1. Resumo
O presente artigo tem por fim demonstrar que em uma relação realizada com empresas aéreas estrangeiras, por meio de contrato firmado em solo brasileiro, deve prevalecer a incidência do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que este é mais benéfico para o passageiro. Sendo assim, por meio da análise da relação dos diplomas legais envolvidos em uma relação de passagem aérea, revela-se que os institutos de direito internacional não podem prevalecer sobre os ditames da ordem pública. De igual forma, analisa-se a jurisprudência sobre o tema.
2. Introdução.
O presente trabalho propõe-se a analisar o tema da responsabilidade civil de empresas aéreas estrangeiras de aviação civil sob a ótica do Direito do Consumidor.
Serão tratadas a legislação pertinente e a jurisprudência dos Tribunais Superiores acerca do tema.
Os tópicos que seguem procurarão responder às perguntas que servem como guia da linha de raciocínio: que tipo de responsabilidade existe entre empresas aéreas e passageiros? Há possibilidade de aplicação do CDC a uma relação jurídica firmada entre empresa de aviação civil estrangeira? A Justiça brasileira é competente para julgar as causas?
Espera-se que, depois da exposição do tema, as indagações sejam supridas de maneira satisfatória.
No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil consiste na atribuição por lei da compensação financeira, esta decorrente de conduta de pessoa física ou jurídica que causem danos, patrimoniais ou morais, a terceiros.
3. A responsabilidade civil do fornecedor de serviço
No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil consiste na atribuição por lei da compensação financeira, esta decorrente de conduta de pessoa física ou jurídica que causem danos, patrimoniais ou morais, a terceiros.
RODRIGUES (2003, p.6), em sua obra, também conceitua a Responsabilidade Civil:
A responsabilidade civil vem definida por SAVATIER como a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam.
Realmente o problema em foco é o de saber se o prejuízo experimentado pela vítima deve ou não ser reparado por quem o causou. Se a resposta for afirmativa, cumpre indagar em que condições e de que maneira será tal prejuízo reparado. Esse é o campo que a teoria da responsabilidade civil procura cobrir.
O Código Civil de 2002 possui dois dispositivos que tratam da responsabilidade civil. Defende a doutrina civilista que o CC/02 tem natureza dicotômica quando se refere a responsabilidade civil, uma vez em que no art. 186 do referido diploma legal, há a necessidade de configuração da culpa ou dolo para a existência do instituto da responsabilidade, configurando a chamada responsabilidade subjetiva, ao passo que o art. 927 dispensa tal requisito, o que a doutrina denomina de responsabilidade objetivo, visto não necessitar da comprovação dos elementos dolo ou culpa. Nesses termos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
No entanto, o tema do presente trabalho refere-se à responsabilidade civil diante de uma relação consumerista, ou seja, de uma prestação de serviço onde há clara relação de hipossuficiência e vulnerabilidade entre as partes, condições presentes nas relações de consumo.
Sendo assim, não obstante a existência da distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva restar tão evidente no Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro adotou a famigerada teoria do risco, que consiste na assunção da responsabilidade por determinadas pessoas que assumem o risco ao exercerem tais atividades que a própria lei diz se encontram em uma posição privilegiada em relação a outra parte da relação.
Em outros termos, a teoria do risco não admite a existência do dolo ou culpa como requisito para a configuração da responsabilidade civil. Basta tão somente para que a responsabilidade civil se configure, a existência do dano, a conduta de um agente e o nexo de causalidade entre tal conduta e o dano jurídico.
Nesse sentido, defende PAULO NETO:
Assim, há a responsabilidade objetiva com culpa presumida e a responsabilidade objetiva com culpa prescindível. No primeiro caso, embora a culpa não precise ser provada pela vítima, permite-se que o agente faça prova ao contrário, isto é, prova de fato que exclua sua culpa, donde se conclui que, neste caso, milita uma presunção relativa de culpa do agente, tendo-se, por conseqüência apenas, a inversão, em detrimento deste, do onus probandi. No segundo caso, o agente da conduta lesiva será responsabilizado independentemente da existência de culpa; não há qualquer indagação acerca de culpado agente; os fatos são vistos de forma objetiva, não cabendo valoração comportamental do agente ou de quem quer que seja.
