O constitucionalismo propôs uma salutar renovação na dinâmica do Estado o qual absorveu novas técnicas de administração e de exercício do poder por meio de órgãos constituídos cujos limites foram traçados nas Constituições liberais.
O funcionamento do Estado por meio de órgãos e entidades, a organização político-administrativa da república e a sistemática dos direitos fundamentais integram o núcleo essencial da Constituição, considerados verdadeiros mínimos de qualquer ordenamento jurídico-político, aquilo que se convencionou denominar de núcleo material da Constituição.
As funções do Estado disciplinadas a partir de um sistema de separação de poderes pensado já por Aristóteles e organizado por Montesquieu e pelos teóricos que lhe sucederam, conformado por um modelo de controles recíprocos, denominado pelos norte americanos como freios e contrapesos, tudo ao lado de técnicas de concentração e especialização funcional caracterizam a nova realidade do Estado do final do século XVIII, em contraposição à configuração pretérita, monárquica e absolutista.
Essa realidade atual realça os poderes típicos administrativos, legislativos e jurisdicionais do Estado. O Estado é administrador e aplicador de políticas públicas, coordenador de finanças e arrecadador de tributos, sendo ainda legislador agindo abstratamente com a idealização de normas prospectivas e gerais, atuando ainda na solução de questões controvertidas concretas, exercendo, portanto a atividade jurisdicional marcada pelo atributo da coisa julgada.
A função administrativa-gerencial identifica a missão constitucional do Estado de atender às demandas populares por meio de ações concretas e políticas públicas aptas a oportunizar o ideal de isonomia dos súditos do Estado, cumprindo assim o papel de propiciar comodidades e atender necessidades por meio de atos de governo e atos administrativos previstos no ordenamento jurídico.
Essa atividade não se confunde com a chamada função de governo, embora com ela mantenha certa proximidade. É que no caso da função de governo, embora também exercida pelo Poder Executivo, tem-se que ela diz respeito às questões preponderantemente políticas e marcadas pelo interesse geral e republicano não sendo apenas ligadas ao interesse imediato do ente político autônomo.
Naturalmente, a dificuldade em se separar no plano empírico a atividade administrativa estrita, identificada com o caráter coercitivo, da função de governo é grande e repleta de dificuldades, eis que, devido à interpenetração dos conceitos, é possível assentir que, a atividade de governo repercute no âmbito de todo território nacional, dizendo respeito aos interesses gerais e difusos relativos ao Estado soberano, ao passo que a atividade meramente administrativa executória se justifica como meio para se realizar interesses imediatos e dirigidos.
A esfera administrativa é aquela encarregada de executar as tarefas inerentes às competências do ente político repercutindo assim em sua dimensão territorial, não tendo assim amplitude nacional com o é o caso da função de governo.
Obviamente, a ação administrativa depende da atuação abstrata e geral definida pelo legislador que em nome dos representados, de modo legítimo produz inovação do direito e propicia a ação estatal prospectiva.
A feitura da norma legal deriva da ação dos legitimados pelo voto popular, credenciados nos moldes da constituição e das leis eleitorais para desenvolver o projeto pensado pelos representados a fim de consolidar uma autêntica democracia semidireta com mecanismos de participação política popular.
A função legislativa marcada pelo seu elevado coeficiente de abstração e generalidade representa corolário lógico da essência da democracia e fio condutor do Estado de Direito, razão pela qual há que ser essa conquista do constitucionalismo desenvolvida para se obter resultados que no plano prático estruturem de modo adequado e melhor os interesses individuais e coletivos numa verdadeira relação de correspondência entre o normatizado e o anseio popular.
A atuação da jurisdição, por seu turno, corresponde à função do Estado-juiz que conforma o direito ao caso concreto a partir da análise da questão controvertida que lhe é submetida a partir de provocação do interessado por meio dos instrumentos que a norma Constitucional e legal oferecem.
Evidente, que o julgador não exerce monopólio na aplicação do direito ao caso concreto, já que, outras esferas sociais também o fazem. O que caracteriza na verdade a jurisdição é o fato de que a decisão tomada pelo poder Judiciário não se submete ao crivo de outra seara do poder, sendo, portanto, a marca do trânsito em julgado e da coisa julgada os elementos essenciais desse poder do Estado.
Claro que o fato de os juízes não terem sido legitimados para a atuação por meio de processo eleitoral revela a necessidade de que sejam seus integrantes imparciais e independentes agindo conforme a interpretação das normas que o legislador elabora e que o direito proporciona, funcionando como verdadeiro hermeneuta do ordenamento jurídico.
O arranjo jurídico-institucional definido na Constituição de 1988 absorveu bem a lógica do sistema de freios e contrapesos viabilizando a harmonia e independência dos poderes constituídos que atuam de modo equilibrado não havendo no plano teórico o desmando ou o arbítrio de um órgão sobre o outro.
