RESUMO: Procura-se discutir neste trabalho a aplicação da Escuta Qualificada como ferramenta de efetivação dos direitos, com destaque para os direitos sociais, contextualizando-se a sua conceituação com a sua efetividade, notadamente com o direito pleiteado pelo cidadão ao mínimo existencial, lastreado no princípio da necessidade social. Essa nova ferramenta, surgida e introduzida nas políticas públicas nacionais, segundo o documento “HumanizaSUS - Política Nacional de Humanização: A humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS revela importância singular se considerarmos como escutar interpretar adequadamente o arcabouço de normas do sistema jurídico pátrio, para tornar efetiva a vontade do legislador constituinte no que diz respeito aos direitos sociais. Parte-se da premissa de que esses incrementos humanitários à políticas de gestão encontram consonância direta com os movimentos sociais em todo o mundo, todos surgidos por e em atenção aos ditames da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, bem como aos direitos fundamentais estampados na Carta Política de 1988, em que se invoca o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade. Encontra eco, também, no judiciário, o desenrolar da importância e da necessidade de dar resposta à sociedade, com critérios mais humanitários de resolução de disputas, em que se faz uso da “escuta ativa”, pelos centros de conciliação e mediação, consubstanciado no documento denominado “Políticas Públicas em Resolução Adequada de Disputas (Res. 125/2010 – CNJ).
PALAVRAS-CHAVE: Escuta Qualificada; Escuta Ativa; Linguagem Comunicacional; Direitos Humanos; Dignidade da Pessoa Humana; Direitos Sociais; Mínimo Existencial; Ativismo Judicial.
ABSTRACT: An attempt to discuss in this paper the application of listening qualified as effective tool for human rights, with emphasis on social rights, contextualizing its conceptualization to its effectiveness, notably with the right claimed by the citizen to the existential minimum, ballasted in the principle of social necessity. This new tool, created and introduced the national public policies, according to the document "HumanizaSUS-national policy of Humanisation: the humanization as guiding axis attention and management practices in all instances of SUS reveals importance if we consider singular like listening to interpret adequately the legal system standards framework, designed to make effective constituent legislator's wishes as regards social rights. Part of the premise that these humanitarian increments to find direct line management policies with social movements around the world, all arising from and in attention to the dictates of the Universal Declaration of human rights of 1948 as well as fundamental rights printed on Letter 1988 policy, which invokes the principle of dignity of the human person, equality and solidarity. Is echoed also in the judiciary, the importance and necessity of responding to society, with more humanitarian criteria of dispute resolution, which makes use of the "active listening", by conciliation and mediation centers, embodied in the document called "public policies in Proper Resolution of Disputes (Res. 125/2010-CNJ).
KEY-WORDS: Keywords For This Page: Listen Qualified; Active Listening; Communicational Language; Human Rights; Dignity of the human person; Social Rights; Existential Minimum; Judicial Activism; Principle of Social necessity.
SUMÁRIO. 1. A Linguagem Comunicacional do Direito. 2. O Ministério da Saúde e a Política Nacional de Humanização - Escuta Qualificada. 2.1. O CNJ e as novas demandas do Poder Judiciário – A Escuta Ativa. 3. O Mínimo Existencial na Constituição Federal de 1988. 3.1. O Judiciário e o denominado ativismo judicial. 4. – Conclusão. 5. Referências.
1. A LINGUAGEM COMUNICACIONAL DO DIREITO
Sabemos que o direito é um produto do engenho humano. Foi construído para organizar o homem em sociedade e, portanto, está a serviço do homem.
Quando o homem, na antiguidade, conformava-se com o seu destino porque seus desígnios determinava o seu destino, encontrou na idade média outras contingências que o fez ser precavido: conheceu o risco, por meio das grandes navegações. Agora, carregava o destino nas próprias mãos e seu racionalismo demandava providências. Haveria de se reunir para buscar a proteção contra tais os riscos e contingências que só fizeram aumentar, com a revolução industrial, produzindo legiões de incapazes e desamparados.
BARROSO (2002, p. 76-77), em seu discurso acerca da liberdade do homem, o autor afirma que a liberdade é inerente à condição humana e independe do ordenamento jurídico, sendo que cada pessoa tem uma dimensão peculiar. Afirma que uma pessoa pode sentir-se livre em um Estado opressor e sentir-se oprimida onde se prega a liberdade. Segundo a filosofia, afirma que liberdade “no sentido aristotélico, traduz o poder de autodeterminação, de deliberação sem interferências externas”. Em oposição a essa concepção, afirma que a liberdade pode, também, para alguns, não ser produto de uma escolha pessoal, mas aquela apresentada por um contexto externo a ele, como a natureza (estóicos), cultural (Hegel) ou econômico-social (Max). Numa concepção pós-moderna, liberdade ainda pode ser o poder de escolha entre diversas possibilidades, condicionadas ao contexto social como causas naturais, psíquicas, culturais e econômicas e históricas, citando Marilena Chauí (Convite à filosofia, 1999, pp 357 e ss) “ a liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.”
Sabemos que o Estado Liberal, o homem conquistou certo grau de liberdade, estabelecendo-se o status negativus, isto é, a não intervenção do Estado nos direitos individuais do homem, para evoluirmos para o Estado Social, garantindo por meio de sua intervenção os direitos de igualdade e solidariedade, status positivus (Alexy, 2012, p. 258-259).
Grau, invoca Von lhering, para quem o direito:
[...] é um sistema de organização social: sistema de normas (princípios) que ordena – para o fim de assegurá-la – a preservação das condições de existência do homem em sociedade (forma que visa a assegurar as condições de vida da sociedade, instrumentada pelo poder coativo do Estado.(apud Grau, 2011, pg. 25)
Amartia Zen ilustra esse discurso com uma citação do poeta Willian Cowper (Apud Zen, 2012, p. 378):
Freedom has a thousand charms to show,
That slaves, howe’er contented, never knows.
Ou seja, a liberdade tem mil encantos a mostrar,/ que os escravos, por mais satisfeitos, nunca há de provar.
