RESUMO: O presente trabalho expõe a autonomia da vontade, a obrigatoriedade e a relatividade dos contratos_ clássicos princípios contratuais do Código Civil de 1916_ sob uma nova perspectiva. As mudanças nos padrões de vida, a transformação da sociedade e o advento do Estado Social comprometido com políticas públicas e com medidas sociais, ao longo do século XX, provocaram a solidez dos valores éticos de cooperação e de boa-fé, levando à implantação da verdadeira igualdade: a material. Essas metamorfoses, juntamente com o nascimento da Constituição Federal de 1988, foram fundamentais para o lançamento do Código Civil de 2002, revestido de cariz social.
Palavras- Chave: Princípios. Contrato. Código Civil de 2002. Boa-fé.
INTRODUÇÃO
O Código Civil de 1916, notadamente individualista, autoritário e positivista, albergou, em sua estrutura contratual, os seguintes princípios: da relatividade contratual, da obrigatoriedade e da autonomia de vontade.
Todo o trabalho desenvolvido pelos elaboradores do Código se espelhava no modo de vida da época. A sociedade patriarcal valorizava extremamente o respeito às leis e à autonomia de vontade. Dessa forma, aquelas deveriam ser rigorosamente observadas, em sua literalidade, o que culminou no fracasso das relações jurídicas. A classe das camadas desvalidas, menos privilegiada, ficou desprotegida diante de uma igualdade formal, que não atendia às reais necessidades e aos clamores da sociedade, como um todo.
A falta de relativização na aplicação desses princípios gerou este rigoroso e absoluto formalismo, que não atendeu nem satisfez à justiça e à utilidade social.
O advento da Revolução Industrial e a implantação do Estado Social trouxeram consigo uma nova concepção de contrato, o social, que não se preocupa apenas com a formação de uma relação jurídica, mas, antes de tudo, com o atendimento dos deveres acessórios e instrumentais, entre eles, o de informação, de cooperação e lealdade entre os pactuantes.
A nova ordem vela pela adoção da chamada ponderação de princípios_ necessário instrumento, no momento de se decidir o caso concreto.
O novo Código Civil de 2002 posicionou, com destaque, os princípios sociais, entre eles o da boa- fé objetiva, a qual possui grande enfoque e repercussão, sobremaneira na esfera contratual.
1 CONTRATOS
1.1 Conceito
Contrato, do latim contractu, é trato com. É a combinação de interesses de pessoas sobre determinada coisa. É “o acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um Direito”, como exclamado pelo Mestre Washington de Barros Monteiro.[1]
Conforme Orlando Gomes, contrato é "o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam."[2]
Segundo os dizeres de Maria Helena, o "contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial."[3]
Assevera, ainda, Caio Mário da Silva Pereira, que "contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos", ou sinteticamente, é o "acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos".[4]
Modernamente, o magistrado paulista Rogério Marrone de Castro Sampaio, atesta que "entende-se por contrato o negócio jurídico (espécie de ato jurídico) bilateral que tem por finalidade gerar obrigações entre as partes".[5]
Como explana Enzo Roppo:
Contrato, portanto, é um conceito jurídico que exprime uma realidade econômica subjacente na vida cotidiana da sociedade. Os conceitos juridicos- e o contrato não poderia ser diferente_ exprimem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de relações, de situações econômico- sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental.[6]
Complementa Luiz Guilherme Loureiro afirmando que:
Dessa forma, quando a prestação for suscetível de avaliação econômica e corresponda a um interesse, ainda que não patrimonial, há um contrato. Aquele que celebra um contrato, portanto, pode ter em mente um interesse não econômico( mas sim ideal, moral, cultural), mas o resultado objetivo constitui sempre em uma obrigação de fazer ou dar qualquer coisa suscetível de expressão pecuniária e, portanto, em uma forma de circulação de riqueza. Se tal não se verifica, não existe contrato.[7]
Além das condições para sua validade, quais sejam, a capacidade e a legitimidade das partes, o objeto lícito, possível e determinado ou determinável e ter forma prescrita ou não defesa em lei, o instituto do direito contratual é recheado de princípios que lhe dão suporte.
