O horizonte de preocupações de Hannah Arendt estende-se sobre noções caras a filosofia e ciência política no que tange o âmbito de relações humanas nos espaços públicos. Agregado ao fato de a autora de Entre o Passado e o Futuro ter experimentado as angústias de um período totalitário na Alemanha nazista, o fenômeno da violência é marca reiterada em várias obras da autora, destacando-se as obras Sobre a Revolução, As origens do totalitarismo e um pequeno tratado ensaístico intitulado Sobre a Violência.
Pretende-se nesse breve estudo, abordar duas noções que exercem funções capitais no âmbito de pensamento político de Hannah Arendt, quais sejam a própria noção de política e a noção de violência. Abordar-se-á, fundamentalmente, as obras Sobre a Revolução e Sobre a Violência de H. Arendt, bem como a sua renomada obra ensaística Entre o Passado e o Futuro onde a noção de política é trabalhada com realce.
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Política e Violência possuem estatutos teóricos distintos em Hannah Arendt. Posicionam-se antagonicamente no campo da filosofia política. Na Introdução da obra Sobre a Revolução, Hannah Arendt argumenta que “onde a violência impera absoluta, como por exemplo, nos campos de concentração dos regimes totalitários, não só as leis – les lois se taisent [as leis se calam], como colocou a Revolução Francesa –, mas tudo e todos devem quedar em silêncio” (ARENDT, 2011, p. 44). Essa dissertação prossegue com um arremate esclarecedor acerca da natureza do homem:
É por causa desse silêncio que a violência é um fenômeno marginal na esfera política; pois o homem, como ser político, é dotado do poder de fala. As duas famosas definições de homem dadas por Aristóteles – o homem como ser político e ser dotado de linguagem – se complementam mutuamente e ambas remetem à mesma experiência na vida da polis grega (ARENDT, 2011, p. 44).
À semelhança da passagem acima, tal qual “o poder e a autoridade não são iguais, como tampouco são iguais o poder e a violência”(ARENDT, 2011, p. 233) confirmam a nítida diferença entre política e violência. Desse modo, Arendt parece engajar-se no resgate teórico acerca da política desenvolvida pela filosofia antiga, principalmente aquela arquitetada por Aristóteles. A violência em sua pura manifestação é destituída daquilo que fundamenta propriamente a natureza humana, a saber, a liberdade. A dignidade do espaço próprio do político ou da compreensão teórica acerca da Política é, para H. Arendt, a liberdade. Sem a liberdade, “a vida política seria destituída de significado” (ARENDT, 1979, p. 192). À vista disso, a teoria política de H. Arendt centra-se na premissa categórica segundo a qual a “raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação” (Idem).
De fato, Hannah Arendt parece empreender via distinta da tradição filosófica do século XIX que associa o Poder, a Política, o Estado enquanto status político de um povo, para com a noção de violência ou detenção do monopólio legítimo da Violência.[1] Se H. Arendt interpreta a vida política dos gregos, particularmente na formulação esquadrinhada por Aristóteles, como o espaço de convívio entre homens (os cidadãos da polis), a saber, os homens livres e iguais voltados para a ação política do viver em isonomia (ισονομια) – igualdade perante a lei – e em isegoria (ισηγορια) – igualdade/liberdade de fala –, a violência é deslocada para o âmbito da pré-política, para uma espécie de “estado de natureza”,[2] ou dos espaços aquém da política, dado que desprovida de fala, linguagem, articulação e igualdade, a violência constitui-se em uma relação crua de imposição e opressão.