É relevante os postulados de Zen, especificamente quando trata do aspecto da condição de agente (agency aspect) do indivíduo (Zen, 2012, pg. 33-34). Para ele
[...] O agente às vezes é empregado na literatura sobre economia e teoria dos jogos em referência a uma pessoa que está agindo em nome de outra (talvez sendo acionada por um ‘mandante’), e cujas realizações devem ser avaliadas à luz dos objetivos da outra pessoa (o mandante). Estou usando o termo agente não nesse sentido, mas em sua acepção mais antiga – e ‘mais grandiosa’ – de alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de as avaliarmos ou não também segundo algum critério externo. Este estudo ocupa-se particularmente do papel da condição de agente do indivíduo como membro público e como participante de ações econômicas, sociais e políticas (interagindo no mercado e até mesmo envolvendo-se, direta ou indiretamente, em atividades individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas.
Conclui-se que a liberdade do homem está diretamente relacionada à sua efetiva participação nos processos políticos, econômicos e sociais.
Portanto, é preciso decodificar o ordenamento jurídico, ao ponto de integrar o ser humano no seu objetivo maior, fazendo com que os operadores do direito interpretem os postulados à luz da vontade do legislador e não em decorrência de políticas oportunistas, que desviam do seu curso os programas constitucionais votados para a dignidade da pessoa humana e da sua efetiva participação.
Quando um usuário do sistema de saúde pleiteia um tratamento ou internação depara-se com as amarras da burocracia da máquina administrativa, fazendo com sua pretensão não se concretize. Isso vem demonstrar que o operador do direito e o servidor, investido no cargo público, por concurso de provas e títulos e que jurou cumprir os regulamentos e a Constituição, não deram ou foram impedidos de dar a devida atenção ao usuário, seja por falta de uma “escuta qualificada” ou uma “escuta ativa “, seja por despreparo para a carreira pública e o não sacerdócio do atendimento ao público,seja porque estão de mãos atadas mediante tantas e tantas instruções normativas e ordens de serviço que desvirtuam o espírito da lei.
Em regra, os regramentos estabelecidos por um órgão público nem sempre estão em sintonia com o que estabeleceu a Constituição Federal, de forma que torna-se prejudicado o direito do usuário pela simples regulamentação distorcida ou interpretação equivocada do ordenamento jurídico.
É o que ocorre com o sistema de saúde em que, por falta de aparelhamento suficiente para dar conta da demanda, é que se constatam as irregularidades frequentemente veiculadas pelos meios de comunicação.
Da mesma forma, outros direitos do cidadão encontram-se prejudicados pelos mesmos motivos já assinalados, obrigando o cidadão a procurar guarida no Poder Judiciário.
No momento em que o órgão público se vê forçado a prestar a assistência ou conceder um benefício é que ocorrem as mudanças nas políticas públicas com uma resposta à sociedade de que o Poder Público está agindo.
O que se constata, então, é que o ordenamento jurídico é um só, isto é, são normas infraconstitucionais aplicadas ao usuário, em cumprimento a um comando constitucional.
Mas essa regulamentação já foi feita ao arrepio da Carta Magna porque, ao argumento de que se deva observar o princípio da Reserva do Possível, ou que a conjuntura econômica não permite gastos maiores, e pelo fato de que o governo detém maioria no Congresso.
Sendo assim, quem sai no prejuízo é o cidadão que, indignado, vai pleitear a reparação no judiciário, lastreado nos postulados constitucionais como os previstos no Artigo 6º, da CF/88, verbis:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência social aos desamparados, na forma da Constituição
Para tanto, a linguagem jurídica deve ser simplificada ao ponto de tornar claro a intenção do constituinte, dela aproximando e não afastando o destinatário dos mandamentos constitucionais.
Vivemos a era dos direitos sociais e dos princípios, como uma reparação estatal do reconhecimento de que o mundo mudou e exige do Estado um compromisso com os direitos humanos, propalados nos tratados internacionais, antes em total letargia e que começa a despertar.
A Carta Política de 1988, que proclamou, no Art. 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
1- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
2- garantir o desenvolvimento nacional e
3- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Esse ideário foi fortemente prejudicado pelo neoliberalismo e globalização que testemunhamos, desde os anos 80, do século passado, testemunhando retrocessos nos objetivos.
Por conta disso, fez-se notar a interferência, cada vez maior, do Poder Judiciário na pacificação social, haja vista que, como guardião da Constituição, exerce o seu papel na medida em que os poderes constituídos deixam de concretizar as políticas públicas idealizadas pelo legislador constituinte, percebendo-se, muito frequentemente, a edição de leis ordinárias regulamentadoras do Comando Maior, numa flagrante anacronismo entre o que previu o constituinte e o que estabeleceu a lei ordinária. Isso quando, ao menos se tenta regulamentar um comando constitucional. No mais das vezes, institutos estão ainda ser regulamentados, o que ensejavam as frequentes interposição de Mandados de Injunção e mais recentemente as constantes Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Advogamos, aqui, a postura do cidadão desassistido que, ante o modelo de proteção social estabelecido pelo legislador constituinte, deve se portar como um agente modificador do status quo, de que tratava Zen, na medida em que, insurgindo-se contra a falta de efetivação de seus direitos sociais, deve organizar-se, compelido o Poder Público a concretizar o status positivus, do qual se referiu Alexy, agindo com consciência na busca da sua liberdade, como postulou Barroso.
Decodificar a linguagem jurídica significa, portanto, torná-la acessível ao cidadão, notadamente o desafortunado, a fim de exigir do Estado, sua prestação.
Nas lições de Vilanova (2005), o direito é linguagem comunicacional:
A linguagem funciona em várias direções. Ora expressa estados interiores do sujeito, ora expressa situações e objetos que compõem a textura do mundo externo. Nem sempre funciona com fim cognoscitivo, como linguagem-de-objetos. Às vezes é veículo de ordens, no sentido genérico, pretendendo alternar o estado de coisas; outras vezes, faltando a suficiente parcela de experiência dos objetos, é transmissora de perguntas. Outras vezes, ainda, nem é instrumento de conhecimento nem de ordens ou imperativos, nem de perguntas, mas meramente expressional da alteração emocional que o trato com os objetos provoca no sujeito[..].