Na fase Estado liberal, foram construídos os três grandes princípios que nos acostumamos a tratar, que aprendemos e ensinamos, equivocadamente, como se eles permanecessem prestantes a resolver as situações negociais que estamos vivenciando neste final de século. Esses princípios regulam a relação negocial clássica, que se dá pela manifestação de vontade livre de quem propõe e a manifestação livre de quem aceita. Portanto, o acordo, o consentimento, é o substrato a que se voltam esses princípios, que são: o princípio da autonomia da vontade, o princípio da relatividade subjetiva e o princípio da obrigatoriedade, ou seja, para celebrar contratos, as pessoas são livres, o que se acorda se torna obrigatório para as partes e não ultrapassa as pessoas das partes do negócio jurídico. Na época em que vivemos, esses princípios não mais conseguem ser respostas adequadas. O atual estágio de complexidade das relações negociais convida a repensar, a afirmar outros princípios, ao lado desses ou em contraposição a esses, que melhor possam explicar os fenômenos negociais do final do século XX.[8]
Ocorre que os aludidos princípios vieram a conviver com os emergentes, na nova ordem jurídica renovada. Assim, a autonomia privada, como principio da liberdade contratual, cede um espaço à boa-fé objetiva, aos bons costumes e ao dirigismo público; a pacta sunt servanda, é atenuada em prol do equilíbrio econômico do contrato; e, alfim, a relatividade dos efeitos dos contratos é atingida pelo princípio da função social do contrato.
Esses novos princípios, que estão marcando muito mais fortemente a natureza e a essência dos contratos são: o princípio da função social, da igualdade material, da boa-fé objetiva e da equivalência. Ou seja, superamos o plano contratual liberal que é baseado na igualdade formal, portanto, na abstração dos sujeitos, e agora o contratual se volta para verificar, efetivamente, qual a força ou o poder de cada parte contratante. Por isso que o princípio da função social supera a função individual que esteve presente no modelo liberal. Além da função individual, que evidentemente continua, nenhum contrato pode ser admitido, se lesar os interesses e valores constitucionalmente estabelecidos, como por exemplo o da justiça social, que é o macro princípio estabelecido no artigo 170 da Constituição. Ele não está posto ali por acaso. É uma justiça promotora - ao contrário da justiça dos gregos, que é a justiça comutativa, que foi sempre chamada "a justiça própria dos contratos" e reabsorvida pelo modelo liberal - que leva em consideração a desigualdade real das pessoas. Por isso que a Constituição, em tais momentos, tanto no artigo primeiro quanto no artigo 170, se refere à necessidade de redução das desigualdades econômicas e sociais. Nenhuma atividade negocial pode ser realizada em afronta ao princípio da justiça social, que contém necessariamente conceitos indeterminados, que vão ser preenchidos em cada momento pela mediação concretizadora julgadora, que seja capaz de captar os valores de uma determinada sociedade.[9]
Destaca César Fiúza que
O Direito dos Contratos passa a ser encarado não mais sob o prisma do liberalismo, como fenômenos da vontade, mas antes como fenômeno econômico-social, oriundos das mais diversas necessidades humanas. A vontade que era fonte, passou a ser veio condutor. [10]
Enfim, vivencia-se uma etapa em que os valores preponderantes de outrora cedem espaço para a ingerência de valores mais sociais, mais focados na coletividade, mais preocupados em atingir o bem social, o interesse público.
1.2 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
O princípio da autonomia da vontade tem, como fundamento, a plena liberdade de contratar, o poder dos contratantes de regular os almejos mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. As partes têm a faculdade de celebrar ou não os contratos, sem qualquer ingerência do Estado.
