base na existência de injustiça – que ocorreria com a violação de princípios e direitos fundamentais do homem, tal como acima exposto –, significa franquear-se ao Judiciário uma cláusula geral de revisão da coisa julgada, que pode dar margem a interpretações das mais diversas, em prejuízo da segurança jurídica. A revisão da coisa julgada dar-se-ia por critérios atípicos.
(...)
A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental ao acesso ao Poder Judiciário. Em outras palavras, mais do que se garantir ao cidadão o acesso à justiça, deve lhe ser garantida uma solução definitiva, imutável para sua quizila.
Não se pode negar que a indiscutibilidade da coisa julgada pode perenizar, em alguns casos, situações indesejadas – com decisões injustas, ilegais, desafinadas com a realidade fática. E foi para abrandar esses riscos que se trouxe previsão de hipóteses em que se poderia desconstituí-la. Com isso, buscou-se harmonizar a garantia da segurança e estabilidade das situações jurídicas com a legalidade, justiça e coerência das decisões jurisdicionais.
(...)
Assumimos que não vemos com bons olhos um movimento que busca relativizar a coisa julgada por critérios atípicos. Não podemos compactuar com a idéia de uma “cláusula aberta de revisão de sentenças” em razão de injustiças/desproporcionalidade/inconstitucionalidade.[16]
Entende o autor, portanto, que a coisa julgada é um atributo indispensável, de forma que só deve ser admitida a sua relativização através dos meios de impugnação legalmente instituídos. Nesse mesmo sentido, posiciona-se Luiz Guilherme Marinoni:
Está claro que as teorias que vêm se disseminando sobre a relativização da coisa julgada não podem ser aceitas. As soluções apresentadas são por demais simplistas para merecerem guarida, principalmente no atual estágio de desenvolvimento da ciência do Direito e na absoluta ausência de uma fórmula racionalmente justificável que faça prevalecer, em todos os casos, determinada teoria da justiça.
(...)
A ‘tese da relativização’ contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por “justiça” e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema.
(...)
É óbvio que uma teoria que conseguisse fazer com que todos os processos terminassem com um julgamento justo seria a ideal. Mas, na sua falta, não há dúvida de que se deve manter a atual concepção da coisa julgada material, sob pena de serem cometidas injustiças muito maiores do que as pontuais e raras levantadas pela doutrina.[17]
Argumentam os seguidores dessa corrente que a relativização da coisa julgada para além dos casos disciplinados no ordenamento jurídico não garante que a nova decisão corrigirá a suposta injustiça ou absurdo da decisão atacada. Ademais, chamam atenção para o aumento da procrastinação no cumprimento de decisões judiciais e para a insegurança jurídica que a adoção dessa teoria geraria.
Parcela da jurisprudência, inclusive, filia-se a essa corrente contrária à relativização da coisa julgada além das hipóteses legais (grifos nossos):
AÇÃO DE NEGATIVA DE PATERNIDADE. EXAME PELO DNA POSTERIOR AO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. COISA JULGADA. 1. Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da cosia julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do Código de Processo Civil é libertadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. E a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo, pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485. 2. Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir o questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada. 3. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 107.248/GO, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/05/1998, DJ 29/06/1998 p. 160)
De fato, a aplicação descomedida da relativização da coisa julgada representaria o fim da segurança jurídica, causando uma eternização dos conflitos e uma desestabilização social. No entanto, há determinadas situações excepcionalíssimas nas quais, diante da inaplicabilidade dos meios processuais tendentes a combater decisões transitadas em julgado, afigura-se imprescindível a mitigação da coisa julgada por outros meios.
É o que ocorre, por exemplo, diante da ação de investigação de paternidade cuja sentença, já transitada em julgado há mais de 2 (dois) anos, concluiu pela ausência de paternidade por insuficiência de provas, ante a inexistência de exame de DNA à época da contenda judicial. Em hipóteses como essas, encarar a autoridade da res iudicata como um obstáculo intransponível afigura-se uma atitude desproporcional.
Contudo, conforme pôde ser observado, esse posicionamento não é unânime. Enquanto parte da doutrina vê, na justiça das decisões, um valor mais importante que o princípio da segurança jurídica, outra vertente aduz que este último princípio é fundamental à paz social, só podendo ser relativizado nas hipóteses expressamente disciplinadas pelo legislador.
Percebe-se, desta feita, que o embate existente entre as duas correntes doutrinárias dá-se num campo principiológico, pois, enquanto os defensores da relativização da coisa julgada dão proeminência ao princípio do acesso à justiça, os doutrinadores que discordam dessa teoria buscam guarida no princípio da segurança jurídica. Destarte, para que se possa construir um posicionamento jurídico acerca da viabilidade ou não da relativização em situações nas quais ainda não há uma expressa regulamentação, afigura-se relevante realizar uma breve explanação acerca da forma de resolução da colisão entre princípios constitucionais.