Ditas tais palavras, pelo festejado autor, conclui-se que o ordenamento jurídico é um produto do engenho humano, em prol do ser humano, fazendo com que se alterem as condições de vida de uma sociedade, trazendo-lhe o bem-estar social.
Vê-se, daí, a importância da interpretação da letra da lei, de tal forma que a não disposição em interpretar fidedignamente a norma jurídica conforme idealizou o legislador ordinário, traduz-se tal conduta como a falta da “escuta qualificada” do ordenamento jurídico, da letra da lei.
Na introdução da sua obra, Rodríguez (2011) dirigindo-se aos professores já argumenta:”...o operador do Direito é também um profissional da comunicação...”.
Sabemos que a Constituição Federal de 1988, inovou no trato da questão dos direitos sociais, mas o legislador ordinário postou-se na contramarcha do legislador constituinte na medida em que obrigou o Poder Judiciário a intervir nas Políticas Públicas, em obediência ao comando constitucional que o elege guardião da Carta Magna.
Prova disso é o número elevado de demandas judiciais a compelir os poderes constituídos a cumprirem o seu papel, constatando-se que, no Brasil, testemunhamos o número alarmante de cerca de 80 milhões de ações judiciais (BRASIL-c, 2011).
Outro não é o motivo senão a falta de compromisso com os programas estampados na Constituição Federal, assoberbando as pautas das varas comuns, dos juizados especiais e das defensorias públicas.
Rodríguez (2011) postula que já se foi o tempo do Direito como processo apenas empírico e naturalista, pois,
As mais diversas áreas de seu estudo estão progredindo cada vez mais para acrescentar valores e possibilidades de argumentação em casa processo e até mesmo conceito da ciência jurídica. Os conceitos têm-se flexibilizado para poder trabalhar paradigmas humanos e acrescentar carga valorativa a seu processo de aplicação.
Logo, como veremos adiante, da mesma forma que o Ministério da Saúde estabeleceu a ferramenta da Escuta Qualificada aos usuários do SUS, e o Poder Judiciário idealizou a Escuta Ativa nas resoluções de conflitos, queremos crer que tais designações nada mais são de que uma nova interpretação do ordenamento jurídico, de forma mais precisa e objetiva, no sentido de entregar ao cidadão a sua prestação a quem faz jus.
Carvalho (2005, p. 135), que ao tratar do Direito, e não da ciência do Direito, afirma que:
“O Direito é um sistema comunicacional muito complexo e especializado. A sua complexidade foi aumentando à medida em que os sistemas sociais particulares ( comunidades ) também o foram, o que propiciou as autonomização de diversos subsistemas de diversos subsistemas parciais.”
Afirma este autor que a característica que diferencia o direito dos demais sistemas comunicacionais é o fato de emitir mensagens sempre na função prescritiva ou ordenadora de condutas. É o fato de serem emissoras de mensagens imperativas e prescritivas.
Socorre-se dos postulados de Lhumann, para afirmar que o direito é um sistema complexo, dinâmico e autopoiético (2005, p.135).
Claro está que, ao legislador constituinte, cabe estabelecer o direito posto. Aos operadores do direito, a sua execução, sua efetividade.
Se esse legislador constituinte expede leis, nas palavras do referido autor, emite mensagens que possuem função prescritiva ou emissoras de condutas, devem ser cumpridas porque está na norma, não cabendo ao intérprete destoar o espírito da lei, ainda que goze certo limite de discricionariedade para aplicação da lei ao caso concreto, conforme a Lei de Introdução ao Ordenamento Jurídico, verbis:
Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Insista-se, neste discurso, interpretar corretamente significa escutar qualitativamente a vontade do homem, objeto de todo o engenho dos sistemas jurídicos. Escutar é cumprir o ordenamento jurídico segundo o objeto da sua criação – o homem.
Conforme Carvalho (2005, p.142), postula que
[...] os órgãos jurídicos, antes de mais nada, comunicações jurídicas também. Ser juiz não é ser uma entidade biológica, composta de sangue, ossos e tecidos. É ter uma função atribuída pelo sistema comunicacional do direito, através de atos comunicativos jurídicos que outorgam competência para a expedição de outros atos comunicativos jurídico. Portanto, verificamos que o sistema jurídico é formado por atos comunicativos e esses próprios atos comunicam também quem os enviou; a figura do emissor(órgão competente) é a fonte formal que introduz normas no ordenamento.
A teoria autopoiética de Lhumann, invocada por Carvalho, mais nos faz convencer de que, de fato, interpretar o ordenamento jurídico segundo vislumbrou o legislador constituinte é processar a efetivação da norma jurídica, visto que é o ser humano que faz girar essa roda do ordenamento jurídico.
Assim, se um juiz, ou um administrador, não interpreta o ordenamento no sentido de conceder um benefício assistencial, por exemplo, quando os requisitos foram implementados, mas outras barreiras de acesso impedem a concretização desse direito, estamos diante da não escuta qualificada porquanto o aparelho estatal não propiciou ao cidadão o alcance de sua pretensão por questões outras que não a norma jurídica.
Oportuna a cátedra de D’Ávila Lopes (2000, pg. 101), em artigo sobre Hermenêutica Jurídica, postula,
A sujeição do juiz à lei já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, seja qual for o seu significado, senão sujeição à lei enquanto válida. A validade, por outro lado, já não é um dogma ligado à simples existência formal da lei, senão uma qualidade contingente ligada à coerência de seus significados, coerência mais ou menos discutível e sempre remetida à valorização do juiz. Dessa maneira, a aplicação da lei é um juízo sobre ela, tarefa que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de escolher o único significado válido para o caso. O juiz nunca deve ter uma opção acrítica e incondicionada.