É preciso frisar, nessa via, portanto, que embora fenômenos distintos, na medida da exposição teórica inserta na Sobre a Revolução, Hannah Arendt pondera, por outro lado, que a violência não se distancia dos projetos revolucionários de emancipação soberana dos povos, como visto nas paradigmáticas Revoluções Americana e Francesa no interior das quais houve o recurso aos implementos que propiciaram o uso da violência. O ponto de vista transversal proposto por Arendt, em relação à tradição do pensamento político, desloca a primazia da violência ou o seu uso legítimo pelo Político, para a perspectiva de um uso efêmero, imediatizado, não esgotado no seio de deliberações (espaço da política), cuja função desempenha o intento primordial de ascensão dos excluídos – no caso “[...] o espectro das imensas multidões de pobres que todas as revoluções visavam libertar [...]” (ARENDT, 2011, p. 281-2) – para o espaço de convívio propriamente político.
O Poder, para Arendt denota uma confluência de forças, de cunho numérico, um destacamento de indivíduos, que agem em conformidade a um fim. A violência por sua vez, em geral, impõe a ordem de um singular, de um individuo, e perdura no tempo até enquanto uma nova violência se interponha em contraposição.
De fato, uma das mais óbvias distinções entre poder e violência é que o poder sempre depende dos números, enquanto a violência, até certo ponto, pode operar sem eles, porque se assenta em implementos. [...]. A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema de violência é o Um contra Todos. E essa última nunca é possível sem instrumentos (ARENDT, 2010, p. 58).
Para Arendt, o acordo de vontades surge como elemento essencial do Político. Sendo a violência um ato ríspido, nu e cru, pode, todavia, contribuir ao concerto de um destacamento de pessoas através do qual o grupo exerce o seu poder, tal como acontecido no seio das Revoluções, onde as “forças nuas e cruas da escassez e da necessidade”, notadamente na Revolução Francesa, implementaram mecanismos de violência para inaugurar um novo momento situacional político, em termos gerais: as condições fáticas para a realização do âmbito de exercício da liberdade política, que “significa [em termos gerais], o direito de ‘ser participante no governo’ – afora isso, não é nada” (ARENDT, 2011, p. 278).
A violência, para Arendt, é a expansão do vigor[3] a partir da inserção de uma lógica instrumental. Nesse sentido, formula-se uma conclusão singular, anteriormente detectada: o poder pode manifestar violência, ao passo que a violência, embora prima facie não manifeste poder, pode relacionar-se com ele[4]. Desse modo, Arendt argumenta que:
Onde os comandos não são mais obedecidos, os meios de violência são inúteis e a questão dessa obediência não é decidida pela relação de mando e obediência, mas pela opinião e, por certo, pelo número daqueles que a compartilham. Tudo depende do poder por trás da violência (ARENDT, 2010, pp. 65-6).
Hannah Arendt conclui que
O poder é de fato a essência de todo governo, e não a violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada (ARENDT, 2010, p. 68).
A preponderância da violência na política, por outro lado, gera uma condição de perpétua instabilidade e de retornos cada vez maiores ao uso da violência, até se tornar cotidiana. Na história das revoluções percebeu-se uma relação de justaposição entre a utilização da violência e os fins aos quais ela fora empregada. Uma “racionalidade” intrínseca, quando não utilizada como um fim em si mesmo (o terror, simplesmente), emana dos implementos da violência quando ela se mantém untada a um fim outro que não ela mesma, um fim que desobstrua, atento às manifestações revolucionárias, os canais de “fala” e de relação política dos homens.
A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as conseqüências eventuais do que estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almejar objetivos de curto prazo (ARENDT, 2010, p. 99).
A efemeridade do uso de implementos da violência constitui qualidade inerente à racionalidade do uso. Hannah Arendt toma o caráter teleológico de ação como mecanismo de aferição da racionalidade, sendo que toda ação tem por fim uma necessidade premente: a ação do corpo à sua provisão material; a ação política, a implementação da fala e da articulação. Com efeito, o uso capitaneado da violência no bojo das revoluções paradigmáticas tomadas por Arendt, valeram-se da pretensão política (justificativa) de constituir ou fundar o espaço político.