3.1 COLISÃO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SUA FORMA DE RESOLUÇÃO
O choque entre regras ocorre numa dimensão de validade, de forma que a solução para esse conflito resulta na exclusão de uma em benefício de outra. Já a colisão entre princípios acontece numa dimensão axiológica, devendo, em virtude disso, ser solucionada através de uma ponderação de interesses, na qual a aplicação de um princípio não enseja a exclusão do outro.
Há muito, as regras hermenêuticas tradicionais, que propunham a solução dos conflitos entre princípios constitucionais através do estabelecimento de um escalonamento hierárquico entre eles, não são capazes de fornecer respostas adequadas aos casos concretos entregues à solução do Poder Judiciário. Segundo a teoria constitucionalista moderna, não há hierarquia entre os princípios constitucionais, pois o seu peso e a sua importância variam de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto.
No desiderato de conciliação das tensões entre esses princípios, tem sido amplamente utilizado o princípio da proporcionalidade, que, segundo a doutrina alemã, é composto por três subprincípios, quais sejam, o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito. Na esteira dessa doutrina, Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal, preleciona o seguinte:
A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.
Essa nova orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit). Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito).
O pressuposto da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O requisito da necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado.[18]
Essa tríplice configuração da proporcionalidade tem, inclusive, sido adotada pelos tribunais superiores (grifos nossos):
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (STF, RE 349703, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675)
Utilizando o princípio da proporcionalidade como meio de efetuar a ponderação dos bens jurídicos em conflito, a doutrina estrangeira criou mecanismos destinados à solução das colisões entre dois ou mais princípios constitucionais. Trata-se da teoria da concordância prática, proposta pelo jurista alemão Konrad Hesse, e da teoria dimensão de peso e importância, elaborada pelo jurista americano Ronald Dworkin.
Segundo a teoria da concordância prática, “os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto”.[19] Konrad Hesse propõe, assim, a resolução do conflito através da harmonização dos valores constitucionais, a fim de que a colisão seja resolvida apenas com a atenuação parcial de um ou dos dois direitos fundamentais conflitantes.
Como exemplo de aplicação da teoria da concordância prática, cite-se o caso apontado pelo juiz federal George Marmelstein Lima, em artigo publicado no portal jurídico Jus Navigandi:
Um exemplo esclarecerá melhor a aplicação do princípio da concordância prática: na Alemanha, em um caso famoso, um sujeito foi preso, por estar sendo acusado de inúmeros crimes de grande repercussão social. Logicamente, a imprensa local pretendia divulgar amplamente a matéria, tendo, inclusive, uma emissora editado um documentário, o qual seria transmitido em horário nobre. Diante desses fatos, o sujeito que havia sido preso aforou uma ação pretendendo impedir os intentos da imprensa sob a alegação de que a divulgação da matéria feriria o seu direito à intimidade e à privacidade, sendo certo que, após a divulgação, seria impossível ao sujeito tornar a ter uma vida normal.
Estaríamos, assim, diante de uma colisão de dois princípios constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade.
O fato foi posto a julgamento, e a Justiça Alemã, utilizando o princípio da concordância prática, assim decidiu: a imprensa poderá, em nome da liberdade de expressão, exibir a matéria. No entanto, visando preservar o direito à intimidade do indivíduo, não poderá citar seu nome completo (mas somente as iniciais), nem mostrar seu rosto (deverá utilizar mecanismos eletrônicos para desfigurá-lo).
Conciliou-se, dessa forma, os princípios da liberdade de expressão e da privacidade. É a concordância prática.[20]
Essa teoria, inclusive, há muito já vem sendo adotada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se pode apreender desse julgado, datado de 22 de setembro de 1988:
REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. ARTIGOS 15, PARAGRAFO 3. E 17 DA LEI N. 5.991, DE 17.12.73. LIMITAÇÃO A LIBERDADE DE COMERCIO. DROGARIAS. A norma que prevê a assistência do técnico responsável nas drogarias visa à concordância prática entre a liberdade do exercício do comércio de medicamentos e o seu controle, em benefício dos que visam tais medicamentos. Representação julgada improcedente. (STF, Rp 1507, Relator(a): Min. CARLOS MADEIRA, TRIBUNAL PLENO, julgado em 22/09/1988, DJ 09-12-1988 PP-32676 EMENT VOL-01527-01 PP-00145)
Nesse caso, se questionava a obrigatoriedade de farmacêutico, ou técnico responsável, inscrito no Conselho Regional de Farmácia, para o funcionamento do estabelecimento. Entendeu o Supremo Tribunal Federal que o legislador, ao obrigar a contratação desses profissionais pelas farmácias, não eliminou completamente o livre comércio, mas, apenas, mitigou esse princípio em benefício da necessidade de tutelar a saúde da população. Destarte, fundamentando-se na teoria da concordância prática, do Tribunal entendeu que, no caso em análise, o direito à saúde deveria prevalecer sobre o direito ao livre comércio.