Nesse sentido, a importância do estudo da teoria hermenêutica jurídica de Gadamer é fundamental para a análise da nova visão do Direito contemporâneo, pois, como ele afirmou, a hermenêutica jurídica permitirá uma aplicação mais justa do Direito, “afinando la sensibilidad jurídica que ha guiado la interpretación”
A autora, Socorrendo-se das lições de Gadamer, explica que o processo de compreensão de um texto, na hermenêutica jurídica, se caracteriza por sua circularidade, visto que tem seu começo na pré-compreensão que o intérprete tem do texto, e que depois resta modificada. Chama isso de “círculo hermenêutico” (2000, pg. 106). Nesse sentido, a real finalidade é “encontrar o Direito (seu sentido) na aplicação “produtiva” da norma já que o processo hermenêutico [...] exigirá que o intérprete permaneça aberto para “escutar” a mensagem da norma [...]. (D’Ávila Lopes; 2000, pg. 109)
Se entendermos que o grito dos desassistidos obrigou o homem a forjar um modelo de proteção como mínimo assistencial, poderemos aceitar a ideia de que a contrapartida do mandamento constitucional de proteção social é o esse grito que não se faz ouvir. E esse grito que não se faz ouvir pode ser traduzido como escuta qualificada, de tal forma que não se escuta porque se resiste a cumprir ordenamento jurídico.
Passemos, a seguir, a tratar da denominada Escuta Qualificada, conforme idealizada pelo Ministério da Saúde, mais especificamente no âmbito do SUS, a fim de tentarmos, dentro da concepção estabelecida por esse órgão, encontrar elementos para fundir as noções de linguagem comunicacional do Direito com a referida locução.
2. O MINISTÉRIO DA SAÚDE E A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO – ESCUTA QUALIFICADA
Esta expressão, cunhada pelo Ministério da Saúde, que lançou, em 2004, o documento A Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual elenca, entre seus princípios, a Escuta Qualificada.
Conforme o Documento Básico Para Gestores e Trabalhadores do SUS, que integra o Caderno de Textos – HumanizaSUS (p.4)[1],
Um dos aspectos que mais tem chamado a atenção, quando da avaliação dos serviços, é o despreparo dos profissionais e demais trabalhadores para lidar com a dimensão subjetiva que toda prática de saúde supõe. Ligado a esse aspecto, um outro que se destaca é a presença de modelos de gestão centralizados e verticais, desapropriando o trabalhador de seu próprio processo de trabalho.
Com isso, deram início ao projeto que visa a mudanças no modo de gestão e atenção, segundo explica o documento
O cenário indica, então, a necessidade de mudanças. Mudanças no modelo de atenção que não se farão sem mudanças no modelo de gestão. Queremos um SUS com essas mudanças. Para isso, criamos no SUS a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde – HumanizaSUS.
Por humanização entendemos a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão.
Entre os parâmetros da Política, destaca-se (fls.13), a Escuta Qualificada
[...]
Implementação de Sistemas de escuta qualificada para usuários e trabalhadores, com garantia de análise e encaminhamentos a partir dos problemas apresentados;
[...]
Segundo Jader (2011,p.15), o tema da humanização da política de gestão e de acolhimento do SUS tem sido objeto de debates, tendo se iniciado, efetivamente, um estudo por ocasião IX Conferência Nacional de Saúde, salientando que “por longo tempo na história, a administração da coisa pública e as relações interpessoais canalizaram-se para a valorização da doença e não da pessoa doente”. Assim, postula que o grande mérito da Política Nacional de Humanização (PNH), está em seu principal objetivo que é o “apropriado acolhimento e escuta qualificada de seus atores”.
Jader (2011, p. 40), postula que a escuta e o diálogo são habilidades próprias dos seres humanos e que há mais de dois mil anos antes de Cristo, Davi, conversando com Deus, clamava “Escuta, Senhor, a minha voz: Estejam alertas os Teus ouvidos às minhas súplicas”[...]. Diz o autor que a citação mostra a ânsia de ser ouvido pelo outro por aquilo que se expressa e é.
Entretanto, afirma, pode-se inferir que há muito a aprender sobre esse processo como um todo.
O autor cita Mariotti (Apud Jader 2011, p.40) para quem “dialogar é, antes de tudo, aprender a ouvir. O outro precisa ser ouvido até o fim daquilo que ele tem a dizer sem que o interrompamos, seja para concordar, seja para discordar do que ele fala”.
Diz o autor que não sabemos ouvir. Que precisamos ouvir a nós mesmos. Se alguém nos fala, em vez de escutar até o fim, começa-se a assemelhar com as referências próprias passadas. Além do mais, impõe-se ainda um grande questionamento: até que ponto tais posturas profissionais abalam a comunicação com nossos usuários, colegas e comunidade?
Invoca Sclavi (Apud Jader, 2011, p. 43), para estabelecer sete regras, na escuta ativa como ferramenta de gestão social:
- não ter pressa de chegar a conclusões. As conclusões são a parte mais efêmera da pesquisa;
- aquilo que você vê depende de seu ponto de vista. Para conseguir se dar conta de seu ponto de vista, você deve mudar de ponto de vista;
- se você quer compreender o que o outro está dizendo, deve assumir que ele tem razão e pedir-lhe para que o ajude a ver as coisas e os eventos pela perspectiva dele;
- as emoções são instrumentos de conhecimento fundamentais, se soubermos compreender sua linguagem. Elas não te informam sobre o que você vê, mas sobre o seu jeito de observar. O código delas é relacional e analógico;
- um bom ouvinte é um explorador de mundos possíveis. Os sinais mais importantes são aqueles que se apresentam como insignificantes e desconfortáveis, marginais, porque incongruentes com SUS próprias certezas;
- um bom ouvinte assimila prazerosamente os paradoxos do pensamento e da comunicação. Enfrenta o dissenso como ocasião para exercitar-se em um campo que o apaixona: a gestão criativa do conflito;
- para tornar-se especialista na arte de escutar, precisa-se adotar uma metodologia humorística. Mas quando você aprende a escutar, o humor apresenta-se naturalmente.
Essa ferramenta, a escuta qualificada, ainda não foi assimilada por todos os atores das políticas públicas, o que implica dizer que deve se expandir para os outros campos, notadamente para o campo a assistência social, e mais especificamente para o pretendente ao benefício de prestação continuada que, no mais das vezes, vê-se impedido de exercer o seu direito tendo em vista as amarras da administração em impedir a concessão desse benefício, ao argumento de não satisfação dos requisitos estabelecidos em lei.
