I. EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA NO BRASIL
Uma vez que havia, ainda, vínculo entre a igreja e o Estado, o casamento religioso, segundo a Constituição de 1824, era a exclusiva fonte formal da família. Com a Constituição de 1891, assim como a Constituição de 1824, marcada pelo liberalismo, inaugura-se o Estado laico e, sendo assim, instituiu-se o casamento civil, cujo processo deveria ser gratuito. Passa este a ser, portanto, o único ato capaz de constituir uma família e não mais o casamento religioso, do qual se retira valor jurídico. A partir da Constituição de 1934, consagra-se o Estado social brasileiro, caracterizado pela forte intervenção estatal na esfera econômica e social. Consequentemente, o Estado assumia a obrigação de amparar famílias com proles numerosas. Além disso, estendia efeitos civis ao casamento religioso e estimulava a indissolubilidade do casamento, estabelecendo que apenas pudesse ser destituído por anulação ou desquite. Adicionalmente, recomendava o exame de sanidade mental, para os nubentes, antes das núpcias. Determinava, ainda, que o ato pelo qual se reconhecesse filhos naturais deveria ser gratuito. E, por fim, apesar de prever a igualdade dos sexos, estabelecia que a lei civil devesse dispor sobre as condições da chefia da sociedade conjugal e do pátrio poder.
A Constituição de 1937, influenciada pela Constituição polonesa, reconhecia a igualdade entre filhos naturais e legítimos e estabeleceu, como obrigação do Estado, a proteção da infância e da juventude. Todavia, não estendeu efeitos civis ao casamento religioso, sendo, assim, o casamento civil o único meio de constituição familiar. A Constituição de 1946, elaborada após o fim do Estado-Novo, equiparava os efeitos do casamento religioso ao civil e garantia a este proteção estatal. Nesse sentido, o casamento válido e indissolúvel, religioso ou civil, era único modo pelo qual se formava a família. Adicionalmente, além de conferir proteção à infância e à juventude, garantia proteção à maternidade.
A Constituição de 1967 não alterou as disposições constitucionais que tratavam da família. Entretanto, em 1977, após a Emenda nº 1, de 1969, foi aprovada a Lei do Divórcio. Aludida Lei estabelecia que o casamento pudesse ser dissolvido após prévia separação judicial por três anos. Com a Emenda nº 2, admitiu-se o divórcio direto em caso de separação de fato há mais de cinco anos. Além da celebração gratuita, do casamento religioso com efeitos civis, da assistência à maternidade, à infância e à juventude, determinou, ainda, a assistência aos excepcionais.
A Constituição de 1988 inaugura o Estado Democrático de Direito, influenciada pelas constituições europeias, no qual o valor maior é a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a origem da família é reconhecida como natural e, nesse sentido, passa a ser concebida de forma mais ampla. O casamento, seja o civil, seja o religioso com efeitos civis, deixa de ser a única forma de constituição familiar, uma vez que a Constituição de 1988 reconheceu, expressamente, a união estável entre homem e mulher e a família monoparental (constituída por qualquer dos pais e seus descendentes). Além disso, determinou a igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher na sociedade conjugal e reduziu os prazos para dissolução do casamento pelo divórcio. Possibilitou o divórcio direto após dois anos de separação de fato e a conversão da separação judicial em divórcio após um ano da ruptura do vínculo. Estabeleceu, ainda, que o planejamento familiar cabe ao casal, devendo o Estado garantir meios para sua realização e criou mecanismos para coibir a violência doméstica. Além disso, é de extrema relevância ressaltar que a Carta de 1988 consagrou uma série de princípios que aplicáveis à família, como o princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade, da convivência familiar, do melhor interesse da criança e da afetividade. Adotou, ainda, o valor eudonista, segundo o qual o objetivo maior do indivíduo é atingir a paz e a felicidade.
Pelo princípio da solidariedade, que abrange os conceitos de fraternidade e reciprocidade, supera-se o individualismo jurídico em busca de uma sociedade livre, justa e solidária, inclusive, pelos vínculos afetivos que unem os indivíduos em famílias. Afinal, a afetividade permite a realização do indivíduo e o desenvolvimento de sua personalidade. Este princípio tem clara influência, por exemplo, no dever de assistência mútua entre os cônjuges, na proteção da criança e do adolescente e no amparo aos idosos. No que se refere ao princípio da igualdade, destaca-se a conquista da igualdade entre o homem e a mulher, entre os filhos e entre as entidades familiares. Ganha relevo, ainda, a eliminação da discriminação sexual em relação à homoafetividade e à disforia de gêneros. Quanto ao princípio à liberdade, reflete-se sobre a liberdade de formar, manter e extinguir as relações familiares, de constituir novas formas familiares, de administrar o patrimônio familiar e de planejamento. No que se refere à extinção do casamento, fortalecem-se correntes que defendem a separação judicial ou divórcio independentemente de culpa, uma vez que rompida a afetividade, não há motivo para continuidade da união. Pelo princípio da convivência familiar, reconhece-se que a família não se esgota em sua unidade nuclear, mas estende-se a parentes que integram o grande núcleo familiar. De acordo com o princípio do melhor interesse da criança, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, á liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Apenas a observância destes princípios coaduna-se com a preservação da dignidade da pessoa humana em âmbito familiar, bem como os direitos subjetivos da personalidade[i].
Portanto, a Constituição de 1.988 deixa de proteger o casamento para proteger a instituição familiar, seja ela derivada do matrimônio ou não. E, expressamente, reconhece a união estável e a família monoparental como entidades familiares. Contudo, apesar de muitos sustentarem que houve completa equiparação entre as famílias, não é o que se infere do Código Civil. Por exemplo, em caso de filhos havidos de uma união conjugal, estes são, presumidamente, do marido, o que não ocorre em outras formas de relações familiares.