Portanto, diante de uma colisão entre dois ou mais princípios constitucionais, é preferível que se busque uma acomodação harmônica entre eles, de forma a aplicá-los conjuntamente ao caso concreto, através da mitigação parcial de um ou dos dois direitos fundamentais conflitantes, sem, contudo, determinar um rígido escalonamento hierárquico entre eles.
No entanto, nem sempre essa solução é possível. Como alternativa para as situações nas quais a teoria da concordância prática não é capaz de solucionar o conflito entre os princípios constitucionais, Ronald Dworkin propôs, em sua obra Taking Rights Seriously, a teoria da dimensão do peso e da importância. Segundo o jurista americano, os princípios:
(...) possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles (...). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida.[21]
Destarte, segundo essa teoria, dentre os bens jurídicos em conflito, deve ser dada proeminência àquele que tem maior peso ou importância em face do conjunto de valores preservados pela Constituição Federal. O problema é que, enquanto, para Dworkin, há uma única resposta correta para um determinado conflito entre princípios, para a teoria constitucionalista moderna, não há prevalência absoluta de um princípio sobre o outro, de forma que o seu peso e a sua importância variam conforme as peculiaridades de cada caso concreto.
Diante disso, procurando aperfeiçoar o pensamento de Dworkin, o jurista alemão Robert Alexy propôs, em sua obra Teoria de los Derechos Fundamentales, a resolução dos conflitos de acordo com a força valorativa dos princípios colidentes, mas sem considerar como correta uma única solução para o caso, já o peso dos princípios constitucionais varia de acordo com aspectos temporais, espaciais e fáticos. Essa adaptação da teoria da dimensão do peso e da importância, realizada por Alexy, afigura-se mais adequada, pois torna o modelo inicialmente proposto por Dworkin consentâneo com a moderna teoria constitucionalista.
Nessa esteira, diante do choque entre os direitos à informação e à privacidade, muitas vezes se limita a atuação da imprensa a fim de preservar a vida privada e o direito à imagem. Noutros casos, contudo, em razão da grande relevância pública de uma determinada informação, não se tem como ilícita a exposição do indivíduo. Assim, a colisão entre estes princípios, a depender do caso concreto, pode gerar diferentes decisões:
Responsabilidade civil de empresa jornalística. Publicação ofensiva. I. Liberdade de informação versus inviolabilidade à vida privada. Princípio da unidade constitucional. Na temática atinente aos direitos e garantias fundamentais, dois princípios constitucionais se confrontam e devem ser conciliados. De um lado, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, de outro lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Sempre que princípios aparentam colidir, deve o intérprete procurar as recíprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma inteligência harmoniosa, porquanto, em face do princípio da lealdade constitucional, a Constituição não pode estar em conflito consigo mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios que contém. Assim, se ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do primeiro, atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir excessos e abusos (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível n° 760/96 - RJ, 2ª Câmara Cível, rel. Des. SÉRGIO CAVALIERI FILHO).
Por sua vez, embora a função social da propriedade tenha um denso conteúdo valorativo dentro da Constituição Federal, nem sempre ela prevalece sobre o direito à propriedade privada. A terra produtiva e a pequena e média propriedade rural, por exemplo, não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária (CF, art. 185, caput e incs. I e II), assim como uma propriedade invadida, mesmo que improdutiva, fica impedida de sofrer processo de desapropriação por dois anos (Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, art. 2º, §6º).
Nem mesmo o direito à vida prevalece de forma absoluta frente a outros princípios, já que a gestante pode cometer aborto no caso de gravidez resultante de estupro (CP, art. 128, caput e inc. II), sendo privilegiado, nesse caso, o princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, é possível a cominação de pena de morte no caso de guerra declarada (CF, art. 5º, inc. XLVII, alínea a), prevalecendo, nessa situação, o princípio da segurança nacional.
Em suma, portanto, diante da colisão entre princípios constitucionais, é preferível que se busque um equilíbrio entre eles, através da atenuação parcial de um ou dos dois direitos fundamentais conflitantes. Todavia, nas hipóteses em que essa convivência harmônica não for possível, a resolução do conflito dar-se-á a partir da aferição, no caso concreto, da força valorativa dos princípios colidentes, levando em consideração os aspectos temporais, espaciais e fáticos. Em ambas as situações, a ponderação dos bens jurídicos em conflito dar-se-á através do princípio da proporcionalidade.