2.1. O CNJ E AS NOVAS DEMANDAS DO PODER JUDICIÁRIO – ESCUTA ATIVA
Sabidamente, atualmente, há um grande movimento no Poder Judiciário no sentido de encontrar fórmulas alternativas de resolução de conflitos, objetivando tornar mais célere a prestação jurisdicional, e que desde a década de 90, diversos projetos-pilotos foram implementados visando a autocomposição em diversos campos como “mediação civil, mediação comunitária, mediação vítima-ofensor (ou mediação penal), conciliação previdenciária, conciliação em desapropriações, entre muitos outros, bem como práticas autocompositivas inominadas como oficinas para dependentes químicos, grupos de apoio e oficinas para prevenção de violência doméstica, oficina de habilidades emocionais para divorciados, oficinas de prevenção de sobre-endividamento, entre outra”[2]
Resultou, daí, a Resolução n. 125 do E. Conselho Nacional de Justiça que, entre outros objetivos, estabeleceu: disseminar a cultura da pacificação social e estimular a prestação de serviços autocompositivos de qualidade (art. 2º); incentivar os tribunais a e organizarem e planejarem programas amplos de autocomposição (art. 4º); reafirmar a unção de agente apoiador da implantação de políticas públicas do CNJ (art. 3º)[3]
Afirma André Gomma de Azevedo (2013, pg. 28):
“As pesquisas sobre o Poder Judiciário têm apontado que o jurisdicionado percebe os tribunais como locais onde estes terão impostas sobre si decisões ou sentença. De fato, e esta tem sido também a posição da doutrina, sustenta-se que de um lado cresce a percepção de que o Estado tem falhado na sua missão pacificadora em razão de fatores como a sobrecarga dos tribunais, as elevadas despesas com os litígios e o excessivo formalismo processual; por outro lado, tem-se aceitado o fato de que o escopo social maus elevado das atividades jurídicas do Estado é harmonizar a sociedade mediante critérios justos, e, ao mesmo tempo, apregoa-se “uma tendência quanto aos escopos do processo e do exercício da jurisdição, que é o abandono de fórmulas exclusivamente positivadas”.[4]
Percebe-se, assim, que o interesse maior do jurisdicionado é, efetivamente, com o resultado final do processo de resolução do conflito e não precisamente o acesso ao Poder Judiciário, numa relação processual.
Logo, havendo alguma participação do jurisdicionado na busca da solução do conflito, em que se dê a oportunidade de ele, jurisdicionado, optar por uma modalidade de processo de resolução desse conflito, tanto melhor para ambas as partes. De um lado, a satisfação do usuário, de outro, a economia processual para o Estado[5].
Tarso Genro, no prefácio da primeira edição do Manual de Mediação Judicial (Brasília – DF – Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, pg. 13), afirma:
“O acesso à Justiça deve, sob o prisma da autocomposição, estimular, difundir e educar o usuário a melhor resolver conflitos por meio de ações comunicativas. Passa-se a compreender o usuário do Poder Judiciário como não apenas aquele que, por um motivo ou outro, encontra-se em um dos polos de uma relação jurídica processual – o usuário do poder judiciário é também todo e qualquer ser humano que possa aprender a melhor resolver seus conflitos, por meio de comunicações eficientes – estimuladas por terceiros, como na mediação ou diretamente, como na negociação. O verdadeiro acesso à justiça abrange não apenas a prevenção e reparação de direitos, mas a realização de soluções negociadas e o fomento da mobilização da sociedade para que possa participar ativamente dos procedimentos de resolução de disputas como de seus resultados”.
Na linguagem da mediação judicial, possui o nome de “escuta ativa”, conforme estabelecido no capítulo referente ao rapport – estabelecimento de uma relação de confiança – estratégias de atuação do mediador (Manual de Mediação Judicial, pg. 140):
“Ouvir as partes ativamente – Ouvir ativamente significa escutar e entender o que está sendo dito sem se deixar influenciar por pensamentos judicantes ou que contenham juízos de valor – ao mesmo tempo deve o ouvinte demonstrar, inclusive por linguagem corporal, que está prestando atenção ao que está sendo dito. Isso não quer dizer que o mediador deva concordar com a parte. Recomenda-se que apenas deixe claro que a mensagem que foi passada foi compreendida. Muitas vezes, uma parte que se apresenta inicialmente com semblante fechado e postura não cooperativa pode adotar uma postura bastante produtiva, apenas porque sentiu que foi ouvida com atenção. Isso porque ser ouvido significa ser levado a sério.
Além disso, assevera o Manual (p.140) que é ouvindo ativamente que poderá o mediador identificar as questões mais importantes, as emoções e a dinâmica do conflito – o que faz com que as intervenções do mediador sejam muito mais eficientes e oportunas: “Quando a parte que está falando sente que não está sendo interrompida ou questionada, isso a deixa mais à vontade e faz com que ela consiga articular melhor a informação que deseja transmitir”(idem, p. 140).
Assinala, ainda, o Manual (p. 141) que as partes veem o mediador como uma espécie de “modelo de comunicação” que influencia como elas devem se comportar no processo de resolução de disputa. Explica que se o mediador é atencioso e busca compreender as partes, acaba por proporcionar um ambiente cooperativo das partes entre si. “O mediador deve se preocupar em expandir a forma como as partes enxergam o conflito, fazendo com que cada uma delas entenda a outra parte, estimulando o poder que entre elas têm de resolver o conflito de forma autônoma”.
Conclui-se que, tal como ocorreu no Ministério da Saúde, que introduziu uma ferramenta nova na tentativa de solucionar o grande problema brasileiro no campo da saúde pública, política essa que demandará exercício exaustivo e permanente dos atores envolvidos, da mesma forma o Poder Judiciário busca alternativas para solução de conflitos tendo em vista o alto volume de demandas a assoberbarem os fóruns deste País.
E a escuta ativa, idealizada pelo CNJ, desponta como um dos objetivos principais a serem observados nos centros de conciliação, arbitragem e mediação espalhados ao longo deste país continente.
3. O MÍNIMO EXISTENCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Estabelece o Artigo 203, da Constituição Federal, caput:
A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
[...]