De qualquer modo, conforme se observa, a família deixa de ser patriarcal para tornar-se nuclear, tendo em vista relevantes alterações em sua estrutura sob o aspecto social, econômico, político e cultural. Desaparece o pátrio poder, que passa a denominar-se poder familiar. No que se refere à esfera social, houve significativas alterações em virtude, principalmente, da revolução industrial, momento histórico em que a mulher e os filhos passam a, além do homem, constituírem força de trabalho. Nesse sentindo, deixam de haver funções familiares bem delineadas. Quanto ao âmbito econômico, a família passa a ser uma unidade de consumo ao invés de uma unidade de produção, já que, no mundo industrializado, não é necessário produzir o que se pode consumir no mercado. No plano político, destaca-se a emancipação feminina, graças ao que as mulheres passam a atuar, efetivamente, em decisões políticas e a ocupar cargos de relevância socioeconômica. Dá-se, assim, uma igualdade não meramente formal entre homens e mulheres, mas material. Em sede cultural, observa-se que a jornada de trabalho dos integrantes da família faz diminuir o contato e o afeto entre seus membros. Com isto, a educação deixa de vir, exclusivamente, do âmbito familiar, sendo, fortemente, influenciada por fatores externos[ii].
Além disso, a família deixa de ser uma entidade política para ser reconhecida como uma reunião de pessoas ligadas pelo afeto, estabilidade, assistência mútua e responsabilidade social. Afinal, trata-se do lócus onde o indivíduo poderá desenvolver a sua personalidade. Portanto, pode-se dizer que a Constituição de 1988 passa a aferir a família em sua esfera sociológica, afinal, reconhece que, em havendo uma pluralidade de formas de constituição familiar, todas merecem ser tratadas igualmente. Portanto, não mais se excluem grupos familiares que não se estabelecem pelo casamento. Sendo assim, atualmente, é possível admitir a existência de famílias constituídas, até mesmo, por uma só pessoa, uma vez que a Lei nº 8.009/90 garante a proteção de sua residência como bem de família. Possível, ainda, o reconhecimento de famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, quando se tratem de indivíduos ligados pelos mesmos fundamentos de qualquer família.
Afinal, com a evolução dos tempos, a família perdeu diversas de suas funções iniciais, como a religiosa e a defensiva. Diante disto, o único verdadeiro elemento formador da família, na pós-modernidade, é o afeto. Nesse sentido, a razão de ser da família passa a ser a assistência espiritual, psicológica, material, moral e a sociabilização de seus membros. Portanto, a família, concebida como instituição, cede espaço à família entendida como instrumento de seu fim social. Nesse sentido, de acordo com o novo paradigma constitucional, sob uma interpretação sistemática, devem ser protegidos, pelo Estado, todos os tipos familiares que cumpram, devidamente, a sua função social, uma vez que a família é uma forma de promoção de diversos direitos da personalidade, como o direito ao nome, à vida, à saúde, à alimentação, à segurança, ao respeito, etc. Nesse sentido, pode-se dizer que o próprio estado familiar integra os direitos da personalidade do indivíduo, sendo, inclusive, um relevante elemento identificador da pessoa natural[iii].
Por isso, não obstante a Constituição de 1.988 proteja, explicitamente, apenas três modalidades de entidade familiar, ou seja, o casamento, a união estável e a família monoparental, grande parte da doutrina, como Paulo Lobo, defende que essas modalidades não são as únicas que merecem proteção, sendo, portanto, este rol, meramente, exemplificativo. Nesse sentido, a mais moderna doutrina concebe o dispositivo constitucional como cláusula geral inclusiva, aberta e não discriminatória, isto é, cabe ao Estado proteger todas as formações familiares fundadas no afeto e no cumprimento de sua função social. Não cabe, portanto, à entidade estatal fixar paradigmas relativos à configuração familiar até mesmo porque rege o direito de família o princípio da intervenção mínima. Portanto, atualmente, pode-se dizer que o conceito de família abrange, necessariamente, a relação socioafetiva e o eudonismo, prestigiando-se, assim, a busca da realização pessoal e felicidade de cada um de seus membros, de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana pela valorização de cada um de seus integrantes como ser humano único e insubstituível.
II. MODALIDADES DE FAMÍLIA NA ERA CONTEMPORÂNEA
II.1. A FAMÍLIA MATRIMONIAL
A família matrimonial é a família constituída pelos laços matrimoniais monogâmicos, tradicionalmente, difundida no ocidente. Ao contrário do que se verificava durante a vigência das Constituições brasileiras anteriores, a Carta de 1.988 consagrou a igualdade entre o homem e a mulher, tanto no que se refere aos deveres, quanto no que se relaciona aos direitos. Nesse sentido, atualmente, ambos devem cooperar para a administração da família, bem como para seu sustento e educação da prole.
O casamento é civil, entretanto, é possível a extensão de efeitos civis ao casamento religioso. Para isso, é necessário que seja efetuada a habilitação e o registro no Registro Civil das Pessoas Naturais. Trata-se, de qualquer modo, de um ato solene, que conta sempre com a intervenção estatal, com forma prevista em Lei, que visa a constituição de uma família. Baseado em relações de afeição, tem como objetivo o amparo mútuo, o desenvolvimento das potencialidades individuais e o crescimento interior para o alcance do bem estar, da felicidade e da perpetuação do ser humano[iv].
O atual Código Civil trouxe diversas inovações no casamento. Entre elas, pode-se citar a direção conjunta da sociedade conjugal e a fixação do domicílio conjugal por ambos os cônjuges. Além disso, estabeleceu os mesmos direitos e deveres, sem distinção, para o marido e a esposa.