Traçados os contornos gerais das formas de resolução da colisão entre princípios constitucionais, restam fornecidos os subsídios necessários para que se formule um posicionamento jurídico acerca da possibilidade ou não da relativização da coisa julgada em situações nas quais ainda não há uma expressa regulamentação legal.
3.2 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA À LUZ DA TEORIA CONSTITUCIONALISTA MODERNA
À luz do exposto, é possível afirmar que, de acordo com a teoria constitucionalista moderna, não há escalonamento hierárquico entre os princípios constitucionais. Assim, os conflitos entre dois princípios não possuem uma única solução, devendo ser resolvidos à luz do princípio da proporcionalidade, a partir da consideração das particularidades de cada caso concreto.
De fato, a coisa julgada exerce um importante papel na manutenção da paz social e na garantia da segurança jurídica. Contudo, como nenhum princípio constitucional é absoluto, em determinadas situações, a coisa julgada deverá ceder diante do conflito com outros valores tutelados pela Magna Carta. Foi com base nisso que o legislador instituiu mecanismos de impugnação de decisões transitadas em julgado.
Todavia, esses mecanismos legalmente instituídos não são suficientes para corrigir todas as incongruências advindas de decisões judiciais, seja por terem seu alcance bastante limitado, seja por estarem submetidos a um prazo decadencial bastante exíguo, como é o caso da ação rescisória. Assim, é preciso que se busque uma alternativa de solução para os casos nos quais se afigura imprescindível a mitigação da autoridade da coisa julgada.
O legislador jamais será capaz de dotar o cidadão de todos os instrumentos necessários à tutela dos seus direitos, pois a casuística é riquíssima e, com o passar do tempo, as relações sociais e, consequentemente, os conflitos de interesses, vão se tornando cada vez mais complexos. Não obstante isso, o magistrado não pode se eximir de dar uma solução aos casos concretos que lhes são apresentados sob o argumento de que não há previsão legal para a situação, devendo buscar no ordenamento jurídico e, sobretudo, nos princípios, uma resposta que supra a ausência de regulamentação. O julgador não deve se limitar às normas jurídicas positivadas.
No que concerne à controvérsia em torno da relativização da coisa julgada, como ela está relacionada a um conflito entre, no mínimo, dois princípios constitucionais – segurança jurídica e acesso à justiça –, não é possível dar uma resposta absoluta quanto à sua viabilidade. A força valorativa desses princípios colidentes deverá ser aquilatada em cada caso concreto, levando em consideração as variantes temporais, espaciais e fáticas, de forma a concluir pela prevalência de um sobre o outro.
Por um lado, a aplicação descomedida da relativização da coisa julgada representaria o fim da segurança jurídica, causando a eternização dos conflitos e a desestabilização da vida social. De outra banda, a recusa de solução a determinadas situações em que a coisa julgada, ainda que a pretexto de garantir a segurança jurídica e a paz social, se presta a acobertar a manutenção de decisões absurdas representaria uma aplicação desproporcional do instituto.
Nessa mesma linha de raciocínio, Luiz Rodrigues Wambier pontifica que:
(...) o ponto nuclear da discussão sobre a “relativização” reside na seguinte pergunta: é admissível a revisão atípica da coisa julgada? Por um lado, não é possível descartar que excepcionalmente, em casos concretos, a coisa julgada – que é sem dúvida uma garantia fundamental constitucional – preste-se a acobertar sentença que manifestamente viole outros direitos fundamentais. Quando isso ocorrer, deverão a princípio ser usados os meios típicos de impugnação da coisa julgada (ação rescisória, embargos do art. 741, parágrafo único etc.). No entanto, quando não for admissível o emprego dos meios típicos (seja porque o caso não se enquadra em sua hipóteses de cabimento, seja porque já se esgotou o prazo para o meio típico), não parece viável uma solução absoluta, na base do “tudo ou nada”. Nem é possível dizer que sempre cairá por terra a coisa julgada, nem é possível afirmar o exato oposto, no sentido de que seria sempre vedada a revisão atípica. Não há como deixar de aplicar em tais hipóteses o princípio da proporcionalidade.[22]
Destarte, o primeiro pressuposto de admissibilidade da relativização atípica da coisa julgada é a demonstração da preponderância, no caso concreto, da força valorativa do princípio colidente com a segurança jurídica. Quem pretender impugnar a autoridade da coisa julgada numa situação não prevista legalmente deverá, portanto, demonstrar que o seu interesse é de uma relevância tal que supere a necessidade de garantir a segurança jurídica.