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei
Aí, já encontramos a primeira barreira de acesso ao desassistido na medida em que, embora o caput determine a concessão da assistência social a quem dela necessitar, será o legislador infraconstitucional que regulará a concessão do benefício.
Ocorre que, ao regulamentar, cria uma armadilha ao pretendente na medida em que impõe restrições que vão contra o que estabelece o direito fundamental insculpido no artigo 6º, verbis:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à família e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
O caráter restritivo dar-se-á com a sua regulamentação, que adveio com a Lei n. 8.742/93, que estabelece:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-Mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
Note-se que a restrição de falamos encontra-se no parágrafo 3º da Lei que impõe a condição de um hipossuficiente ostentar renda per capita inferior a um salário mínimo, o que contraria o disposto do caput do art. 203, que deixa cristalino a condição de necessidade, sem alusão alguma à restrição imposta pelo referido parágrafo. Ao fazê-lo, cria uma legião de desassistidos.
Lecionam Sposati e Gomes (SPOSATI, 2008), haver um verdadeiro estigma, um preconceito, no próprio sistema da seguridade da seguridade social que impede a melhor acolhida ao desassistido, no que tange à concessão do BPC, visto que o próprio servidor público o considera um benefício haja vista não haver a contrapartida da contribuição, a exemplo dos segurados contribuintes.
Este é apenas um exemplo de como o legislador ordinário se distancia dos objetivos trazidos pelo legislador ordinário, especialmente nos objetivos estampados no Artigo 3º, CF/88, verbis:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
[...]
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais
Foi por causa de distorções dessa natureza que, com a instalação dos juizados especiais federais, em 2002, uma avalanche de ações previdenciárias superlotaram as varas-gabinete, numa demonstração de repúdio com o modelo neoliberação de gestão pública, sendo necessária a intervenção do judiciário para disciplinar as relações entre o usuário e o INSS, gestor dos benefícios tanto contributivos quando os não contributivos, como é o caso do BPC.
Sabe-se que, para a concessão desse benefício, é necessário que o interessado submeta-se a uma avaliação socioeconômica, para o caso dos idosos e, para o caso de deficientes avaliação social e médica.
Aí reside a importância de se tratar de escuta qualificada, já que nesse juízo, o julgador tem a oportunidade de ficar frente a frente com o jurisdicionado para declarar, pessoalmente, ser procedente e improcedente a demanda.
Sabemos que muita diferença existe entre um julgamento circunscrito aos autos processuais, como sempre foi a praxe, quando um juiz analisa a pretensão do autor, em uma vara previdenciária da Justiça Federal comum ou de em grau de recurso.
A realidade causa no julgador sensação: a de ter contato com dureza da miséria, seus percalços e as limitações de um hipossuficiente.
Os juizados foram concebidos sob os princípios da autocomposição, equidade, oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, segundo os preceitos das Leis n. 9.099/95 e 10.259/2001.
E aqui não está em discussão se, hodiernamente, os juizados mantém ou perderam o seu objeto. Trata-se, tão somente, de estabelecer diferenças substanciais na forma de acolhimento e julgamento das demandas, dado o contexto em que se situa no ordenamento jurídico, o instituto do BPC.
Não foi por outro motivo que, passados alguns anos da instalação dos juizados especiais, já começaram a ser divulgadas as súmulas das Turmas Recursais, da Turma Nacional de Uniformização, do próprio Superior Tribunal de Justiça e até do Supremo Tribunal Federal, no trato com a questão do mínimo existencial, dando nova interpretação sobre os requisitos de renda per capita, de grupo familiar e de conceituação de deficiência.
Merece destaque, também, a publicação da CIF, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2001, é considerada um marco no debate sobre deficiência. O documento é uma revisão da International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (ICIDH), primeira tentativa da OMS de organizar uma linguagem universal sobre lesões e deficiências, publicada em 1980 e a ICDH2 em 1998. Dentre as várias modificações propostas pela CIF, uma das mais desafiantes foi o novo significado do termo "deficiência". De uma categoria estritamente biomédica na ICIDH, deficiência assumiu um caráter também sociológico e político.
Merece destaque, ainda, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ocorrida em Nova York, em 2007, quando, ali, foram positivados os conceitos de deficiência e incapacidade, segundo se pode ver do teor do Decreto n. 6.949/2009, que promulgou referida Convenção, antes aprovada pelo Decreto Legislativo n.186/2008:
Art. 1o A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, apensos por cópia ao presente Decreto, serão executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contém.
Assim, o Decreto 6.214/2007 estabeleceu a avaliação social para o reconhecimento inicial do direito ao Benefício de Prestação Continuada às pessoas com deficiência, conforme a redação do artigo 16:
A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de incapacidade, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde – CIF.
Esclarece, ainda, que
“A avaliação médica da deficiência e do grau de incapacidade considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades”. (parágrafo 2º).
Podemos, então, afirmar que as políticas públicas encabeçadas pelo Poder Executivo, no que tange às prestações sociais, ficaram aquém das expectativas da população, restando aos jurisdicionados e aos operadores do direito uma única alternativa: discutir seus direitos na esfera judicial até porque o Artigo 5º, XXXV, da Constituição garante tal prerrogativa
A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito
É de conhecimento geral as deficiências até então testemunhadas pela sociedade, no que tange a atendimento nos postos do INSS, em que já se registradas as mais dantescas situações como assassinato de peritos médicos, nos postos de atendimento.
Não por outro motivo que, após o advento do Decreto 6.214/07 e suas alterações posteriores, a autarquia previdenciária tratou de abrir concurso público para contratação de centenas de assistentes sociais em todo o País, a fim de fazer frente à demanda.
O que importa, aqui, é demonstrar que a escuta qualificada está intimamente ligada à gestão de políticas públicas, com destaque especial para o PBC já que, fora do campo do Ministério da Saúde, deve ter o mesmo tratamento porque acolher, dar atenção e identificar uma eventual patologia incapacitante ou outros elementos do contexto social não está adstrito, apenas à saúde, tendo grande relevância no campo assistencial, pouco explorada, até por ser tratado o BPC por gestores como um benefício intruso já que, dentro de um seguridade social que privilegia o segurado contribuinte, certamente o BPC é relegado à categoria de caridade e, portanto, sem maior relevância.