Além disso, ao contrário do que ocorria na vigência do Código Civil de 1.916, atualmente, grande parte dos efeitos jurídicos da invalidade de um casamento seriam os mesmos ocorridos se este casamento jamais houvesse existido. Isto significa que há efeitos jurídicos derivados da relação familiar que se verificam mesmo quando não há matrimônio, como é o caso do regime de bens e direitos sucessórios. Adicionalmente, foram inseridas, no Código Civil, causas de suspensão do casamento.
Além disso, atualmente, a despeito do que ocorria outrora, não se exige a prévia separação judicial ou decursa de lapso temporal, posterior à separação de fato, para a dissolução do casamento pelo divórcio. Portanto, de acordo com a Emenda Constitucional 66/10 é possível dissolver o casamento diretamente pelo divórcio. A lei nº 11.441/07 autorizou, ainda, o divórcio extrajudicial, mediante escritura pública, desde que não haja filhos menores ou incapazes e que constem com assistência de um advogado. Contudo, não é demais ressaltar que o divórcio não extingue o poder familiar para aquele que não detém a guarda dos filhos menores.
II.2. A UNIÃO ESTÁVEL
De acordo com a Constituição da República, união estável é a entidade familiar formada entre o homem e a mulher, de forma pública, contínua e duradoura, com animus de constituir família, diferente do concubinato, que é a união de pessoas impedidas de se casarem. Não há, portanto, entre os companheiros, celebração de casamento. Todavia, ambos apresentam-se à sociedade como se casados fossem. Em vista disso, surge, entre ambos, o dever de lealdade recíproca. Não é necessário, contudo, que haja coabitação, mas, sim, uma comunhão de vidas com estabilidade.
Durante a vigência do Código Civil de 1.916, apenas a família constituída pelo casamento merecia proteção estatal. Contudo, com a Constituição de 1.988, o panorama alterou-se, passando-se a proteger outras modalidades de formação familiar, entre elas, a união estável. A primeira Lei sobre o assunto foi a 8.971/94, que estabeleceu os primeiros requisitos para sua configuração, reconheceu o direito a alimentos e estabeleceu o direito à meação na partilha de bens. Enfim, em 1.996, a Lei 9.278 estabeleceu requisitos menos rígidos para sua configuração, reconhecendo como entidade familiar a convivência pública, duradoura e contínua entre homem e mulher, com a finalidade de constituir família.
Atualmente, a união estável é regulada pelo Código Civil de 2002 sob o título “Da União Estável”. De acordo com o artigo 1.723:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família.
Todavia, há outros dispositivos, espalhados pelo diploma legal, que também tratam da matéria. Nesse sentido, são estendidos direitos alimentares e hereditários ao companheiro, bem como é auferido direito ao bem de família à entidade familiar constituída nessa modalidade. Além disso, são estendidas, à união estável, as causas impeditivas de casamento. Excepciona-se com tudo, o impedimento referente à constituição de união estável com pessoa casada, desde que esta esteja separada de fato ou judicialmente.
Todavia, deve-se ressaltar que o tratamento conferido à união estável não é o mesmo que o atribuído ao casamento, apesar de gozar de proteção estatal. Por exemplo, existem regramentos sucessórios distintos o cônjuge e o companheiro. Além disso, a própria Constituição determinou a facilidade de conversão da união estável em casamento, o que não seria necessário se ambos fossem objeto dos mesmos regramentos[v].
II.3. AS UNIÕES HOMOAFETIVAS
A sexualidade e orientação sexual do indivíduo integram a sua própria natureza. Nesse sentido, proibir ou restringi-las significa impedir o exercício de um direito da personalidade. Consagrado o direito à igualdade na própria Constituição da República, não se podem limitar direitos de uma pessoa em razão de sua orientação sexual[vi].
Em 05 de maio de 2011 foi proferida decisão história no Supremo Tribunal Federal. Todos os dez Ministros votantes no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 manifestaram-se pela procedência das aludidas ações constitucionais, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar e aplicando à esta o regime concernente à união estável entre homem e mulher. Com base no entendimento do Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, em 14 de maio de 2013 prolatou Resolução que obriga cartórios de todo o país a celebrarem casamento homoafetivo, bem como a converterem união homoafetiva em casamentos. A partir da aludida Resolução, nenhum cartório poderá rejeitar a celebração de casamento ou conversão de união estável entre casais homoafetivos. Tanto as referidas decisões do Supremo Tribunal Federal, quanto a resolução do Conselho nacional de Justiça constituem verdadeiro avanço em relação ao reconhecimento do direito à sexualidade e orientação sexual e fortalecimento do direito à igualdade. Além disso, coadunam-se, perfeitamente, com a função social da família, atual paradigma constitucional para constituição da entidade familiar. Também o Superior Tribunal de Justiça vem apresentando atuação efetiva na proteção de famílias formadas por casais homoafetivos. Em sede de recursos especiais, tem admitido, tranquilamente, a adoção conjunta por parceiros homoafetivos.
Nesse sentido, não obstante a lacuna constitucional e legal, no que se refere à menção expressa ao casamento e à união estável homoafetivos, o Poder Judiciário, com base nos princípios constitucionais, sobretudo no princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da concretização do princípio fundamental à felicidade por meio do afeto, reconheceu as uniões afetivas como entidades familiares equivalentes ao casamento e à união estável heterossexual. Dessa forma, como devido, o Estado adotou ações positivas no sentido de asseverar respeito à diversidade humana e combater a homofobia.
II.4. O CONCUBINATO
Atualmente, entende-se por concubinato a união entre indivíduos que estejam impedidos de se casarem. Uma vez que se aplicam à união estável os mesmos impedimentos relativos ao casamento, o casal não poderá, também, formar uma união estável. Assim, surgiu a figura jurídica referente ao concubinato. Em não se tratando de uma união estável, não se pode cogitar partilha da meação em caso de separação.