Sendo assim, na responsabilidade objetiva, especialmente no CDC, não se exige do consumidos a prova da culpa dos responsáveis pela prestação do serviço. In casu, o tema versa sobre a responsabilidade de empresas áreas no cumprimento das clausulas atinentes ao contrato estabelecido entre as partes.
Perceba-se que se trata de um serviço contrato, qual seja o transporte aéreo de passageiros, no qual se fazem presentes à existência das condições necessárias a relação de consumo, nos termos das normas brasileiras atinentes ao consumidor.
Nesse mesmo sentido, a redação do art. 14 do CDC é clara:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [grifei]
Desta forma, na relação de consumo não cabe perquirir a subjetividade da conduta do agente, bastando para tanto a existência do evento danoso e os demais requisitos já delineados nesse tópico.
2.1 Das partes e objetos da relação de consumo
Art. 2o. Consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3o. Fornecedor é toda a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades e produção, montagem, criação, construção, transformação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1o. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2o. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Nos termos do que dispõe o próprio CDC, consumidor é o destinatário final do produto ou serviço. Já o fornecedor é todo aquele que desenvolve a atividade na produção ou prestação do serviço.
Vale dizer o diploma consumerista é congruente com os princípios basilares das relações de consumo, tendo em vista que atribui a responsabilidade civil a todos aqueles que contribuírem para o evento danoso.
Em razão do tema aqui debatido, cabe ainda referência que o CDC não isentou as empresas estrangeiras da responsabilidade civil prevista neste código. Ou seja, embora localizadas em outro Estado soberano, tais empresas que prestam serviço ou fornecem produtos a consumidores brasileiros, acabam submetidas as leis consumeristas brasileiras. Tal previsão legal visa a proteção do hipossuficiente da relação de consumo, que restaria desamparado caso lhe fosse limitado o direito de requerer a reparação civil a quem de direito, tenha ou não a pessoa jurídica domicílio no país.
4. A aplicação do CDC em detrimento dos Tratados Internacionais.
Inicialmente, cumpre esclarecer que o Código Brasileiro de Aeronáutica estabelece como sendo o transporte internacional aquele em que o ponto de embarque e o destino estão situados em países diferentes.
Nesse sentido, muitas das vezes os voos internacionais são fornecidos por empresas estrangeiras, tenham elas sede ou não no Brasil, o que desencadeia uma série de consequências jurídicas, que é o tema desse trabalho.
É sabido que os voos internacionais são regulados pela Convenção de Varsóvia, parcialmente alterada pelo Protocolo de Haia, introduzido no ordenamento brasileiro pelo Decreto 56.463/65.
Assim sendo, as regras definidas na Convenção de Varsóvia muitas vezes não são benéficas aos consumidores, que restam desprotegidos em razão da situação de vulnerabilidade em que se encontra. Exemplo concreto disto é a limitação ao valor indenizatório que está presente na mencionada Convenção nos casos de dano. Nesse sentido, afirmam Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge:
O art. 22 da Convenção de Varsóvia, parcialmente alterado pelo Protocolo de Haia (Decreto 58.463/65), estabelece o limite de 250 mil francos poincaré para indenização no caso de transporte de pessoas (n. 1 do art. 22), limitando o n. 2 a responsabilidade em caso de dano à bagagem registrada ou mercadoria". (InRevista de Direito do Consumidor. Vol. 19 pág. 129).
No entanto, o então vigente Código de Defesa do Consumidor brasileiro garante a total reparação e prevenção de danos patrimoniais e morais, sem, contudo, estabelecer limitação para a quantificação do dano. Sendo assim, percebe-se que há um embate direto entre a Convenção de Varsóvia e o CDC, nas regras atinentes a responsabilidade civil das empresas aéreas estrangeiras.
Diante do paradoxo em questão, o presente tema se revela útil a fim de determinar qual a legislação deva ser aplicada ao caso concreto.