Carlos Alberto da Mota Pinto esclarece que o princípio da autonomia é o poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de autogoverno de sua esfera jurídica.[11]
Para Cláudia Lima Marques,
A ideia de autonomia da vontade "está estritamente ligada à ideia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito.[12]
Assim, os fundamentos filosóficos do contrato eram alicerçados pelo liberalismo econômico e respondiam adequadamente às exigências do mercado existente no início do século XIX. Com efeito, a doutrina do laissez faire-laissez passer permitia ao individualismo absorver a justiça e a solidariedade social. Consequentemente, um contrato livremente pactuado era considerado justo, e o Estado não podia intervir na relação privada formada pelas partes. Considerava-se, então, que apenas as iniciativas individuais plenamente espontâneas poderiam assegurar a prosperidade e o equilíbrio geral: a mão invisível do mercado, como o controle do preço pela livre concorrência, era a fonte de harmonia natural que toda intervenção estatal poderia falsear.[13]
O legislador do Código Civil de 2002, consciente de que o contrato estava longe de ser uma imagem de harmonia social, significando, outrossim, uma relação de forças econômicas, a sede de uma luta de interesses, uma relação de conflitos, um campo de tensões econômicas por causa das desigualdades entre as partes contratantes, preencheu o novo Código de valores que visam a proteger a parte mais vulnerável da relação contratual.
De fato, fica resguardada a liberdade de contratar, todavia esta somente tem validade, nos dias hodiernos, se o consentimento for, de fato, autônomo, surgido de uma relação que transpareça, desde o seu início até o seu fim, paritária, a partir da situação fática dos contratantes e exercida dentro dos limites da função social do contrato.
O professor Caio Mário da Silva Pereira, quando discute acerca da participação e controle do Estado nas relações privadas, expõe que:
O Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivo, seja com a adoção de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça.[14]
E arremata o mestre civilista:
O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das ideias dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em benefício do princípio da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado esforço, e tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a "publicação do contrato". Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade de fazê-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresariais; a regulamentação dos meios de produção e distribuição e sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobre os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela intenção das partes, já que a vontade destas obrigatoriamente tem de submeter-se àquele.[15]
Dessa forma, demonstra-se que o ideal de ampla liberdade e autonomia não se faz mais absoluto dentro do novo Código Civil. Primeiramente, como bem demonstra Iacyr de Aguilar Vieira:
Esta sofre limitações em seus três aspectos: na liberdade de contratar, diante das necessidades elementares da vida moderna que obrigam o indivíduo a celebrar contratos e contatos, geradores de direitos e de responsabilidade obrigacional, inclusive com a administração pública_ os chamados contratos ditados; na liberdade de escolher as partes com que contratar, que se vê também limitada principalmente pelos ditames constitucionais que protege os indivíduos contra as práticas discriminatórias; e na liberdade de estabelecer o conteúdo, a forma e os efeitos do contrato, diante das normas imperativas que permeiam as leis especiais, dos contratos estandardizados, das condições gerais de venda, enfim, do contrato de adesão, com as cláusulas predeterminadas unilateralmente.[16]
Hodiernamente, com o Estado social e intervencionista, não basta a vontade de contratar, esta vontade deve satisfazer a função social, fundar-se na boa-fé objetiva, não se chocar com o interesse público nem com os bons costumes.
Segundo Silvio Rodrigues “a ideia de ordem pública é constituída por aquele conjunto de interesses jurídicos e morais que incumbe à sociedade preservar. Por conseguinte, os princípios de ordem pública não podem ser alterados por convenção entre os particulares.”[17]
A autonomia da vontade é fundamental para a celebração do contrato, tendo a sua força eficácia e validade, quando em harmonia com as normas sociais, entre elas as de equilíbrio material entre as partes de uma relação.
1.3 PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DOS CONTRATOS
Orlando Gomes define que:
A força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários a sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos.[18]
Em linha de princípio, os indivíduos são livres para contratarem e se obrigarem como bem entenderem. Dessa forma, aquilo que espontaneamente se escolheu, gera lei entre as partes, portanto, as obrigações aceitas e pactuadas devem ser rigorosamente cumpridas. A sua não observância sujeita as partes às responsabilidades e à execução patrimonial contra o inadimplente.