Todavia, visando não perpetuar uma situação de injustiça, o Supremo Tribunal Federal (Súmula 380) equiparou o concubinato a uma sociedade de fato, uma vez que haveria a aceitação de ambos quanto à existência de um patrimônio comum e reconhecimento da participação e cooperação de cada um na sua formação, tal como ocorreria em uma sociedade de fato civil ou comercial. Nesse sentido, a jurisprudência admitiu que a colaboração da mulher nos afazeres domésticos e na educação dos filhos, o que permitiria o progresso do parceiro, levaria-a a merecer uma parcela do patrimônio na partilha ou, ao menos, uma indenização pelos serviços prestados[vii].
Entretanto, o atual Código Civil fez, ainda, perdurarem algumas penalidades em caso de concubinato em que um dos parceiros é casado. Por exemplo, existe a proibição de doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice, com possibilidade de esta ser anulada pelo outro cônjuge ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois da dissolução da sociedade conjugal, nulidade do testamento em favor do concubino por testador casal , salvo se separado de fato há mais de cinco anos, a invalidade da instituição do companheiro como beneficiário de seguro da pessoa, se ao tempo do contrato o segurado não estava separado judicialmente nem de fato e ilicitude de beneficiar filho do concubino por testamento, salvo se este for comum do testador.
Contudo, de acordo com o artigo 1.723, parágrafo 1º, não se aplica o impedimento à união estável se o parceiro casado estiver separado de fato ou judicialmente. Portanto, o Código Civil privilegia a afetividade em detrimento do vínculo conjugal para configurar a formação de família, o que se coaduna com o novo paradigma constitucional no que se refere valorização da dignidade da pessoa humana[viii].
Há, ainda, decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconhece direitos à esposa e à concubina no que se refere à impenhorabilidade de bens imóveis do cônjuge infiel destinados a cada uma das famílias constituídas. Em vista de situações como esta, de fato, cabe ao magistrado analisar o caso concreto e aplicar os princípios constitucionais sob o novo enfoque dado à família pela Carta de 1.988.
II.5. A FAMÍLIA MONOPARENTAL
A família monoparental, ou seja, aquela formada por apenas um dos pais e sua prole, é, expressamente, prevista na Constituição da República de 1.988. Todavia, ao contrário do casamento, da união estável e do concubinato, não lhe é feita referência no Código Civil. Em vista disso, aplicam-se as regras atinentes às relações de parentesco em geral.
Esta espécie de família pode constituir-se por diversas formas: adoção unilateral, viuvez, divórcio, não reconhecimento da prole, inseminação artificial, entre outras. Estatísticas mostram que, na maioria dos casos, a família monoparental é formada por uma mulher. Possivelmente, esse advento deve-se em razão da emancipação feminina, seja sob o aspecto financeiro e cultural, seja sob o aspecto emocional e sexual.
Assunto eminentemente contemporâneo é o acesso de mulheres solteiras ou viúvas a técnicas de reprodução assistida. A princípio, poder-se-ia questionar, assim como ocorre na adoção unilateral, se haveria preservação do interesse da criança. No que se refere à adoção, entende-se que o interesse do adotado existe, uma vez que passaria a ter um lar e uma família que, anteriormente, não possuía. Contudo, no caso da reprodução assistida, o contexto que se apresenta é ligeiramente diferenciado, uma vez que, nesse caso, haveria planejamento de uma família, propositadamente, monoparental desde antes da concepção do nascituro. Entretanto, não se deve admitir que a mulher solteira fosse privada de seu desejo de ser mãe sem depender de um homem. Afinal, o direito ao planejamento familiar é constitucionalmente assegurado a todos os indivíduos. Todavia, é certo que, nesse caso, é necessário que a genitora tenha meios para assegurar o adequado desenvolvimento da criança.
Em se tratando de inseminação artificial homóloga, existe presunção de paternidade em relação ao marido ou companheiro, ainda que póstuma. Por outro lado, na hipótese de inseminação artificial heteróloga, exige-se anonimato do doador. Ainda assim, perdura o direito de conhecimento da identidade genética. Portanto, o indivíduo gerado a partir de uma inseminação artificial heteróloga tem direito a buscar sua verdade biológica. Porém, descobrindo-a, não se estabelecem quaisquer relações de parentesco, restando excluídos direitos patrimoniais e sucessórios[ix].
II.6. OUTRAS MODALIDADES FAMILIARES
Conforme aludido, anteriormente, a relação de entidades familiares estabelecida na Constituição de 1.988 não é exaustiva. Trata-se, sim, de uma cláusula geral, inclusiva. Sendo assim, não é dado ao direito determinar o que constitui família ou não e, sim, garantir a devida tutela às mais variadas modalidades de núcleos familiares que vêm surgindo na atualidade.
Por exemplo, a família extensa ou ampliada foi, expressamente, regulada pelo estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 25, parágrafo único:
(...)
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos, com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Reconhece, também, a doutrina, a família anaparental, ou seja, aquela formada apenas por parentes colaterais, em que não há relação de ascendência e descendência. Assim como se observam, ainda, famílias pluriparentais, sobretudo derivadas de métodos de reprodução assistida, em que é possível que determinado indivíduo possua dois pais e/ou duas mães.
Adicionalmente, fala-se das patchwork families, ou seja, famílias recombinadas. Trata-se de famílias formadas por indivíduos provindos de extintas uniões, com ou sem descendentes, que se unem a outra pessoa, provinda ou não de outra relação, com ou sem descendentes. Trata-se, portanto, de uma agregação social com limites incertos, gerando, em determinados casos, discussões sobre relações de paternidade e filiação socioafetiva e biológica.
Consideram-se famílias, inclusive, as uniões entre casais ou parceiros homossexuais sem descendentes. E, até mesmo, famílias constituídas por um único indivíduo, uma vez que já se reconheceu a tutela do bem de família mesmo que o bem imóvel seja de propriedade e residência de uma única pessoa.