A ênfase que deve ser dada a partir das considerações de Hannah Arendt é considerar, aprioristicamente, o homem como um ser político por excelência – aquele que possui a capacidade de agir e de buscar o eterno começo de algo novo. A ação, como ressaltado anteriormente, é a conditio sine qua non a consubstanciação da liberdade não se expressa. Liberdade, ao entender de Hannah Arendt, não consiste em poder interno, de valoração subjetiva, cuja essência recôndita se manifesta na facticidade das ações a partir da autonomia (livre valoração) de um sujeito motivado por razões particulares.[5]
O que faz do homem um ser político é sua faculdade para a ação; ela o capacita a reunir-se a seus pares, a agir em concerto e a almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente, deixando de lado os desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido este dom – o de aventurar-se em algo novo (ARENDT, 2010, p. 102)
Como conseqüência derivada desse posicionamento, nem o poder nem a violência são fenômenos naturais compreendidos a partir da perspectiva de manifestação de um processo vital, como coloca Arendt. Ambos pertencem à esfera do político, emergem da faculdade do homem de agir e de buscar o começo, ou da sua disposição para recomeçar.
O poder e a violência – elementos indiscutíveis da esfera política – permanecem em latência, cabendo à emergência e à contingência das ações humanas determinarem o seu florescimento, bem como a tônica de seus termos: ação concertada (poder), ação predominantemente vigorosa. Conquanto essa relação de imbricamento apareça, estabelece-se, todavia, entre o poder e a violência, uma relação de exclusão; à medida que o poder aumenta, tem-se o aumento ou a manutenção da capacidade do homem de agir em concerto sem a necessidade da violência. Reduzida essa aptidão ao concerto, surge a violência como recurso imediato à manutenção da autoridade, não mais do poder. Este se perdeu no momento em que a instrumentalidade fez-se presente através da violência.
O homem é o ser, na argumentação de Hannah Arendt, através do qual a ação manifesta-se em sua pureza, em sua novidade mais límpida. Ser humano e ser livre são termos de uma mesma predicação. Assim, a Autora desenvolve na obra Entre o Passado e o Futuro:
Todo ato, considerado não da perspectiva do agente, mas do processo em cujo quadro de referência ele ocorre e cujo automatismo ele interrompe, é um ‘milagre’ – isto é, algo que não poderia ser esperado. Se é verdade que ação e começo são essencialmente idênticos, segue-se que uma capacidade de realizar milagres deve ser incluída também na gama das faculdades humanas (ARENDT, 1979, p. 218).
A idéia central da Revolução é a de ser um ato fundador, aquele que instaura o novo começo de uma realidade política que garante o espaço onde a liberdade possa se manifestar. Nesse contexto, se a liberdade e início se associam em boa medida à Revolução, e se esta é um fenômeno da Modernidade, a experiência revolucionária só é possível quando introduz o elemento volitivo do querer revolucionário de um novo começo. Essa novidade da emergência da liberdade, nitidamente presente no objetivo da Revolução Francesa, fora fenômeno desconhecido na antiguidade.
No bojo da proposta restou-nos a conclusão evidente que liberdade e violência são noções antagônicas na filosofia política de Hannah Arendt. O eventual imbricamento histórico apontado pela Autora a propósito das Revoluções Americana e Francesa remetem a uma reflexão acerca da instrumentalidade da ação política para um movimento fundante onde a violência pode ser justificada enquanto meio transitório. A distinção entre a liberdade e necessidade repousa sobre a idéia de que os interesses privados, que seguem a lógica da vida da necessidade, não podem invadir a esfera pública da liberdade. A violência em sua pureza se distancia de um exercício político de liberdade na medida em que inibe a fala e a ação, exceto justificada por fins fundantes como as Revoluções manifestaram.