De fato, o contrato só se extingue por mútuo entendimento; a resilição unilateral apenas é consentida nas situações em que a lei expressa ou implicitamente o permita e deve-se operar mediante denúncia notificada a outra parte.
A única limitação ao dever de cumprir o contrato, segundo a concepção clássica, é a escusa por caso fortuito ou força maior e a invocação do direito de arrependimento, quando esse fosse expressamente previsto pelos pactuantes.
Nos pensamentos de Pablo Stolze, “de nada valeria o negócio, se o acordo firmado entre os contratantes não tivesse força obrigatória.”[19]
Caio Mário afirma que “o princípio da força obrigatória do contrato significa, em essência, a irreversibilidade da palavra empenhada”[20], personificada pela máxima pacta sunt servanda( os pactos devem ser cumpridos), não podendo ser alterado, nem pelo juiz. Qualquer alteração ou modificação terá também de ser bilateral, em atenção à segurança jurídica.
Esta teoria, no Código Civil de 2002, foi mitigada com o advento da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, que outorga ao magistrado a possibilidade de revisão ou resolução contratual, em decorrência de causas supervenientes, imprevisíveis e imprevistas, que causem um disparate econômico na relação contratual, gerando uma onerosidade excessiva para, pelo menos, uma das partes, gerando um enriquecimento sem causa para outra.
O professor Orlando Gomes observa que “a ideia de imprevisão requer que a alteração das circunstâncias seja de tal ordem que a excessiva onerosidade da prestação não possa ser prevista."[21]
Tendo em vista os ensinamentos encimados, conclui-se que o princípio da obrigatoriedade é a exigência de cumprir com o pactuado, não sendo aceitável eximir-se da obrigação assumida. O instituto dos contratos de nada adiantaria se não fosse exigido o seu respeito e a sua obediência. Somente em excepcionais condições, como o da onerosidade excessiva, o contrato pode ser não exigível de imediato, sendo necessária a sua revisão, em virtude do rompimento no equilíbrio contratual.
1.4 PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS CONTRATOS
O presente princípio se sustenta na ideia de que os efeitos dos contratos só atingem e se produzem entre as partes pactuantes do contrato, não afetando terceiros nem seu patrimônio.
Essa premissa é consentânea com o modelo clássico de contrato, que se preocupava na realização das necessidades individuais e que, então, só produzia efeitos mediante quem integrava o acordo de vontades.
Tal visão restou enfraquecida no novo Código Civil, em decorrência da função social do contrato. Atualmente não se admite a preocupação contratual e a sua influência apenas no âmbito de quem contrata, mas daqueles que estão ao redor, de toda a coletividade, que de um modo ou de outro se interesse e é atingida pelo contrato, que deve sempre sobrepor o interesse público sobre o privado.
Assim tem entendido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
[...] o tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros – de modo positivo ou negativo –, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato [...].[22]
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka esclarece:
A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matrizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente individualista, de modo a atender aos ditames do interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e importando, ainda, em igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe seja igual para todos.[23]
Todos os princípios contratuais estão conectados ao respeito e à proteção da dignidade da pessoa humana, dando tutela jurídica aos contratantes, para que se efetivem a função social da propriedade, do contrato e a justiça social.
2.3 CONCEITO DE BOA- FÉ
O princípio da eticidade, um dos pilares do novo Código Civil brasileiro, é enraizado ao principio geral da boa-fé, que é valorizada em todo o sistema jurídico brasileiro civilista de 2002.