Como exemplo de situação na qual a relativização da coisa julgada configurar-se-ia uma atitude desproporcional, cite-se o presente julgado do Superior Tribunal de Justiça (grifos nossos):
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. FGTS. CORREÇÃO MONETÁRIA. EXCLUSÃO DE ÍNDICES CONSTANTES DO TÍTULO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. ART. 741, II DO CPC. MP 2.180-35/2001. INAPLICABILIDADE. RESPEITO À COISA JULGADA. 1. Cuida-se de embargos à execução apresentados pela CEF sustentando a nulidade da execução por inexigibilidade de parte da decisão condenatória proferida nos autos da ação ordinária, com fundamento no art. 741, II do CPC, aduzindo que o título judicial exeqüendo incluiu percentuais relativos a planos econômicos considerados indevidos pelo STF em virtude de decisão prolatada no RE nº 226.855/RS, quais sejam: junho/87, maio/90 e fevereiro/91. Na via especial requer o reconhecimento da inexigibilidade do título executivo no que respeita aos índices mencionados. 2. Ação de conhecimento julgada em momento anterior à edição da MP 2.180-35/2001, que deu nova redação ao art. 741, II do CPC, e à decisão do STF acerca da aplicação dos percentuais relativos aos Planos Bresser, Collor I e Collor II. Inexistência de vício no título judicial. 3. Impossibilidade de se excluir, em sede de execução, índices que foram objeto da condenação em ação de conhecimento já transitada em julgado. Admitir hipótese contrária resultaria em flagrante ofensa à coisa julgada. Tenho posicionamento externado em inúmeras obras doutrinárias a respeito da sua relativização, quando admito que há ocasiões em que ela deve ser desconstituída, já que o Estado, em sua dimensão ética, não protege a sentença judicial que vai de encontro aos princípios da moralidade e da legalidade, espelhando única e exclusivamente vontade pessoal do julgador e que vá contra a realidade dos fatos. O caso em questão não se encaixa em qualquer dessas hipóteses, não havendo, assim, razões para que seja modificada a condenação imposta na ação de conhecimento, já transitada em julgado, em face do inciso II do art. 741 do CPC. 4. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 710.452/MG, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/03/2005, DJ 28/03/2005 p. 228)
Por outro lado, tem sido constantemente admitida a relativização atípica nas ações de investigação de paternidade em que a improcedência do pedido decorreu da inexistência de exame de DNA ou da inércia da mãe do menor:
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sedo aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido (STJ, 4ª. T., REsp. 226.436/PR, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, ac. de 28.06.2001, RSTJ 154/403)
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROPOSITURA DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE PELO NÃO COMPARECIMENTO DA REPRESENTANTE LEGAL DO INVESTIGANDO À AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. CONFISSÃO. COISA JULGADA. AFASTAMENTO. DIREITO INDISPONÍVEL. I - Na primitiva ação de investigação de paternidade proposta, a improcedência do pedido decorreu de confissão ficta pelo não comparecimento da mãe do investigando à audiência de instrução designada. Considerando, assim, que a paternidade do investigado não foi expressamente excluída por real decisão de mérito, precedida por produção de provas, impossível se mostra cristalizar como coisa julgada material a inexistência do estado de filiação, ficando franqueado ao autor, por conseguinte, o ajuizamento de nova ação. É a flexibilização da coisa julgada. II – Em se tratando de direito de família, acertadamente, doutrina e jurisprudência têm entendido que a ciência jurídica deve acompanhar o desenvolvimento social, sob pena de ver-se estagnada em modelos formais que não respondem aos anseios da sociedade. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 427.117/MS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/11/2003, DJ 16/02/2004 p. 241)
Quando as decisões atacadas estiverem relacionadas a direitos indisponíveis e, sobretudo, a de direitos de família, salta aos olhos que, muitas vezes, afigura-se mais razoável a mitigação da autoridade da res iudicata em benefício de valores que, nesses casos, são dotados de uma importância maior que a da segurança jurídica.
Outras situações bastante citadas pelos estudiosos que se debruçaram sobre o assunto são as de supervalorização da indenização em processo expropriatório em virtude de perícia fraudulenta, e de desapropriação de bem que já era pertencente ao ente público (v. g. STJ, REsp 622.405/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 14/08/2007, DJ 20/09/2007 p. 221).
Em se constatando que o bem jurídico perseguido é dotado, no caso concreto, de uma carga valorativa maior que a da segurança jurídica, a admissibilidade da relativização atípica está condicionada, ainda, a um segundo pressuposto. Trata-se da utilização de um instrumento processual idôneo, que está relacionada às idéias de adequação e necessidade.