Por outro vértice, a questão problema não se situa na distinção entre essas duas esferas, mas na articulação ou mediação de uma pela outra, na medida em que a violência se torna necessária para o processo de “emancipação” ou “libertação”, de modo que a liberdade possa ser elemento nodal das questões sociais da vida privada, politizando, assim, a vida da necessidade e de todos os processos vitais ou âmbitos de existência material.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
___. Sobre a Violência. Trad. André de Macedo Duarte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
___. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São Paulo, Perspectiva, 1979.
SCHMITT, Carl. Teoria do Partisan: um parêntese ao Conceito do Político. Trad Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany S. da Mota. São Paulo: Cultrix, [S.d.].
[1] Cf., a título de ilustração, Max Weber quando argumenta que “Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física” (WEBER, [S.d.], p. 56); Também Carl Schmitt ao consignar que “o que Lênin podia aprender com Causewitz, e minuciosamente aprendeu, não é apenas a célebre fórmula a respeito da guerra como a continuação da política. É o reconhecimento ulterior de que a distinção entre amigo e inimigo na era da revolução é essencial, determinando tanto a guerra quanto a política” (SCHMITT, 2008, p. 200).
[2] “Na medida em que a violência desempenha um papel predominante nas guerras e revoluções, ambas se dão fora da esfera política em termos estritos, a despeito de seu imenso papel na história documentada. Esse fato levou o século XVII, que teve seu próprio quinhão de guerras e revoluções, à hipótese de um estado pré-político, chamado ‘estado de natureza’, que, evidentemente, nunca teve a pretensão de remeter a um fato histórico” (ARENDT, 2011, p. 45).
[3] “O vigor, de modo inequívoco, designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferentes delas. [...]. É da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual” (ARENDT, 2010, p. 61).
[4] “O aspecto fundamental que pretendo ressaltar em meu comentário é que Arendt não se limitou a estabelecer a importante e polêmica distinção entre poder e violência, pois também pensou, a partir dessa distinção, que poder e violência sempre se relacionam entre si nas situações políticas concretas, aspecto para o qual não se tem atentado suficientemente na literatura secundária” (Ensaio Crítico em posfácio, de André Duarte, intitulado Poder e violência no pensamento político de Hannah Arendt: uma reconsideração. In: ARENDT, 2010, pp. 131-167)
[5] Hannah Arendt é antípoda, nesse ponto, da perspectiva liberal e de expressões filosóficas da vontade, máxime consolidada com Imannuel Kant e Jean-Jacques Rousseau, cujas preocupações, em consonância a proposta de emancipação do “Século das Luzes” – Aufklärung –, pretendeu conciliar a liberdade interna (maioridade da razão), na sua característica da autonomia da vontade (a chamada liberdade positiva), com a liberdade de ação externa compatível com livre agir dos outros, desde que essa ação não represente um impedimento ao meu agir (a chamada liberdade negativa). Por outro lado, Arendt identifica esse problema, que não havia despertado, pois, o interesse pelo problema da liberdade na Antiguidade, tendo o mesmo surgido tardiamente na filosofia, com Epicteto (o escravo-filósofo), como uma forma do eu se relacionar com uma realidade externa que lhe seria adversa, resultando então de um estranhamento do mundo. A liberdade aqui é pensada como interioridade, sendo este o único meio de fuga dos alienados ou excluídos dos espaços de dignidade cidadã “sentirem-se livres”, o que possibilitava aos homens serem escravos e livres ao mesmo tempo. Em outros termos, a liberdade em Epicteto resume-se a ser livre dos próprios desejos; a desejar somente aquilo que se pode obter, em oposição à concepção de que liberdade seja fazer tudo o que se deseja. É nítida a aproximação de Epicteto com a postura estóica (Cf. ARENDT, 1979).
Advogado e Professor Universitário das disciplinas de Filosofia do Direito, Direito Constitucional, e Direito Internacional (Público e Privado). Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTELLA, Marco Antonio. As noções de política e violência em Hannah Arendt Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38108/as-nocoes-de-politica-e-violencia-em-hannah-arendt. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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