Apesar de não previstas constitucionalmente, ou mesmo, infraconstitucionalmente, nem por isso, devem deixar de receber proteção estatal, cabendo ao direito, na verdade, tutelá-las e proferir soluções para eventuais discussões geradas pelo ineditismo de questões geradas por novas modalidades familiares.
III. A FILIAÇÃO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E A NOVA FILIAÇÃO
Filho é parente em primeiro grau em linha reta, no âmbito da descendência. O Código Civil de 1916 classificava a filiação em quatro espécies. Os filhos legítimos eram aqueles concebidos na constância do casamento. Eram também considerados legítimos os nascidos até cento e oitenta dias após o início da convivência conjugal, desde que o marido tivesse ciência da gravidez antes do casamento ou tivesse assistido à lavratura do termo de nascimento sem contestar a paternidade. Equiparavam-se aos filhos legítimos os filhos legitimados, ou seja, nascidos anteriormente ao casamento dos pais e, no caso de concepção, fora do prazo de presunção legal. Ilegítimos eram os filhos que não eram fruto de casamento entre os pais, sendo que os incestuosos ou adulterinos não podiam ser objeto de reconhecimento, o que os impedia de suceder. Por fim, os filhos poderiam ser adotados, contudo, a relação de parentesco estabelecia-se somente entre adotante e adotado, a não ser no que se refere aos impedimentos matrimoniais. A evolução da matéria deu-se com a Lei do Divórcio, que determinou igualdade entre todos os filhos para fins sucessórios. A distinção entre filhos terminou, definitivamente, com a Constituição de 1.988, que proibiu qualquer forma de discriminação, estabelecendo direitos e deveres isonômicos para toda a prole. Nesse sentido, vedou-se o impedimento de reconhecimento da filiação, bem como o direito de filho desvinculado da relação de filiação. Trata-se de princípio supranacional, consagrado pela declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas de 1948. A Constituição de 1.988 prestigiou, ainda, o princípio da paternidade responsável em seu artigo 226, parágrafo 7º.
O Código Civil de 2002 também consagrou o princípio da isonomia entre os filhos, inclusive adotados, para todos os fins, e ampliou, sobremaneira, as presunções legais de paternidade. Nesse sentido, o são automaticamente reconhecidos como filhos do esposo os nascidos na constância do casamento. Todavia, consideram-se, também, filhos do marido os nascidos até cento e oitenta dias após o início da convivência conjugal. São assim considerados, ainda, os nascidos até trezentos dias após a dissolução da sociedade por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento[x]. Em vista do desenvolvimento científico e tecnológico no âmbito da medicina e da genética, estabeleceram-se, ainda, presunções legais de filiação referentes à fecundação homóloga e heteróloga, a serem analisadas mais adiante. Contudo, caso não abrangida a hipótese pelas presunções legais, situação em que o reconhecimento é automático, é possível a inserção da paternidade biológica ao mundo jurídico pelo reconhecimento voluntário, que pode ser anterior ao nascimento ou posterior à morte do reconhecido, ou forçado (quando há decisão judicial nesse sentido).
Não se deve olvidar que, atualmente, pelo progresso da ciência, é possível identificar, com precisão, a paternidade biológica pelo exame de DNA ou mesmo pelo exame de idade gestacional. Tendo em vista que a ação declaratória de estado não prescreve, é possível que se mova ação rescisória, caso a sentença transitada em julgado, que determinou a filiação, tenha sido prolatada quando a determinação precisa da paternidade não era, ainda, possível. Entretanto, a situação deverá ser analisada no caso concreto. Afinal, hoje, muitas vezes, privilegia-se a relação de afetividade em detrimento da realidade biológica, o que pode vir a impossibilitar a anulação de registro.
O autor José Luiz Gavião de Almeida defende que é, ainda, relevante a distinção entre filhos reconhecidos e aqueles que se vinculam aos pais apenas biologicamente. Não argui, contudo, que uns devam ter mais direitos que os outros, mas, sim, que os efeitos jurídicos atribuídos a cada um são diferentes. Por exemplo, os filhos reconhecidos têm direito a procedimento especial em ação de alimentos, com fixação de alimentos provisórios, uma vez que a paternidade jurídica é pré-constituída. Por outro lado, os filhos não reconhecidos têm apenas direito a alimentos provisionais e não gozam do procedimento especial. Outro exemplo de diferença de tratamento é o fato de os filhos reconhecidos possuírem o direito de morar com o pai, caso contrário, necessitam de autorização do cônjuge para coabitação[xi].
O Código Civil de 2002, ainda, ampliou o conceito de parentesco civil, passando a ser considerado parente todo aquele que integre a família, mas sustente relação de consanguinidade, o que abriu portas para a filiação socioafetiva. Nesse sentido, é civil a filiação que não seja derivada da consanguinidade, como ocorre na adoção e na inseminação artificial heteróloga, e natural a que decorre de laços biológicos. Portanto, também é civil o parentesco determinado pela relação de afinidade.
III.1. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Considera-se socioafetiva a filiação quando entre a mãe e o filho, entre o pai e o filho ou, ainda, entre os pais e os filhos não existe vínculo biológico, todavia, ainda assim, há um forte liame de afeto que os une tanto em âmbito pessoal quanto patrimonial. No ordenamento civil brasileiro é admitida, em princípio, com base nos artigos 1.593 e 1.596, que determinam:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
Art. 1.596. Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Nesse sentido, o afeto surge como elemento fundamental para constituir novas modalidades familiares que merecem ampla proteção por parte do Estado. Pode-se dizer que, no direito pátrio, a filiação fundada nas relações afetivas emerge, sobretudo, na adoção, nas técnicas de reprodução assistida, homóloga ou heteróloga, e na posse do estado de filho. Possuir o estado de filho significa passar a ser tratado como se filho fosse. Caracterizam este estado, por exemplo, o uso do nome familiar, a conduta afetiva mútua entre pais e filho, a submissão ao poder familiar, a convivência harmoniosa na família, o recebimento de assistência material, imaterial, educação, resguardo, etc. Funda-se em vínculo de amor duradouro que, inclusive, gera, em terceiros, a reputação da qualidade de filho.