3.3 INSTRUMENTOS PROCESSUAIS
A escolha do instrumento processual destinado à veiculação do pedido de relativização atípica da coisa julgada também deve ser pautada pela observância do princípio da proporcionalidade e, especificamente, dos subprincípios da adequação e da necessidade. Primeiramente, deve ser realizado um juízo de adequação, por meio do qual serão verificados os diversos meios aptos a atingir a finalidade pretendida. Em havendo mais de um meio idôneo, deve ser escolhido, através de um juízo de necessidade, o menos ofensivo ao instituto da coisa julgada.
A respeito dessa escolha, Luiz Rodrigues Wambier aduz que:
Seja como for, um dado parece fundamental: ainda que se admita a revisão atípica da cosia julgada nessas hipóteses, na medida da possível haverá de se observar, em rigorosa simetria, a competência originária e o modelo procedimental da ação rescisória – sob pena de haver sacrifícios à segurança jurídica e à operacionalidade do sistema ainda maiores do que os necessários (o que seria incompatível com o princípio da proporcionalidade).[23]
Seria o caso, portanto, de admitir a relativização da coisa julgada por meio da propositura de uma ação rescisória, nos casos legalmente previstos, mas independentemente da observância do prazo decadencial de dois anos. Contudo, por se tratar de situações atípicas, não se pode indicar um único instrumento processual idôneo ao pedido de relativização, cujo meio de veiculação mais adequado deverá ser selecionado de acordo com as particularidades de cada caso concreto.
Nesse sentido, seguindo as lições de Pontes de Miranda, Cândido Rangel Dinamarco sugere as seguintes possibilidades: “a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo; e c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas”.[24]
A propositura de nova demanda igual à primeira mostra-se o instrumento processual indicado quando, por exemplo, se trata de ações de investigação de paternidade em que a improcedência do pedido decorreu da inexistência de exame de DNA ou da inércia da mãe do menor (v. g. STJ, 4ª. T., REsp. 226.436/PR, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, ac. de 28.06.2001, RSTJ 154/403 e STJ, REsp 427.117/MS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 04/11/2003, DJ 16/02/2004 p. 241).
Em hipóteses como essas, que exigem ampla dilação probatória, há a necessidade de percorrer todas as fases do processo, de forma a garantir o contraditório e a ampla defesa. Há quem defenda, nessas hipóteses, a utilização da ação rescisória, enquadrando o exame de DNA como um documento novo (CPC, Art. 485, inc. VII).
Por sua vez, a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo afigura-se apropriada, por exemplo, à situação na qual houve erro grave ou fraude num laudo pericial, que pode ser solucionada através da mera realização de um novo exame pericial (v. g. STJ, REsp 622405/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 14/08/2007, DJ 20/09/2007 p. 221).
Aqui, a propositura de uma nova ação ou a interposição de uma ação rescisória não constituiriam meios processuais indicados à veiculação do pedido, já que, nessa hipótese, diante da possibilidade de mera resistência à execução, este meio de impugnação é preferível, pois, além de ser suficiente à obtenção da finalidade pretendida, é menos ofensivo à coisa julgada.
Ademais, em se tratando de sentenças nulas ou inexistentes, tem entendido a jurisprudência que o meio processual apropriado é a ação anulatória (grifos nossos):
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DAS QUESTÕES RELATIVAS À TITULARIDADE DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO. QUERELA NULLITATIS. CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE DE AGIR. ADEQUAÇÃO. 1. A ausência de prequestionamento da matéria deduzida no recurso especial, a despeito da oposição de embargos declaratórios, atrai o óbice da Súmula 211/STJ. 2. Não viola o art. 535 do CPC, nem nega prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adotou, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia. 3. Ainda que por fundamentos diversos, o aresto atacado abordou todas as questões necessárias à integral solução da lide, concluindo, no entanto, pela presença das condições da ação, em especial do interesse de agir. 4. Ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito, em que a Fazenda do Estado de São Paulo, invocando o instituto da querela nullitatis, requer seja declarada a nulidade de decisão proferida em ação de indenização por desapropriação indireta, já transitada em julgado, escorando a sua pretensão no argumento de que a área indenizada já lhe pertencia, de modo que a sentença não poderia criar direitos reais inexistentes para os autores daquela ação. 5. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado. A nulidade da sentença, em tais hipóteses, deve ser buscada por intermédio da actio nullitatis. 6. O interesse processual, ou interesse de agir, como preferem alguns, nas palavras de Alexandre Freitas Câmara ("Lições de Direito Processual Civil", vol. I, 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris, 2005, págs. 128-129) "é verificado pela presença de dois elementos, que fazem com que esse requisito de provimento final seja verdadeiro binômio: 'necessidade da tutela jurisdicional' e 'adequação do provimento pleiteado'". 