Destarte, cumpre ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor se trata de norma de ordem pública e interesse social, nos termos do artigo 1 do seu diploma normativo.
Ora, mas o que seria matéria de ordem pública? Sobre o tema, diga-se:
O fato de se estar diante de um conceito indeterminado não significa que o conteúdo da expressão “ordem pública” seja inatingível.(...)
Prosseguindo na definição de ordem pública, tem-se que ora ela é tratada como sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, a dizer, normal e própria dos princípios gerais de ordem expressados pelas eleições de base que disciplinam a dinâmica de um objeto de regulamentação pública e, sobretudo, de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva.
A ordem pública representa um anseio social de justiça, assim caracterizado por conta da preservação de valores fundamentais, proporcionando a construção de um ambiente e contexto absolutamente favoráveis ao pleno desenvolvimento humano.
Trata-se de instituto que tutela toda a vida orgânica do Estado, de tal forma que se mostram igualmente variadas as possibilidades de ofendê-la. As leis de ordem pública são aquelas que, em um Estado, estabelecem os princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos de direito.
(...)
A ordem pública nada mais é que o estado social que resulta da relação que se estabelece entre os representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como governantes, e os particulares, como governados, no sentido da realização dos interesses de ambos. A ordem pública é uma conseqüência da ação de autoridade sobre os particulares para lhes regular ou modificar a ação. Essa intervenção, formando uma relação, origina um estado social, que é a ordem pública.
(...)
A relação de ordem pública constitui o parâmetro para a interpretação das leis, adaptando-as aos fatos sociais ou lhes modificando, para esse mesmo fim, a respectiva inteligência. A ordem pública associa-se à idéia de bem social, já que este representa o desejo da autoridade, que resulta da ação sobre os governados, e cuja limitação pode significar muitas das vezes ao indivíduo como um mal social.
É ainda a ordem pública, expressão da situação de tranqüilidade e normalidade que o Estado assegura – ou deve assegurar – às instituições e a todos os membros da sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas.[1]
Se a matéria é de ordem pública, isso implica em dizer que ela pode ser declarada ex officio pelo julgador, e pode ser arguida em qualquer grau de jurisdição, não estando sujeita ao instituto da preclusão.
Perceba-se que se trata de uma norma que relativiza a autonomia de vontade tão presente na relação de direito privado, e que acaba nesse ponto mitigada por se tratar de uma situação em que as partes não competem em pé de igualdade, tendo em vista a patente desigualdade e hipossuficiência que regem as relações de consumo, sobretudo na prestação de serviços de transporte aéreo, em que as empresas se constituem como grandes grupos econômicos.
Por tal motivo, as disposições contidas no CDC se tornam obrigatórias e não permitem a disposição pelas partes, já que se trata de norma de interesse público. Visto isso, não há como se admitir que a Convenção de Varsóvia, documento de direito internacional, prepondere sobre o Código de Defesa do Consumidor, pelas razões acima expostas.
Doutrina considerável advoga a tese de que os tratados internacionais preponderam sobre a legislação interna, e por este motivo levaria a crer ser a Convenção de Varsóvia o documento a ser obedecido. No entanto, embora esteja condizente com as regras de direito internacional tal doutrina, vale lembrar que essas regras não podem se sobrepor aos valores e ditames jurídicos de ordem pública e social que vigem no país. Ademais, o Código de Defesa do Consumidor é um claro reflexo e derivação da Constituição Federal de 1988, havendo parte de seus princípios fundamento lei na Carta Magna. Sendo assim, havendo alguma diploma normativo que contrarie norma de ordem pública como o CDC, haverá inconstitucionalidade reflexa, já que os princípios regentes da relação de consumo tem índole constitucional.
É nesse sentido que asseveram Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge:
Assim, o fato de a Convenção de Varsóvia não ter sido denunciada pelo Governo brasileiro (tal como previsto no art. 39 da Convenção) não quer significar que os limites de indenização nela previstos prevaleçam ainda hoje, pois que virtualmente incompatíveis com o regime do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que, como visto, deita raízes na própria Carta de 1988" (Op. Cit. Pág. 135).