A boa-fé tem vários sentidos. Etimologicamente, vem de fides, do latim, que denota honestidade, lealdade, fidelidade, confiança. “É, por si só, um conceito essencialmente ético, que se pode definir como o entendimento de não prejudicar outras pessoas”.[24]
Nos ensinamentos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, a boa-fé:
É um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença.[25]
O professor e doutor em Direito Civil, Dilvanir José da Mota, pela Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que:
A boa-fé constitui uma das mais destacadas cláusulas gerais ou aberturas com que o direito moderno supera o sistema hermético dos códigos tradicionais, com previsões casuísticas. Obriga as partes a agir com lealdade na contratação e na execução das obrigações recíprocas. Não podendo cooperar, não devem dificultar a realização das mesmas. Além disso, orienta o intérprete diante das omissões das leis e das convenções, integrando-as. Probidade e boa-fé na conclusão e na execução do contrato são as novas regras dos contratos, positivadas no artigo 422 do novo código. O agir com surpresa, abuso de confiança, mudança de comportamento usual são exemplos de condutas maliciosas.[26]
Enfim, o principio geral da boa-fé é impregnado e carregado de valores éticos e sociais, valores estes que se adaptam às circunstâncias e ocasiões, mantendo sempre viva a sua força.
Introduziu-se, assim, um princípio impregnado em todo o texto civil, regulamentando as relações jurídicas, equilibrando os almejos da coletividade, dentro dos moldes de funcionalidade dos contratos.
1.5 A BOA- FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO CONTRATUAL DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
A boa-fé objetiva aparece em todas as fases contratuais: desde o momento pré-contratual, passando pela sua celebração, até sua execução. Quando dirigida às partes, gera o dever de lealdade, de transparência e o de colaboração.
O dever de lealdade, mais presente na fase pré-contratual, é o de responder à expectativa criada. Ao se propor algo, cria-se uma justa expectativa, que deve ser observada ao longo do contrato, em atenção ao dever de lealdade das partes.
O dever de transparência decorre do dever de informação, fundamental à tomada de decisão. Assim, devem-se disponibilizar as informações importantes e essenciais à futura contratação.
O dever de colaboração, mais presente na execução do contrato, visa a alcançar a melhor execução do contrato pelas partes, para que, com isso, ambas se beneficiem com o bom cumprimento do que foi acordado. Essa é a função criadora, dirigida às partes em todas as fases contratuais, obrigando-as aos deveres impostos pelo respectivo princípio buscando o equilíbrio da relação contratual.
Quando a boa-fé é dirigida aos operadores do direito, tem-se a função interpretativa, devendo eles, pautados no princípio da boa-fé, buscar a justiça interna do contrato ao interpretar a norma. Há também para as partes a função limitadora que limita a autonomia da vontade, baseada no dirigismo contratual, não aceitando condutas contrárias à lealdade, honestidade e confiança.
Alguns autores, como Alinne Novais, Cláudia Lima Marques e Judith Martins Costa, entendem que a boa-fé objetiva avoca a função de fonte de deveres especiais de conduta, ou melhor, deveres secundários, agindo como limitadora dos deveres subjetivos e possuindo um papel hermenêutico-integrativo.
Os deveres decorrentes da boa-fé, na opinião das autoras acima discriminadas, surgem devido ao fato de o contrato envolver não só a obrigação acordada pelas partes, mas também uma obrigação de conduta pautada na honestidade, lealdade, transparência de ambos os contratantes. Dentre tais deveres, enumeram-se os deveres de cuidado, previdência e segurança, de aviso, esclarecimento e informação, de colaboração e cooperação, de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da outra parte.
Deve-se observar que, em todos os deveres anteriormente citados, decorrentes da boa-fé, há a preocupação com a definição de um modelo ideal de conduta, socialmente definido, que deve ser seguido por todos, independentemente das determinações contratuais. Isso decorre do fato de a sociedade se organizar em parâmetros que seguem a boa-fé, lato senso, devendo os cidadãos portar-se de maneira que venham a adimplir com a justa expectativa criada. Como função hermenêutica, a boa-fé atua de maneira a preencher as lacunas da relação contratual, visando a atender a função social do contrato.