7. As condições da ação devem estar presentes considerando-se, em tese, o pedido formulado pela parte autora, sem qualquer vínculo com o eventual acolhimento ou a rejeição da pretensão meritória. 8. Não resta dúvida, portanto, que o ajuizamento da presente ação declaratória de nulidade de ato jurídico é um dos meios adequados à eventual desconstituição da coisa julgada. 9. No que diz respeito à eventual procedência da ação, sua apreciação caberá ao juiz de primeiro grau de jurisdição. A manutenção do acórdão recorrido tem o efeito, tão-somente, de afastar a carência da ação, dentro dos limites da questão submetida a julgamento nesta Superior Corte de Justiça. 10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. (STJ, REsp 710.599/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 14/02/2008 p. 144)
De outra banda, o emprego de ação de nulidade é considerado inadequado quando a injustiça não estiver relacionada a um erro unicamente de direito, exigindo uma reanálise dos fatos (grifos nossos):
Ação de nulidade (querella nullitatis). Coisa julgada material (relativização). Situação extraordinária (não ocorrência). 1. Admite-se a relativização da coisa julgada material em situações extraordinárias, por exemplo, quando se trata de sentença nula ou inexistente, embora haja, no Superior Tribunal, vozes que não admitem a relativização em hipótese alguma. 2. Em se tratando de sentença injusta, ou melhor, de errônea resolução da questão de fato (erro de fato), como na espécie (é o que se alega e é o que se diz), não é lícito o emprego da ação de nulidade. 3. A admissão, em casos que tais, da querella nullitatis contribuiria para descaracterizar, mais e mais, a substância da coisa julgada – a sua imutabilidade. 4. Recurso especial do qual se conheceu e ao qual se deu provimento para se restabelecer a sentença que indeferira a inicial. (STJ, REsp 893.477/PR, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 22/09/2009, DJe 19/10/2009)
Em suma, portanto, o meio adequado de veiculação do pedido de relativização atípica da coisa julgada deve ser aferido de acordo com as particularidades de cada caso concreto. Assim, a depender da situação, ele deverá ser pugnado através, por exemplo, de ação rescisória, da propositura de nova demanda igual à primeira, da resistência à execução, da interposição de ação de nulidade (querella nullitatis), etc.
CONCLUSÃO
Da análise do instituto da coisa julgada, que consiste na imutabilidade da sentença enquanto ato processual (coisa julgada formal) e dos efeitos que dela emergem (coisa julgada material), constatou-se que ela se presta à manutenção da paz social e à garantia da segurança jurídica, bens constitucionalmente tutelados.
Contudo, como nenhuma garantia constitucional é absoluta, verificou-se a existência de algumas situações excepcionais nas quais a coisa julgada é mitigada, sendo legalmente admitida a modificação de sentenças transitadas em julgado. Os mecanismos de impugnação da coisa julgada previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro são: a) a ação rescisória; b) a querela nullitatis; c) a correção de erros materiais; d) a resistência ao cumprimento de sentença inconstitucional; e) a revisão da coisa julgada por denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, formulada perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Apontou-se, ainda, a existência de um movimento doutrinário-jurisprudencial que defende a mitigação da força do instituto da coisa julgada, admitindo sua desconsideração em determinadas circunstâncias, além desses casos expressamente previstos no ordenamento jurídico pátrio.
Observou-se, porém, que esse posicionamento não é unânime. Enquanto parte da doutrina vê, na justiça das decisões, um valor mais importante que o princípio da segurança jurídica, outra vertente aduz que este último princípio é fundamental à paz social, só podendo ser relativizado nas hipóteses expressamente disciplinadas pelo legislador. Percebe-se, desta feita, que o embate existente entre as duas correntes doutrinárias dá-se num campo principiológico.
Diante disso, com o fito de encontrar uma solução para essa contenda, buscou-se, na teoria constitucionalista moderna, os mecanismos de resolução da colisão entre princípios constitucionais. Constatou-se, inicialmente, que não há prevalência absoluta de um princípio sobre o outro, de forma que o seu peso e a sua importância variam conforme as peculiaridades de cada caso concreto. Partindo dessa premissa, apontou-se a existência de duas teorias, ambas baseadas no princípio da proporcionalidade.
Segundo a teoria da concordância prática, diante da colisão entre princípios constitucionais, é preferível que se busque a aplicação simultânea deles, através da atenuação parcial de um ou dos dois direitos fundamentais conflitantes. De outra banda, anotou-se que, de acordo com a teoria da dimensão do peso e da importância, adaptada pelo jurista alemão Robert Alexy, nas hipóteses em que essa convivência harmônica não for possível, a resolução do conflito dar-se-á a partir da aferição, no caso concreto, da força valorativa dos princípios colidentes.