Sposati e Gomes mostram-se céticas, inclusive, no que tange à extensão da ferramenta escuta qualificada a ser adotada pelo MPAS
No modelo atual, a escuta qualificada, latu sensu, não poderia ser implantada tendo em vista que, como integrante do MPAS, a Assistência é vista como intrusa e por via de consequência o BPC, já que o Ministério prioriza a previdência social que tem caráter securitário, isto é, contributivo, formado pelos cidadãos que estão no mercado formal de trabalho. Os demais são incapazes, sujeitos apenas à caridade. (GOMES in SPOSATI, 2008, p.191-195)
Talvez, se a gestão desse benefício assistencial tivesse ficado a cargo do Ministério da Assistência Social, com uma equipe multidisciplinar própria, totalmente divorciado da gestão de benefícios contributivos, os embates não seriam tão gritantes com o que se verifica.
Há que se perguntar: a formação de um médico do Sistema Único de Saúde, pratica anamnese[6] com enfoques díspares do que estabelece a nova ordem advinda pela CIF, caso tenha que fazer avaliação médica, pelo INSS, em benefícios previdenciários ou assistenciais?
Da mesma forma, formação de Assistente Social impõe cátedra dispare, pelo Conselho Federal de Serviço Social – CFESS, nas grades curriculares que impeçam de praticar o acolhimento e a escuta qualificada simplesmente pelo fato de haverem optado por ser servidores do sistema de saúde, em vez da assistência?
A CIF estabeleceu a obrigatoriedade de um novo olhar sobre os pacien tes, segurados ou assistidos, não importa se o examinando é um paciente do SUS ou se está pleiteando um benefício, pelo INSS.
Para o BPC, especificamente, tratou o MDS, em Portaria Conjunta com o INSS, de n. 01/2005, de substituir o antigo acróstico “Avaliemos”, pelo documento intitulado “Avaliação de Pessoas com Deficiência para acesso ao Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – Um novo instrumento baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde”. Publicado em 2007 (Brasil, 2007- c).
Vejamos o que estabelece referido documento, à fls. 42:
Esses predicados determinaram o abandono do “modelo médico” em que a incapacidade é entendida como um problema da pessoa, consequência direta de uma doença, de um traumatismo ou de outro problema de saúde, que necessita de cuidados médicos fornecidos sob a forma de tratamento individual por profissionais. O tratamento da incapacidade visa à cura, à adaptação do indivíduo ou à alteração de seu comportamento. A incapacidade não é um atributo apenas da pessoa, mas é consequência de várias relações e situações presentes, onde fatores ambientais, abrangendo aspectos sociais, familiares, físicos e econômicos ganham relevância. Busca-se uma abordagem que ofereça uma visão das diversas dimensões que envolvem a temática buscando a integração das várias perspectivas de funcionalidade.
Concluem-se os argumentos deste capítulo com a seguinte indagação: Se Collen (Apud Jader, 2011, p 42) nos informa que “fazer escuta de qualidade apresenta certo grau de dificuldade perante os atores da saúde, por ela demandar atenção dobrada e tempo, em virtude do volume de pacientes nos serviços e a falta de capacitação desses trabalhadores, além do problema do modelo médico-centrado e a expectativa das pessoas”, como praticá-la em sede de autarquia previdenciária, que sofre dos mesmos males ?
São enormes os desafios que foram lançados, após o advento da CIF, e já eram grandes sem ela.
Resta saber como o poder público e o judiciário administrarão tais questões.
O tempo dirá.
3.1. O JUDICIÁRIO E O DENOMINADO ATIVISMO JUDICIAL
Segundo Amaro e França (2012, pg. 30) citando Saul Coutinho Leal, o termo ativismo judicial’ foi pela primeira vez empregado no ano de 1947, em um artigo jornalístico escrito por Arthur Schlesinger Junior, para a revista Fortune, intitulado ‘The Supreme Court: 1947’. “A matéria tinha por objeto analisar os julgamentos da Suprema Corte em relação às políticas públicas implementadas pelo Presidente Roosevelt, na época do New Deal”.
Para a autora, é equivocada a ideia de que ativismo seja neces sariamente uma distorção das atribuições do Poder Judiciário, visto que o próprio contexto histórico em que a Expressão inicialmente foi utilizada contribui para a constatação de que “ela não foi cunhada para designar uma distorção , mas sim uma característica específica dos órgãos julgadores no exercício de suas funções, especialmente a de proceder uma leitura substancialista do texto constitucional, visando a efetiva implementação dos objetivos ali estabelecidos”.(Amaro e França, 2012, pg. 31)
Conforme a autora (2012, pg. 28), no Brasil, a exemplo do que ocorre em todo o mundo, multiplicam-se casos em que o judiciário é instado a se declarar a respeito dos mais diversos temas, fazendo com que intensifiquem os debates doutrinários e jurisprudenciais e discussão acerca dos limites da interferência em um poder sobre o outro. Cita Barroso:
(...) No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia em desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment.(Barroso, 2010, 389-390)
Afirma a autora, que a doutrina se divide a respeito do tema ativismo judicial, defendendo alguns que se trata de uma verdadeira distorção, quando um poder invade a competência de outro, com é o posicionamento de Ramos (Apud Amaro e França, 2012, pg. 30):
(...) Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflito de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento aos demais poderes.( Ramos, 2010, pg. 129)
Por outro lado, há aqueles que defendem a intervenção do judiciário como vontade do próprio legislador constituinte, como é o caso de Barroso para quem
(...) A Idea de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes. A postura ativista manifesta-se por meio de diferentes condutas, que incluem: a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; c) imposição de condutas ou abstensões ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas (Barroso, 2010, pg. 394).
Portanto, desde a CF/88, por trazer novos desafios aos legisladores e doutrinadores, muito se discute e se discutirá acerca de ativismo judicial, seja ele de caráter “positivo” ou” negativo” como afirma Ives Gandra Martins (BRASIL, 2011-b) ou forte ou fraco como pensa Eduardo Manera (BRASIL, 2011b), ou como defende Mendes (BRASIL, 2011b) para quem o judiciário apenas encontra na própria constituição o seu papel de “disciplinador” das relações institucionais.