Ao se conceber os deveres e as obrigações anexas, interpreta-se o contrato de modo mais amplo e abrangente, não estando tão- somente vinculado à prestação contratual. Nesse sentido, o princípio da boa-fé objetiva torna-se um elemento criador, pois, junto ao cumprimento da obrigação principal, obriga ao adimplemento de deveres de conduta anexos ao contrato. Os deveres secundários ganham importância e são vistos como obrigatórios nas relações negociais. A aplicação da boa-fé leva a uma harmonia e transparência nas relações, evitando práticas vulneráveis da parte mais hipossuficiente da relação contratual. Na legislação civil, a boa-fé objetiva é visualizada no artigo 422[27], como fonte de deveres instrumentais dos contratos, no artigo 187[28], como limite ao exercício de direitos subjetivos e no artigo 113[29], como regra de interpretação dos negócios jurídicos.
A jurista Cláudia Lima Marques ensina que:
A primeira função é uma função criadora, seja como fonte de novos deveres, deveres de conduta anexos aos deveres de prestação contratual, como o dever de informar, de cuidado e de cooperação; seja como fonte de responsabilidade por ato lícito, ao impor riscos profissionais novos e agora indisponíveis por contrato. A segunda função é uma função limitadora, reduzindo a liberdade de autuação dos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e libertando o devedor em face da não razoabilidade de outra conduta. A terceira é a função interpretadora, pois a melhor linha de interpretação de um contrato ou de uma relação de consumo deve ser a do princípio da boa-fé, o qual permite uma visão total e real do contrato sobre exame.[30]
Em resumo, a função de integração do princípio da boa-fé é a de acrescentar o que ali não está incluído, é suprir falhas contratuais, não obstante ter também o caráter limitador de direitos. A boa-fé serve, para interpretar o alcance do consenso dos pactuantes e não de seus almejos, objetivando um ajuste, em face do conteúdo da declaração, segundo os mandamentos objetivos da confiança e uso dos negócios, na procura da vontade contratual.[31]
A boa-fé como uma finalidade fundante age como valor fundamental ao ordenamento jurídico, servindo de base a este, ao traçar noções nas quais se estrutura o próprio direito, exigindo das partes contratantes observância às suas determinações, cobrando do magistrado e dos demais intérpretes do direito uma interpretação e uma aplicação.
Afinal, a boa- fé amparada no voluntarismo e no individualismo não agrada nem satisfaz a sociedade do século XXII, sociedade esta sedenta por segurança e claros posicionamentos nas relações contratuais, buscando respostas com base no comportamento típico do homem médio, em oposição ao sentido subjetivo e interior.
Por fim, vale ressaltar que o objetivo do novo Código Civil, ao determinar que a aplicação de suas normas siga rigorosamente os valores éticos, é contribuir, para que, como instrumento regulador dos fatos da vida individual e da social, sejam instaurados relacionamentos entre cidadãos pautados na absoluta igualdade entre a prestação e a contraprestação, entre o que se oferece e o que se aufere.
CONCLUSÃO
O novo Código Civil inseriu, em sua estrutura, os princípios sociais do contrato, o da boa-fé, o da função social e o da equivalência material das prestações, responsáveis por uma releitura do direito contratual, interpretando a autonomia da vontade e a liberdade de contratar em consonância com os princípios sociais e com as normas cogentes.
Na esfera contratual, a ideia de agir com ética, no Código Civil de 1916, era o respeitar a simples vontade das partes, pois prevalecia a liberdade contratual. Hodiernamente, porém, esta liberdade é mitigada pela atuação do Estado, que regula a relação, podendo impor até deveres contratuais que não tenham sido estabelecidos entre as partes, mas que, mesmo assim, terão que ser cumpridos, a fim de que se alcance o real equilíbrio entre os pactuantes, ensejando a mútua cooperação, para que o contrato se desenvolva sob a confiança, dignidade e respeito.