Ademais, o próprio Código de Defesa do Consumidor assim estabelece em seu artigo 51:
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor, pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
Esse também é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:
"INDENIZAÇÃO — DANO MORAL — EXTRAVIO DE MALA EM VIAGEM AÉREA — CONVENÇÃO DE VARSÓVIA — OBSERVAÇÃO MITIGADA — CONSTITUIÇÃO FEDERAL — SUPREMACIA."
"O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República — incisos V e X do artigo 5º, no que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil." (RE 172.720-9, Rio de Janeiro. Rel. Min. Marco Aurélio. 06.02.96).
Portanto, pode-se afirmar que no conflito entre a Convenção de Varsóvia e Código de Defesa do Consumidor, este último prevalece, uma vez que prescreve os valores constantes na Constituição Federal de 1988, posicionando-se como norma hierarquicamente superior ao tratado de direito internacional aqui mencionado.
5. Competência para julgar
Passados os tópicos anteriores, vistos a responsabilidade do fornecedor e a aplicabilidade do CDC aos casos de empresas aéreas, o próximo tema consiste em definir se seria competente a autoridade judicial brasileira no caso concreto.
O Código de Processo civil diz que:
Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:
I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;
II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;
III - a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.
Parágrafo único. Para o fim do disposto no no I, reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal.
Cumpre fazer uma breve explanação sobre os diferentes tipos de pessoa jurídica estrangeira no país mencionados no parágrafo único do referido artigo, cujas terminologias, muitas vezes, são aplicadas como sinônimas.
De maneira mais precisa, a agência, no sentido que pode aqui ser entendido, é:
1. Estabelecimento que presta serviços como intermediário em negócios alheios, mediante recebimento de uma remuneração. (...) 6. Repartição de um serviço, público ou particular, em local diverso do da administração. (...)
1. É o contrato pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a realizar certos negócios, em zona determinada, com caráter de habitualidade, em favor e por conta de outrem, sem subordinação hierárquica. Há na agência ou representação uma atividade de intermediação exercida profissionalmente pelo representante comercial, sem qualquer dependência hierárquica, mas em conformidade com instruções dadas pelo representado, tendo por finalidade recolher ou agenciar propostas ou pedidos para transmiti-las ao representado. 2. Estabelecimento que representa outro com o fim de efetivar negócios mercantis em outra praça.” [2].
Já a filial pode ser:
a) Estabelecimento empresarial ligado à matriz, da qual depende, com poder de representá-la, sob a direção de um preposto, que exerce atividade econômico-jurídica dentro das instruções dadas; (...) empresa que deriva de outra, mantendo sua subordinação jurídica ou econômica; (...)[3].
A sucursal, por sua vez,
Em sentido estrito, é o estabelecimento que se subordina a outro, uma vez que foi criado para expandir os seus negócios. Embora o gerente tenha certa autonomia, deve seguir a orientação dada pelo estabelecimento principal (matriz) sobre negócios importantes;[4].
É certo que, qualquer que seja a situação, o Judiciário pátrio será competente para julgar possível demanda oriunda de relação de consumo envolvendo fornecedor empresa aérea estrangeira que atue no Brasil, isso porque: a) no caso do inciso I, a empresa será obrigada a ter representante no território nacional, conforme ficará explicitado adiante; b) nos casos dos incisos II e III, por motivo ligado diretamente ao serviço prestado.
6. Responsabilidade da empresa estrangeira através de seu representante
Imagine-se a seguinte situação: um consumidor, pretendendo realizar uma viagem ao exterior, compra passagem aérea num sítio eletrônico estrangeiro. A empresa não tem matriz no Brasil, atuando no país através de um dos tipos de domicílio do artigo 88 do CPC (agência, filial ou sucursal). Nesse caso, em sendo o consumidor lesado, quem poderia ser responsabilizado?
Assim preceitua o CC:
Art. 1.138. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade.
Ainda, segundo o CPC:
Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:
(...)
VIII - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);
(...)
§ 3º O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.