Em face do exposto, conclui-se que a configuração do estado de filho exige três requisitos. O primeiro é a nominatio, ou seja, o filho deve ter o apelido de família do pai. O segundo é a tractatus, isto é, o tratamento equivalente ao recebido por um filho, inclusive no que se refere à criação e á educação. Por fim, exige-se a reputatio, que se perfaz quando o indivíduo é considerado filho também pela família e pela comunidade. Entretanto, não é necessário o preenchimento de todos os requisitos para constituir-se a posse do estado de filho, uma vez que, em havendo dúvida, deve decidir-se a favor da filiação. Destacam-se, dessa forma, duas modalidades de filiação derivadas da posse do estado de filho: a adoção à brasileira e os filhos de criação[xii].
III.2. FILIAÇÃO DERIVADA DA POSSE DO ESTADO DE FILHO
III.2.1. ADOÇÃO À BRASILEIRA
Configura-se a adoção à brasileira quando determinada pessoa registra filho biológico de outra pessoa como se fosse seu. Ocorre, na verdade, uma adoção sem a observância dos trâmites legalmente exigidos. Todavia, mesmo diante da falsidade ideológica do registro, a jurisprudência tem decidido pela sua não anulação, ainda que haja concordância de todos os envolvidos. Afinal, ainda que inválido, o ato corresponde a uma adoção, que é irrevogável[xiii]. Além disso, uma vez assumido, voluntariamente, o papel de pai, criando-se, assim, o vínculo afetivo, não pode, mais tarde, o indivíduo denegar a sua paternidade com base no fato de não ser genitor biológico. Isto significa que a paternidade não é mais concebida, exclusivamente, sob o enfoque biológico e, sim, principalmente, pelo vínculo de afinidade a afetividade. Sendo assim, é relevante que se criem disposições legais que impeçam ações denegatórias de paternidade, quando a relação socioafetiva já estiver constituída ou, ainda, dispositivos, nos moldes dos existentes na legislação alemã. Segundo o BGB, o homem que for casado com a mãe no momento do nascimento da criança é, presumidamente, pai, ainda que, pelas circunstâncias, seja óbvio que o filho não é dele biologicamente [xiv].
Por outro lado, se o indivíduo, incidindo em erro, registra uma criança como sua filha e não são criados laços afetivos, não se reconhece a adoção á brasileira e o registro deve ser anulado. Afinal, nesse caso, rompe-se a voluntariedade do ato e, consequentemente, não se pode arguir o princípio venire contra factum proprium.
III.2.2. “FILHO DE CRIAÇÃO”
O filho de criação é aquele que é amparado, criado, alimentado, defendido, educado e amado por pessoa que possui sua guarda de fato, constituindo-se a posse do estado de filho sem, contudo, caracterizar-se uma adoção formal. Trata-se, na verdade, de uma adoção de fato que, todavia, não possui embasamento legal e, por isso, ao “filho de criação” não se estenderiam, a princípio, os mesmos efeitos atribuíveis aos filhos biológicos ou formalmente adotados.
Ainda assim, não tem sido incomum o reconhecimento jurisprudencial da filiação, com todos os seus efeitos jurídicos, respaldada, unicamente, no vínculo afetivo. Entretanto, para que esta modalidade de filiação tenha fundamento legal, é necessário que o ordenamento civil reconheça a posse do estado de filho como elemento declaratório da filiação, inclusive, afetiva. Dessa maneira, não restariam, esses indivíduos, à margem da lei, da família e da sociedade, não apenas no que se refere à ordem social e patrimonial, mas também em relação a sua natureza pessoal, psíquica, moral e afetiva[xv].
De fato, é relevante reconhecer a filiação surgida do vínculo socioafetivo, tendo em vista, sobretudo, o interesse do menor. Contudo, é crescente corrente doutrinária no sentido de que não é apenas o bem-estar do filho que deve ser levado em consideração, mas também dos pais. O exemplo emblemático dessa orientação vem de julgamento proferido em Goiás. No caso em questão, uma mulher subtraiu, maliciosamente, filhos alheios e criou-os como seus, originando-se da convivência, o natural vínculo afetivo. Descoberto o paradeiro dos filhos pelos pais biológicos, decidiu-se, por bem, desconstituir o poder familiar originado da relação socioafetiva, considerando-se que, modernamente, também deve ser levado em consideração o proveito dos pais no exercício do poder familiar[xvi].
De qualquer modo, com a exceção de situações como a aludida acima, tem-se reconhecido a relação de filiação fundada, unicamente, no vínculo afetivo. Dentro deste contexto, situação interessante é a que se apresenta em relação ao padrasto e à madrasta. O casamento ou a união estável de pessoa que já possui filhos com outro indivíduo faz surgir uma relação de parentesco por afinidade, em decorrência da Lei, entre um dos cônjuges ou companheiros e o filho do outro cônjuge ou companheiro. Esse parentesco por afinidade gerado não tem, por si só, a capacidade de gerar a constituir o estado de posse de filho. Todavia, desenvolvendo-se, ao longo do tempo, verdadeiro vínculo afetivo, substituindo o genitor biológico, inclusive, no que se refere ao suporte moral e material. Origina-se, dessa forma, a filiação socioafetiva, gerando, para o pai e filho socioafetivo todos os direitos e obrigações derivados dessa condição. Nesse sentido, de acordo com a Lei 11.924/07 é possível, até mesmo, a inclusão do patronímico do padrasto pelo filho, a pedido de qualquer deles, com anuência de ambos, por decisão judicial[xvii].