Os valores éticos e de boa-fé insertos no Código Civil devem ser interpretados pelo Direito, na escala de valores da sociedade, ao passo que tragam a solução mais consentânea com a época em que se vive e com o que realmente se almeja e necessita, sempre com o devido respeito ao ser humano e à sua dignidade
O advento do novo Código Civil possibilitou a recodificação do Direito Privado no Brasil, na medida em que o adaptou aos ditames constitucionais, com o claro objetivo de dar efetividade às suas diretrizes.
Dessa forma, não existe mais os interesses meramente privados, pois estes, de uma forma ou de outra, acabam atingindo a sociedade, que aceita qualquer perigo de agressão ao bem comum.
THE SOCIAL BIAS OF CLASSIC CONTRACT PRINCIPLES IN THE CIVIL CODE OF 2002.
SUMMARY: The present work presents the classic contract principles—autonomy of will, obligatoriness, relativity of contracts—from a new perspective. Changes in living standards, the transformation of society and the advent of a social state pledged to public policies and social measures throughout the 20th century gave solidity to the ethical values of cooperation and good faith, which, in turn, led to the implantation of true equality: a material one. These metamorphoses, along with the birth of the Federal Constitution of 1988, were fundamental for the launch of the Civil Code of 2002, which is of a social nature.
Keywords: Principles. Contract. Civil Code of 2002. Good Faith
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[5] SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. Direito Civil: Contratos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 17.
[6] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 17.
[7] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2004.
[8] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Contratuale Constituição. Jus Navigandi, Teresina, ano4, n. 44, ago., 2000. Disponível em: doutrina/texto.asp?id=563>. Acesso em: 10 mar. 2012.
[9] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2004.
[10] FIÚZA, César. Novo Direito Civil. 7ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.27.
[11] MOTA PINTO, Carlos Alberto da, Teoria geral do direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 81.
[12]MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2ªed, 1999, p. 36.
[13] FLOUR, J. e AUBERT, J.L. Les obligations. Vol.1. 5ªed. Armand Colin, Paris, 1991.
[14] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil. vol.3. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.18-20.
[15] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil. vol.3. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.21.
[16]VIEIRA, Iacyr de Aguilar. A autonomia da vontade no Código Civil Brasileiro e no Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais, ano 90, n. 791, set., 2001, p.61.
[17]RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Parte Geral. 32ª ed. vol. I. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16
[18] GOMES, Orlando. Contratos. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.36.
[19] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos: teoria geral. Vol.4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.38.
[20] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil III.12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 14-15
[21] GOMES, Orlando. Contratos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.41.
[22] STJ, Resp 468062/ CE, Desembargador Relator Humberto Martins, Dje 01/12/2008.
[23] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil. Estudos. Belo Horizonte: Del Rey. 2000, p. 101.
[24] MARTINS, Flávio Alves. A boa fé objetiva e sua formalização no direito das obrigações brasileira. São Paulo: Lúmen Júris, 2000, p. 7.
[25] AGUIAR JR., Ruy Rosado. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, p.20-27, abril/jun., 1995.
[26] MOTA, Dilvanir José da. Inovações Principais do Novo Código Civil. Revista dos Tribunais, ano. 91, n. 796, fev., 2002, p.44.
[27] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução os princípios de probidade e boa-fé.
[28] Art.187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[29] Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
[30] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 106.
[31] GODOY, Cláudio Bueno de. Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 78.
ex- monitora de Direito Civil e de Língua Portuguesa, formada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, Pós Graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera- Uniderp, Advogada, aprovada nos concursos de Procurador do Município de Maceió, de Procurador do Município de João Pessoa, de Analista Judiciário do TRF 5 Região, de Analista do STF, e, atualmente, na fase Oral de Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABRAL, Carolina Feitosa Cruz. O viés social dos clássicos princípios contratuais, no Código Civil de 2002 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38633/o-vies-social-dos-classicos-principios-contratuais-no-codigo-civil-de-2002. Acesso em: 22 nov 2024.
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