Dentro do sistema de freios e contrapesos, surgem, contudo, os problemas relacionados ao exercício de funções atípicas e a possível configuração de abusos no uso de prerrogativas garantidas constitucionalmente.
Como exemplo de anomalia existente a partir desse modelo atual, surge a discussão acerca do excesso do Poder executivo na atividade normatizante, possivelmente em razão da insuficiência e até mesmo apatia do legislador que cede passivamente em favor de um Executivo voraz pela atividade legiferante.
A utilização de Medidas Provisórias, de decretos regulamentares e as prerrogativas garantidas ao chefe do executivo no processo legislativo autorizam sem dúvida a conclusão segundo a qual a Constituição brasileira prestigiou o Poder Executivo na atividade atípica de legislar.
Naturalmente o abuso se revelou corolário da franquia constitucional não raras vezes criticado por juristas e segmentos da vida jurídica do Estado cuja compreensão é no sentido de usurpação da função legiferante e verdadeiro atentado contra o postulado da separação de poderes.
De outra banda, não se pode esconder, e mesmo em tom crítico, apontar as limitações do Poder Legislativo quanto à morosidade no desenvolvimento do processo legislativo por ele conduzido e, naturalmente, as consequências disso advindas, como é o caso da impossibilidade de contribuir com o estado de direito, respondente de modo célere às demandas da sociedade, pondo em risco a própria ideia sobre a qual se assenta o princípio da legalidade.
É que o postulado da legalidade, garantidor da noção de segurança jurídica assegura a necessária confiança que deva permear as relações jurídicas no estado de direito, sendo, portanto, paradigma desse modelo em sua feição atual.
O desvirtuamento desse princípio proporciona questionamentos acerca da própria legitimidade dos órgãos constituídos quanto á produção da organização social.
O repensar o modelo atual sobre a proeminência da atual do poder Executivo na atividade normativa representa necessária medida para equilibrar na prática o que na teoria e na norma abstrata já se identifica equilibrado.
Nesse contexto, a sociedade exige um Poder Legislativo mais responsável com sua atividade precípua e atuante para prestar as demandas clamadas pela comunidade atendendo-as de modo célere e efetivo como decorrência lógica dos objetivos fundamentais que sedimentam nossa república federativa.
No que se refere à atividade regulamentadora, objeto da ação administrativa, é certo afirmar ela se desenvolve com o propósito de viabilizar as promessas constitucionais relacionadas aos direitos fundamentais e à organização político-administrativa do ente federativo.
A finalidade da regulação deve se justificar em razão do princípio da legalidade, uma vez que, não pode ser desenvolvida senão a partir de referenciais abstratos e gerais aptos a definir de modo categórico e restritivo a atuação concreta do administrador público.
Nesse quadro, a regulação não pode desservir a lei, sendo, por isso mesmo, a ela subordinada, porquanto não pode de seus contornos se desviar sob pena de usurpar a tarefa legislativa cometida ao poder normatizante primário. Sendo certo que o poder regulamentar se assenta sob premissas legais, a crise de legalidade ocorre quando os desvios do padrão definido pela lei, espécie normativa primária, se revela ocorrido sendo necessário o estabelecimento da ordem jurídica com a supressão do ato normativo secundário violador.
Por fim, tendo em conta que expus minhas observações sobre os tópicos sugeridos, advirto que a atuação do Poder executivo no cenário brasileiro atual revela de certo modo excesso na atuação normativa primária, ainda que dentro da prerrogativa constitucional conferida por norma. Todavia, reconheço que o fato se dá em grande medida em decorrência da zona de conforto que o sistema propicia ao Poder legislador que abdica de sua missão constitucional de contribuir ao Estado.
Nesse sentido, e sem ter a saída para minimizar o problema, penso possível discutir qual seria a melhor ação da sociedade para equacionar a questão. Alterar a constituição limitando os poderes do Executivo no que se refere à atividade legiferante ou provocar um processo de conscientização popular acerca da exigência a ser feita ao legislador no sentido de desenvolver com rapidez e qualidade a atividade típica legislativa que lhe é inerente. Fica assim a questão posta para reflexão
Procurador Federal atuante perante Tribunais Superiores e Supremo Tribunal Federal. Professor universitário de Direito Constitucional e Processual Civil. Mestrando em Direito e Políticas Públicas. Pós graduado em Direito Público e em Metodologia do Ensino Superior. Graduado em Direito e em Matemática.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Andre Lopes de. Crise moderna do sistema de separação de poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37719/crise-moderna-do-sistema-de-separacao-de-poderes. Acesso em: 22 nov 2024.
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