III.3. A FILIAÇÃO E A REPRODUÇÃO ASSISTIDA
A reprodução assistida pode ser homóloga ou heteróloga. É homóloga na hipótese de os materiais genéticos pertencerem a ambos os pais. É heteróloga no caso de o material genético pertencer, exclusivamente, á mãe. Em se tratando de fecundação heteróloga, portanto, o filho é ligado ao pai somente por vínculo socioafetivo e não biológico.
De acordo com o artigo 1.597, incisos III e IV, caso a fecundação seja homologa, os filhos sempre se presumem do marido, mesmo que este tenha falecido ou que se trate de embriões excedentários. Todavia, segundo o inciso V do mesmo artigo, em caso de fecundação heteróloga, somente se presumem do marido os filhos concebidos com autorização do cônjuge.
Apesar de a legislação civil não prever, seria possível, ainda, cogitar a filiação socioafetiva ligada à mãe, caso a reprodução assistida heteróloga se desse pela utilização de óvulo doado e fecundado por sêmen do marido, com autorização da esposa. A Lei, não prevê, também, a reprodução assistida totalmente heteróloga, ou seja, com doação de óvulo e sêmen, sendo o material genético totalmente estranho ao dos pais socioafetivos. Além desses casos, o diploma civil também é falho no que se refere à ausência de previsão quanto a presunções legais referentes à reprodução assistida operada em união estável, o que acarreta uma impressão equivocada de que não se admite a utilização desses métodos em se tratando de pessoas não casadas[xviii].
É relevante ressaltar que, em nenhuma hipótese, o doador ou doadora, ou seja, o genitor, a genitora ou ambos são concebidos, juridicamente, como pais da criança concebida. A esposa e/ou marido que consentiram com a reprodução assistida heteróloga serão considerados pais para todos os efeitos legais, ainda que, posteriormente, o doador, a doadora ou os doadores venham a ser identificados. Portanto, em caso de reprodução assistida heteróloga, é possível a filiação socioafetiva bilateral ou unilateral.
Sendo assim, ainda que, no exercício de seu direito de conhecer sua identidade genética, o indivíduo venha a descobrir quem são os doadores, não haverá declaração do estado de filho natural. Afinal, a filiação, nesse caso, é estabelecida em virtude da relação socioafetiva e não da biológica. Da mesma forma, a doadora ou doador não poderão requerer nulidade do registro de filiação em nome dos pais socioafetivos para que seja reconhecida a maternidade ou a paternidade biológica.
Por fim, cumpre ressaltar que, do consentimento, não cabe arrependimento. Portanto, a autorização para a reprodução assistida heteróloga é irretratável. Nesse sentido, não pode ser revogada e não pode ser contestada, seja pelo cônjuge, seja pelo companheiro[xix].
III.4. GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
A gestação de substituição é conhecida, popularmente, pelo termo “barriga de aluguel”. Recentemente, o tema foi regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.013/13), admitindo a Lei essa prática desde que com fins altruísticos e sem remuneração e desde que a doadora tenha parentesco até quarto grau com um dos pretensos pais. Caso não sejam atendidos os requisitos, o caso deverá ser levado ao Conselho Regional de Medicina local.
Nessa hipótese, o material genético é oferecido pelos pais, contudo, a gestação dá-se em mulher, parente até quarto grau de um dos cônjuges, que não faz parte do casal. Nessa hipótese, há vínculo não apenas afetivo entre o filho e os pais, mas também biológico, servindo a parturiente como instrumento de concepção e nascimento. Ainda assim, a Resolução exige contrato entre aqueles que oferecerem o material genético e a doadora temporária de útero que estabeleça, previamente, a respectiva relação de filiação.
Não se descarta, ainda, a possibilidade da doação temporária de útero pactuada entre a gestante substituta e parceiros homossexuais. Nesse caso, o material genético provirá de somente um dos parceiros da relação homoafetiva, estabelecendo-se a paternidade, exclusivamente, socioafetiva em relação ao parceiro que não forneceu o sêmen. Nessas circunstâncias, aumenta a relevância do contrato e do consentimento informado de todas as partes para evitar eventuais confusões em relação ao estado de filiação.
Existe, ainda, o que se chama de coparentalidade, derivada da gestação compartilhada, também autorizada pela Resolução 2.013/13. Nessa modalidade familiar, dois casais homossexuais, de sexos opostos, celebram acordo visando a troca de material genético, sendo que a criança assim gerada frequentará ambas as famílias. Também nesse caso é fundamental a informação e contrato que estabeleça as relações de parentesco geradas a partir da transação de materiais genéticos.
III.5. ADOÇÃO
De acordo com o autor Jorge Fujita:
“A adoção é vínculo pelo qual se promove, mediante sentença judicial constitutiva, o ingresso de uma pessoa, menor ou maior de idade, capaz ou incapaz, como filho na família do adotante, independentemente da existência entre elas de uma relação parental consanguínea ou afim, desfrutando o adotando de todos os direitos e deveres inerentes à filiação.”
Conforme se salientou, anteriormente, o filho adotado, atualmente, possui exatamente o mesmo status que os filhos naturais para todo e qualquer fim. A adoção, portanto, é modalidade de constituição familiar sedimentada no afeto e no amor, uma vez que, respaldado na autodeterminação e na liberdade, o adotante, em virtude do sentimento que alimenta, oferece os meios materiais e afetivos para que o adotando desenvolva plenamente suas potencialidades e sua personalidade[xx]. Além disso, ao contrário do que se verificava no Código Civil de 1.916, tanto a adoção de menores quanto de maiores de idade depende de procedimento judicial. Contudo, caso qualquer parente reclame o menor, a tutela preferirá à adoção, uma vez que, presumidamente, já está estabelecido o vínculo afetivo entre os parentes consanguíneos[xxi]. Deve-se ressaltar, ainda, que o ato de adoção, de acordo com o artigo 1.621, parágrafo 2º, do Código Civil, é irrevogável.