Ora, é evidente que a representante da empresa estrangeira poderá parte processual. Mas como se opera a responsabilidade da empresa no Brasil? A depender do caso, ele será subsidiária, solidária, ou dependerá de comprovação de culpa. O dispositivo legal tratando da questão é o artigo 28 do CDC, que versa:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
Cumpre fazer alguns esclarecimentos sobre as modalidades societárias presentes nos parágrafos do artigo supracitado.
Grupo de sociedades:
“Conjunto de empresas controladas, ligadas a um grupo detentor do comando, que constitui a sociedade holding ou ‘sociedade matriz’, para obter a consecução de objetivos comuns. O grupo de sociedades requer convenção para sua formação, ficando sob o controle da empresa de comando. Na convenção obrigam-se as empresas a conjugar esforços para a realização de seus objetivos e participação de atividades ou empreendimentos comuns, mas podem prestar serviços umas às outras, estabelecer regime de colaboração mútua, promover intercâmbio de serviços, porque cada uma delas mantém a personalidade, apesar de se submeterem às normas convencionais estabelecidas (Carlos Alberto Bittar). (...)”[5]
A sociedade controlada é:
Aquela que, ante o fato de a maioria do seu capital, representado por ações ou quota, se encontrar em poder da controladora, não tem o poder de decidir nas deliberações sociais e eleger os administradores. É, portanto, sociedade de cujo capital outra sociedade possua a maioria dos votos nas deliberações dos quotistas ou da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores (holding pura) ou cujo controle esteja em poder de outra (holding mãe, p.ex.) mediante ações ou quotas possuídas por sociedades ou sociedades por esta já controladas.[6]
Consórcio de empresas:
Associação de companhias ou qualquer outra sociedade, sob o mesmo controle ou não, que não perderão sua personalidade jurídica, para obter finalidade comum ou determinado empreendimento, geralmente de grande vulto ou de custo elevado, exigindo para sua execução conhecimento técnico especializado e instrumental de alto padrão.[7]
Sociedade coligada:
1. É a resultante da relação que se estabeleceu entre duas ou mais sociedades anônimas, em que uma participa com dez por cento ou mais do capital da outra, sem contudo controlá-la (Othon Sidou). 2. É a que resulta da relação estabelecida entre duas ou mais sociedades submetidas ao mesmo controle por participarem do mesmo grupo econômico. 3. É aquela que, em suas relações, é controlada, filiada ou de simples participação.”[8]
Sobre o tema de responsabilidade de empresa estrangeira, destaca-se ainda um importante julgado do STJ. Não se trata de uma demanda envolvendo empresa aérea, mas o raciocínio pode ser aplicado à problemática aqui proposta. Trata-se, entretanto, de um caso bastante emblemático de um consumidor que adquiriu um equipamento eletrônico da marca Panasonic nos Estados Unidos, o qual pretendia responsabilizar a Panasonic do Brasil Ltda. As palavras do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que teve seu voto acompanhado pela maioria, são bastante didáticas:
(...), tenho para mim que, por estarmos vivendo em uma nova realidade, imposta pela economia globalizada, temos também presente um novo quadro jurídico, sendo imprescindível que haja uma interpretação afinada com essa realidade. Não basta, assim, a proteção calcada em limites internos e em diplomas legais tradicionais, quando se sabe que o Código brasileiro de proteção ao consumidor é um dos mais avançados textos legais existentes, diversamente do que se dá, em regra, com o nosso direito privado positivo tradicional, de que são exemplos o Código Comercial, de 1.850, e o Código Civil, de 1916, que em muitos pontos já não mais se harmonizam com a realidade de nossos dias.
Destarte, se a economia globalizada não tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, é preciso que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com sucursais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e do mercado consumidor que representa o nosso País.
O mercado consumidor, não se pode negar, vê-se hoje, 'bombardeado' por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.
Dentro dessa moldura, não há como dissociar a imagem da recorrida 'Panasonic do Brasil Ltda' da marca mundialmente conhecida 'Panasonic'. Logo, se aquela se beneficia desta, e vice-versa, devem, uma e outra, arcar igualmente com as conseqüências de eventuais deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável que seja o consumidor, a parte mais frágil nessa relação, aquele a suportar as conseqüências negativas da venda feita irregularmente, porque defeituoso o objeto.