Mendes, no XIV Congresso e Direito Tributário (BRASIL, 2011b), afirmou que os direitos e garantias individuais, assim como os direitos sociais são direitos fundamentais e não normas programáticas. A articulação institucional desafia a aplicação do direito. A forma de organizar a sociedade em 1988, passou a exigir mais e mais a participação do judiciário como demonstram os cerca de 80 milhões de processos em tramitação no judiciário brasileiro. Desde 2007 que o STF não recebe menos de cem mil processo ao ano.
Quando Advogado Geral da união, entre 2000 e 2002, defendiam a criação dos juizados especiais federais. Salientou que é preciso reconstruir a visão sobre a atuação do judiciário, diante das demandas na atualidade.
Antes, no Mandado de Injunção, conclui-se que ao judiciário apenas faria juízo de constatação, o que resultou em frustração. Apesar de o judiciário constatar a, o legislativo não se sensibilizava.
O STF faz experimentos com técnicas alternativas de resolução de conflitos. O ativismo de que fala não é aquele de conotação pejorativa, mas sim de disciplinar as instituições ao legislador de 1988 (Brasil, 2011-b).
4. CONCLUSÃO
Procurou-se demonstrar, neste trabalho que a interpretação do ordena mento jurídico, segundo a linguagem comunicacional do direito, pressupõe escutar a norma posta segundo a vontade do legislador, ser desviar-se dessa trajetória no momento em que o legislador ordinário se debruça sobre um comando constitucional para regulamentar.
Tentou-se demonstrar que a escuta qualificada, cunhada primeiramente pelo Ministério da Saúde, também denominada pelo CJN de escuta ativa, desvelam que a sociedade brasileira clama por direitos sociais efetivados segundo estabeleceu a Constituição Cidadã.
Tentou-se demonstrar que os direitos dos desassistidos, traduzidos no BPC – Benefício de Prestação Continuada encontra barreiras de acesso que se podem traduzir como a interpretação equivocada do ordenamento jurídico, uma vez que, sendo o Artigo 6º da Constituição Federal, norma fundamental, em que prevê a assistência social, na contramarcha da vontade legislativa do constituinte se coloca a Lei 8.742/93, que regulamenta esse direito, estampado Artigo 203.
Patente está que os direitos sociais, inseridos no Capítulo II, do Título II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais estabelece sintonia com o Capítulo VIII, da Ordem Social.
A incongruência referiu-se ao papel do legislador ordinário na medida em que criou requisitos restritivos que não correspondem com o que estabelece o Artigo 6º.
Nesse sentido é que escuta qualificada ou escuta ativa tem o condão de obrigar o intérprete a buscar o sentido da lei e seus fins conforme preceitua a Lei de Introdução ao Ordenamento Jurídico pátrio.
Procurou-se demonstrar que as medicas que vem sendo tomadas pelo Executivo, em especial o Ministério da Saúde, com sua Política Nacional de Humanização, assim como o MPAS com novos critérios de avaliação de incapacidade, nos benefícios assistenciais, apontam para uma nova etapa na geração de direitos sociais, mediante políticas públicas mais humanitárias.
Também cumpre destacar o papel do judiciário que, por meio da escuta ativa, procurar a pacificação dos conflitos, com um critério mais objetivo de decodificação da pretensão dos jurisdicionados.
São desafios enormes cumprir o que determina a Constituição Federal, segundo o princípio da necessidade social, segundo os objetivos estampados no Artigo 3º da Constituição, no artigo 6º, Caput, e também no artigo 203.
5. REFERÊNCIAS:
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7- _______. XV Congresso Internacional de Direito Tributário Disponível realizado pela ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário, realizado de 16 a 19 de agosto de 2011, ocorrido em Belo Horizonte, MG. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=DhhsIBrVKE8. Acesso em 28.1.2014.
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[1] Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_textos_cartilhas_politica_humanizacao.pdf
[2] Manual de Mediação Judicial/André Gomma de Azevedo (organizador); André Gomma de Azevedo...[et al.]. – 1ª Ed. Brasília: FUB. CEAD. 2013.
[3] Op.cit, pg. 27;
[4] Esclarece o autor que tomou por empréstimo a afirmação de Cândido Rangel Dinamarco (A Instrumentalidade do Processo. 8ª Ed. São Paulo. 2000. Pg. 157): “A expressão original do autor é ‘abandono de fórmulas exclusivamente jurídicas’, contudo, entende-se mais adequada a indicação de que a autocomposição, com sua adequada técnica, consiste em um instrumento jurídico. Isto porque se consideram as novas concepções de Direito apresentadas contemporaneamente por diversos autores, os quais se destaca Boaventura de Sousa Santos, segundo o qual ‘concebe-se o direito como o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados justificáveis num dado grupo, que contribuem para identificação e prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada (SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988, p.72)”
[5] Prossegue o autor (op.cit,pg. 28): “De fato, o que se nota como marca característica do movimento de acesso à justiça, como vem sendo atualmente concebido, consiste precisamente em administrar-se o sistema público de resolução de conflitos como se este fosse legitimado principalmente pela satisfação do jurisdicionado com a condução e com o resultado final de seu processo”.
[6] Anamnese (do grego ana, trazer de novo e mnesis, memória) é uma entrevista realizada pelo profissional de saúde ao seu paciente, que tem a intenção de ser um ponto inicial no diagnóstico de uma doença ou patologia. Em outras palavras, é uma entrevista que busca relembrar todos os fatos que se relacionam com a doença e à pessoa doente. A anamnese é também referenciada como Anamnese Corporal, Ficha de Anamnese ou Anamnese Corporal Completa.Fonte http://pt.wikipedia.org/wiki/Anamnese_(saúde)
Advogado, Mestrando em Direito Previdenciário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Luiz Gonzaga da Cunha. Vertentes da escuta qualificada na perspectiva do direito fundamental ao mínimo existencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2014, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38381/vertentes-da-escuta-qualificada-na-perspectiva-do-direito-fundamental-ao-minimo-existencial. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
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