A Lei não traz condição quanto ao estado da pessoa no momento da adoção. Sendo assim, é, perfeitamente, possível a adoção monoparental, ou seja, feita por uma pessoa que não é casada ou não vive em união estável. Deve ser preservado, sobretudo, o melhor interesse do menor, possuindo, o adotante, condições para o adequado exercício do poder familiar e para propiciar o pleno desenvolvimento da personalidade do adotado sob o enfoque da felicidade e afetividade. Sendo assim, nada impede, ainda, que a adoção monoparental seja feita por pessoa homossexual.
Admite-se, ainda, a adoção unilateral, prevista, explicitamente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 41, parágrafo primeiro:
§1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantém-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.
Portanto, nesse caso, é rompido o vínculo de filiação com apenas um dos pais, que vem a ser substituído pelo adotante para todos os fins.
III.5.1. ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS
Alguns doutrinadores, como Regina Beatriz Tavares, posicionam-se contrariamente à adoção por parceiros homossexuais. Argumenta que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 42, parágrafo 2º, apenas autoriza a adoção por ambos os cônjuges ou concubinos, desde que um deles tenha, pelo menos, vinte e um anos de idade, comprovada a estabilidade familiar. Além disso, aponta para o artigo 1.622 do Código Civil, que estabelece que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou viverem em união estável”.
Ocorre que em vista de recentes decisões do Supremo Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Conselho Nacional de Justiça, estes argumentos perderam sua força. Afinal, atualmente, de acordo com a jurisprudência e Resolução do Conselho Nacional de Justiça, não apenas é admitida a união estável entre parceiros homoafetivos como também o casamento. Nesse sentido, nada impede que os adotantes vivessem em união estável ou fossem casados.
A Constituição ou a Lei não impedem, em dispositivo algum, a adoção por parceiros homossexuais. O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem, na verdade, outros requisitos, estes, sim, relevantes. Referidos diplomas legais determinam que a adoção seja efetuada tendo em vista o benefício do menor e que seja fundada em motivos legítimos. Considera-se beneficiado o menor quando é atendido o melhor interesse do menor no que se refere à ordem pessoal, moral e afetiva.
Não compreender a matéria sobre este prisma significa estar fadado à contradição. Afinal, se é verdade que um indivíduo homossexual pode adotar sozinho, uma criança, não faz sentido que este e seu parceiro não possam adota-la conjuntamente. A realidade é que, na prática, já existem muitos menores vivendo em famílias homoparentais, seja em virtude de o genitor, após separação, ter assumida sua orientação sexual e se unido à pessoa do mesmo sexo, seja pela utilização de métodos artificiais de fecundação. Sendo assim, estabelecido o vínculo afetivo e preservados os interesses fundamentais do menor, negar a homoparentalidade significa fomentar a discriminação e privar uma série de crianças que vivem na miséria de terem um lar estruturado[xxii].
Por fim, deve-se ressaltar que existem diversos estudos que demonstram que a orientação sexual dos pais não prejudica o desenvolvimento psíquico dos menores. Nesse sentido, resta concluir que a família homoparental deve receber a mesma proteção do Estado que receberia qualquer outra.
[i] MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 31-37.
[ii] ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 5-6.
[iii] Op. cit. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. p. 37-47.
[iv] MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 104-105.
[v] Op. cit. ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. p. 132-133.
[vi] DIAS, Maria Berenice; LARRATÉA, Roberta Vieira. A Constituicionalização das uniões homoafetivas. In: CHINELATO, Silmara Juny de Andrade; FUJITA, Jorge; SIMÃO, José Fernando; ZUCCHI, Maria Cristina. (org.). O direito de família no terceiro milênio: Estudos em homenagem a Álvaro Villaça Azevedo. Atlas. 2010. p. 372-373.
[vii] LAGRASTA NETO, Caetano. Direito de Família. Malheiros: São Paulo. s.d. p. 133.
[viii] MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 112.
[ix] MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 113-117.
[x] FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. In: CHINELATO, Silmara Juny de Andrade; SIMÃO, José Fernando; ZUCCHI, Maria Cristina. (org.). O direito de família no terceiro milênio: Estudos em homenagem a Álvaro Villaça Azevedo. Atlas. 2010. p. 372-373.
[xi] Op. cit. ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. p. 156-158.
[xii] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 474-475.
[xiii] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 482.
[xiv] Op. cit. ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. p. 179.
[xv] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 484.
[xvi] Op. cit. ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. p. 17.
[xvii] ANDRADE, Ronaldo Alves de. Reflexos jurídicos na filiação afetiva decorrentes do padrastio e do madrastio. In: CHINELATO, Silmara Juny de Andrade; SIMÃO, José Fernando; ZUCCHI, Maria Cristina. (org.). O direito de família no terceiro milênio: Estudos em homenagem a Álvaro Villaça Azevedo. Atlas. 2010. p. 505-520.
[xviii] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 472-473.
[xix] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 478-479.
[xx] Op. cit. FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. p. 476.
[xxi] Op. cit. ALMEIDA, José Luiz gavião de. Direito Civil: Família. p. 21.
[xxii] MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 170-176.
advogada atuante na área cível, graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito da Propriedade Intelectual pelo Centro de Extensão Universitária, em convênio com à Universidad Austral de Buenos Aires, pós-graduada em Direito Empresarial pela GVlaw, Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, e mestre em Direito Internacional Privado pela Università Degli Studi di Roma - La Sapienza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NICODEMOS, Erika Cassandra de. Direito de família contemporâneo: conceito de família e nova filiação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2014, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38098/direito-de-familia-contemporaneo-conceito-de-familia-e-nova-filiacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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