Claro que há, nos casos concretos, situações a ponderar. In casu, todavia, as circunstâncias favorecem o consumidor, pelo que tenho por violado o direito nacional invocado, conhecendo do recurso e, com renovada vênia, lhe dando provimento."
(STJ - REsp: 63981 SP 1995/0018349-8, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 11/04/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 20/11/2000 p. 296 JBCC vol. 186 p. 307 LEXSTJ vol. 139 p. 59 RSTJ vol. 137 p. 389)
Note-se, ainda, no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica, o § 5° do mesmo artigo:
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
O diploma consumerista foi além do Código Civil ao adotar uma disregard doctrine mais abrangente. O primeiro adotou a Teoria Menor: basta insolvência para desconsiderar-se a personalidade jurídica. Já o segundo adotou a Teoria Maior de desconsideração: é necessário que haja abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.
7. Conclusão
Diante da atual ordem comercial globalizada, parece ser juridicamente correto admitir, perante a Justiça pátria, a responsabilização de empresas estrangeiras e a aplicação do CDC (que se dará de maneira solidária, subsidiária ou mediante culpa, a depender do caso), ainda que os atos e obrigações inerentes a determinada relação jurídica se deem total ou parcialmente em outro país.
Ora, pensar de outra forma implicaria em dizer que uma empresa aérea que atua em solo brasileiro sem matriz no território nacional, juntamente com todas as outras pessoas jurídicas que de alguma forma atuam na mesma cadeia comercial, estaria totalmente imune a qualquer hipótese de responsabilização no Direito pátrio. Tal entendimento seria um verdadeiro retrocesso, chocando-se frontalmente com os princípios consumeristas, principalmente:
a) Vulnerabilidade: porque afastaria a aplicação do CDC à relação jurídica existente entre o fornecedor e o consumidor;
b) Hipossuficiência: porque incumbiria ao consumidor o ônus de acionar algum Poder Judiciário estrangeiro.
REFERÊNCIAS:
SANTOS, Eduardo Sens dos. Responsabilidade civil decorrente de extravio de bagagem aérea. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/651>. Acesso em: 07 fev. 2014.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 1º vol. São Paulo: Saraiva, 2003.
________________ Direito civil: responsabilidade civil. 4º vol. São Paulo:
Saraiva, 2003.
PAULO NETO, Carlos Romero Lauria. A responsabilidade civil nas relações de consumo. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/14716483/Procon-A-responsabilidade-civil-nas-relacoes-de-consumo. Acesso em: 08/02/2014
ALVIM, Eduardo Arruda e CHEIM, Flávio. in Revista de Direito do Consumidor. Vol. 19. Pág.127-128).
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010.
BECHARA, Fábio Ramazzini. Prisão Cautelar, p. 97 a 100 in DE MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado. Questões de ordem pública e a competência recursal dos tribunais. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1774 acesso em 10/02/2014.
[1] BECHARA, Fábio Ramazzini. Prisão Cautelar, p. 97 a 100 in DE MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado. Questões de ordem pública e a competência recursal dos tribunais.
[2] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 29
[3] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p 272
[4] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 540 e 541.
[5] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 296.
[6] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 533.
[7] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 147.
[8] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo : Saraiva, 2010, p. 533.
Advogado. Atuou como assessor na Defensoria Pública da União, especialmente em matérias previdenciárias e administrativa. Atualmente sou servidor público e atuo no setor das relações de trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALDINO, Vandson dos Santos. Direito do Consumidor e aviação civil: responsabilidade civil das empresas aéreas estrangeiras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38750/direito-do-consumidor-e-aviacao-civil-responsabilidade-civil-das-empresas-aereas-estrangeiras. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Erick Labanca Garcia
Por: Erick Labanca Garcia
Por: ANNA BEATRIZ MENDES FURIA PAGANOTTI
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Precisa estar logado para fazer comentários.