Tema em plena discussão atualmente diz respeito à publicação de biografias e à necessidade ou não de prévia autorização do biografado ou, caso falecido, de seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.
Tramitou no Congresso Nacional o projeto de lei nº 3.378/2008, de autoria do então deputado federal Antônio Palocci, cujo objetivo era a alteração do art. 20 do Código Civil.
Assim é a redação atual do art. 20:
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Caso aprovado o projeto de lei, o art. 20 teria a seguinte redação:
Art. 20. Salvo se autorizada ou se necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único: É livre a divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.
Segundo a justificativa apresentada pelo deputado, “neste início de século XXI, a utilização do nome e/ou da imagem de certas pessoas para fins comerciais é uma realidade cotidiana”, não obstante reconheça que no Brasil há inúmeros exemplos de condenações judiciais por publicação de biografias não autorizadas.
O projeto de lei foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, mas dele derivou novo projeto de lei, proposto pelo deputado Newton Lima, que pretende dar a seguinte redação ao art. 20:
Art. 20. .................................................. .
§ 1º Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.
Argumenta o deputado que o acesso irrestrito à informação é processo global e inevitável. Segundo seu entendimento, a redação original do art. 20 do Código Civil constitui verdadeiro resquício de censura. Para ele, quando alguém se torna pessoa pública, seu direito à privacidade é relativizado.
No ano passado (2012), a Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL ajuizou ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 4815), questionando os arts. 20 e 21 do Código Civil.
Argumenta-se que as biografias constituem gênero literário e fonte histórica, importante para a formação cultural do povo, que necessita de informações confiáveis, isto é, sem necessidade de passar pelo crivo dos biografados.
Recentemente, o STF realizou audiência pública com a finalidade de discutir a necessidade das biografias serem autorizadas pelos biografados ou pela família. Participaram membros do Poder Público, como a ministra da Cultura e o subprocurador-geral da República, a OAB e representantes da sociedade civil. Foram ouvidas manifestações que são contra e a favor do dispositivo da lei.
Ponto comum nas manifestações favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos do Código Civil é a alegação de que a Carta Magna contempla o direito de informação e de livre expressão e manifestação do pensamento, e que, portanto, exigir autorização prévia do biografado, mormente quando se trate de pessoa pública, consiste em indevida censura.
Alguns chegam a afirmar que sem informação não há opinião livre e sem esta não há democracia. Quanto exagero! Afinal, a democracia brasileira não será abalada, como não está sendo e nunca foi, por conta da necessidade ou não de autorização prévia para a publicação de biografias. Já os interesses econômicos de editoras e autores de biografias, estes sim sofrerão as consequências diretas seja da decisão do STF seja da votação do projeto de lei no Congresso.
Se o art. 5º da Constituição Federal garante a todos o direito à livre manifestação do pensamento (inciso IV), à livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX) e o direito à informação (inciso XIV), não se pode olvidar que o mesmo artigo garante, em seu inciso X, que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Todos os dispositivos têm assento constitucional e tratam de direitos e garantias fundamentais, que por sua importância integram as chamadas cláusulas pétreas da Constituição, não podendo ser alvo de emenda (art. 60, § 4º, IV, CF/88).
Não se pode partir do pressuposto que uma garantia mereça maior ou menor proteção frente a outra de igual hierarquia. Se para alguns o direito à preservação da intimidade e da vida privada esbarra no direito à informação, para outros deve prevalecer o entendimento exatamente oposto. Cabe ao STF fazer uma ponderação de princípios.
Contudo, não há regra ou princípio absoluto. A inviolabilidade da intimidade e da vida privada não deve prevalecer para ocultar ilegalidades. Exemplo disso é a possibilidade de invadir domicílio para evitar a prática de crime. Também o direito à livre manifestação do pensamento não é irrestrito, afinal, fazer apologia ao crime é tipificado pelo Código Penal.
Assim, fazendo-se análise minuciosa acerca do pedido formulado na ADI 4815 e das justificativas apresentadas nos projetos de lei que pretendem alterar o Código Civil, não se pode chegar a outra conclusão senão que são descabidos.
Os artistas, jogadores de futebol e atletas em geral, políticos e demais figuras públicas, em função de suas atividades ou outra circunstância que os fez “conhecidos” ou “famosos”, despertam nas pessoas extrema curiosidade sobre todas as facetas de sua vida. Entretanto, a Constituição Federal lhes garante a inviolabilidade de sua intimidade, vida privada, honra e imagem. O fato de serem pessoas públicas não os impõe a uma condição de cidadão menos protegido. A norma constituição estende sua garantia a todos.
Isso é censura? Não. Trata-se apenas do exercício de um direito garantido constitucionalmente.
O direito à informação não pode ser extrapolado e permitir que se façam verdadeiras devassas à intimidade alheia, simplesmente para satisfazer a curiosidade de outrem e a ganância de editoras e autores.
Sequer podemos considerar informação a intimidade e a vida privada de alguém. Com que direito podemos exigir conhecer a intimidade e a vida privada de outra pessoa sem o seu consentimento. Trata-se da mais pura agressão, com a qual não podemos concordar.
Os direitos à informação, à livre manifestação do pensamento e à livre expressão, dentro do espírito que permeia a Carta Magna de 1988, não servem de fundamento para perpetrar tamanho atentado contra a pessoa humana. Mormente se considerarmos os interesses menos instrutivos e mais financeiros que estão em jogo.
Nesse sentido, os arts. 20 e 21 do Código Civil não padecem de qualquer vício de inconstitucionalidade. Por outro lado, inconstitucional é o projeto de lei que pretende a alteração dos dispositivos supramencionados, para permitir a publicação de biografias não autorizadas. A intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas são invioláveis e, por conseguinte, constituem verdadeiras limitações à produção cultural biográfica, sem que isso signifique censura.
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