No que concerne à controvérsia em torno da relativização da coisa julgada, como ela está relacionada a um conflito entre, no mínimo, dois princípios constitucionais – segurança jurídica e acesso à justiça –, concluiu-se que não é possível dar uma resposta absoluta quanto à sua viabilidade. A força valorativa desses princípios colidentes deverá ser aquilatada em cada caso concreto, levando em consideração as variantes temporais, espaciais e fáticas, de forma a concluir pela prevalência de um sobre o outro.
Por um lado, a aplicação descomedida da relativização da coisa julgada representaria o fim da segurança jurídica, causando a eternização dos conflitos e a desestabilização da vida social. De outra banda, a recusa de solução a determinadas situações em que a coisa julgada, ainda que a pretexto de garantir a segurança jurídica e a paz social, se presta a acobertar a manutenção de decisões absurdas representaria uma aplicação desproporcional do instituto.
Frise-se, por fim, que não se está, aqui, defendendo a aplicação indiscriminada da relativização da coisa julgada, cuja mitigação em hipóteses não previstas legalmente deve ser manejada com prudência e parcimônia, para que não haja um desvirtuamento da coisa julgada. Nessa esteira, o exercício responsável da relativização exige a observância de dois pressupostos de admissibilidade: a) a demonstração da preponderância, no caso concreto, da força valorativa do princípio colidente com a segurança jurídica; b) a utilização de um instrumento processual idôneo, de acordo com as idéias de adequação e necessidade.
REFERÊNCIAS
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MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 448, 28 set. 2004. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716>. Acesso em 18 mar. 2010.
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do processo civil e processo do conhecimento – Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
WABIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil – Teoria geral do processo e processo de conhecimento – Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 507.
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do processo civil e processo do conhecimento – Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 536.
[2] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – Volume 3. São Paulo: Saraiva 2008, p. 47.
[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ibidem, p. 537.
[4] SANTOS, Moacyr Amaral. Ibidem, p. 47.
[5] SANTOS, Moacyr Amaral. Ibidem, p. 55.
[6] SANTOS, Moacyr Amaral. Ibidem, p. 49.
[7] CF, art. 5º, inc. XXXVI. A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
[8] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ibidem, p. 540.
[9] Nem o direito à vida não é absoluto, pois a Constituição Federal admite, em casos de guerra, a possibilidade de cominação da pena de morte (CF, art. 5º, inc. XLVII, alínea a, in fine).
[10] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada – Volume 2. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p. 579.
[11] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Ibidem, p. 581.
[12] CPC, Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar literal disposição de lei;
Vl - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
Vll - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;
§ 1o Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.
§ 2o É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.
[13] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ibidem, p. 534.
[14] WABIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil – Teoria geral do processo e processo de conhecimento – Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 507.
[15] DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Palestra proferida no IV Congresso Brasileira de Processo Civil e Trabalhista, Natal/RN, 22/09/2000, in NASCIMENTO, Carlos Valder (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, pp. 83-84.
[16] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Ibidem, pp. 583-584.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 448, 28 set. 2004. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5716>. Acesso em 18 mar. 2010.
[18] MENDES, Gilmar Ferreira. A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 23, p. 475, jan. 1994.
[19] COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1997, p. 91.
[20] LIMA, George Marmelstein. A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2625>. Acesso em: 21 mar. 2010.
[21] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65.
[22] WABIER, Luiz Rodrigues. Ibidem, pp. 507-508.
[23] WABIER, Luiz Rodrigues. Ibidem, p. 508.
[24] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a Coisa Julgada Material – Coisa Julgada Inconstitucional, in NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, pp. 63-65.
Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, foi contemplado com a abreviação da duração do curso de graduação, por ter sido considerado aluno com extraordinário aproveitamento nos estudos (artigo 47, § 2º, da Lei 9.394/96), e com o título de "Láurea Acadêmica Destaque da Graduação", em reconhecimento ao seu excelente desempenho acadêmico (Coeficiente de Rendimento Escolar: 9,43). Especialista em Prática Judicante pela Universidade Estadual da Paraíba, em convênio com o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba - Escola Superior da Magistratura "Desembargador Almir Carneiro da Fonseca". Foi Assistente Jurídico, cargo privativo de bacharel em direito do quadro de pessoal do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, junto ao Gabinete da Exma. Desa. Maria de Fátima Moraes Bezerra Cavalcanti, no período de 18/06/2010 a 20/01/2011. É, desde 02/02/2011, Assessor da Segunda Câmara Especializada Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Luiz Gonzaga Pereira de Melo. A relativização da coisa julgada à luz da teoria constitucionalista moderna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37132/a-relativizacao-da-coisa-julgada-a-luz-da-teoria-constitucionalista-moderna. Acesso em: 22 nov 2024.
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