Resumo: aborda-se o modelo federativo brasileiro sob a óptica da descentralização administrativa vertical, no que refere à técnica de coordenação entre os seus entes políticos por meio de repartição de competências legislativa e material.
Palavras-chave: federação; competência; União; Estados-membro.
O Estado federal nasce da necessidade de atender as demandas regionais de um amplo território nacional sem, contudo, enfraquecer a força que advém da união dos Estados-membros, materializada e exteriorizada na soberania da Nação. “A federação criaria uma estrutura forte, uma unidade poderosa sem, todavia, destruir os particularismos e as peculiaridades próprias dos seus membros” (STRECK; MORAIS: 2012, p. 172).
O primeiro modelo de federação constitucional que se tem notícia é o adotado pelos Estados Unidos da América, na Convenção da Filadélfia em 1787. A doutrina aponta como causa do surgimento da federação americana a debilidade da confederação de Estados soberanos, caracterizada pela dificuldade obter recursos financeiros e humanos para atividades comuns, o não cumprimento das deliberações dos “Estados Unidos em Congresso”, a inviabilidade de impor tributação, pois o Congresso não podia legislar sobre pessoas, mas apenas sobre os Estados, bem como a ausência de uma Corte suprema de uniformizar o direito comum (MENDES; COELHO; BRANCO: 2006, p. 847).
O Brasil adotou o federalismo em 15 de novembro de 1889, com a proclamação da República, o que veio a ser juridicamente implementado com a Constituição de 1891 (BASTOS: 2002, p. 486). Embora tenha importado o modelo norte-americano, cabe ressaltar que o Brasil já era um Estado unitário, embora dividido em províncias – o que remonta às capitanias hereditárias. É dizer, o Brasil não foi formado a partir da união de Estados soberanos. Nas palavras de MALUF (2007, p. 172), “o federalismo brasileiro surgiu como resultado fatal de um movimento de dentro para fora e não de fora para dentro; de força centrífuga e não centrípeta; de origem natural histórica e não artificial.”
Na federação existem duas ordens jurídicas, costumeiramente denominadas União e Estados-membros – no Brasil há uma terceira, os municípios – que possuem, ao menos em tese, uma dupla autonomia: para elaborar leis (autonomia política) e autonomia para executar as leis (autonomia administrativa). Tal autonomia decorre de uma atribuição de competências realizada diretamente pela Constituição Federal, por meio da qual se busca definir a área de ação de cada unidade da federação, “que não se submetem uns aos outros, mas possuem âmbito de atuação diferenciado” (ACUNHA: 2012, p. 32). Trata-se do que a doutrina constitucionalista denomina descentralização administrativa vertical.
STRECK e MORAIS (2012, p. 172) explicam que existem dois modelos que informam essa descentralização vertical: o clássico, onde há uma divisão profunda de competências; e o modelo de colaboração, em que há uma participação recíproca dos entes federados nos negócios do Estado. O Brasil parece ter adotado um modelo misto, na medida em que conjuga competências legislativas privativas e concorrentes, e competências materiais ou administrativas comuns e exclusivas.
A coordenação dos entes políticos no contexto da descentralização de poder própria dos Estados federados, é realizada mediante a instituição de duas espécies de competências: a legislativa, que refere ao poder concedido aos entes federados de elaborarem suas próprias leis, por meio de corpo legislativo próprio e, dessa forma, se auto organizarem; e a material, que trata de questões políticas e administrativas. A competência legislativa se divide em privativa e concorrente. A competência material pode ser exclusiva de cada ente da federação ou comum.
A competência comum foi disciplinada no art. 23 da Constituição Federal e refere a questões ligadas à promoção da saúde pública, à conservação do patrimônio público, a proteção de bens de valores históricos, artísticos e culturais, o acesso à cultura, à educação e a ciência e a proteção do meio ambiente, o combate à pobreza, entre outros arrolados nos doze incisos do referido artigo.
Mas também em outros dispositivos a Constituição atribuiu aos Municípios, aos Estados, ao Distrito Federal e à União a incumbência recíproca de realizarem certas atividades administrativas, como no caso das ações e serviços públicos de saúde, previstas nos §§ 1º e 2º do artigo 198, na promoção da educação por meio de um sistema nacional de educação em que todas as unidades da federação atuem em regime de colaboração, na forma do art. 214, inclusive por meio de destinação de percentual de receitas tributárias de cada ente federado (art. 212 ), o Sistema Nacional de Cultura, recentemente criado pela Emenda Constitucional nº 72/2012 (art. 216-A), organizado em regime de colaboração por todas as unidades da federação, as ações para a preservação do meio ambiente de responsabilidade do poder público em geral, nos termos do art. 225, entre outros.
É de se esperar que diante de tantas matérias acabe por ocorrer um desencontro de ações estatais. Nas palavras de Fernando Acunha (2012, p. 31), [N]ão sem espanto, dessa forma, várias dessas competências acabam por se sobrepor, o que dá ensejo a não raros conflitos entre os diferentes entes políticos e as pessoas jurídicas por eles criadas para as finalidades específicas.”
Para as competências legislativas, é fácil imaginar conflitos positivos, em que cada ente reclame para si a atribuição de regular determinado assunto, na medida em que tal se consubstancia em afirmação de poder, por óbvio desejado por todas as unidades políticas.
Contudo, quando se trata de competências administrativas ou materiais, costumam ocorrer conflitos negativos, em que cada ente tenta afastar sua responsabilidade para promover determinada atividade. Um exemplo desses conflitos materiais negativos é citado por ACUNHA (2012, p. 31) e refere ao julgamento do Agravo Regimental em Suspensão de Tutela nº 175, em que o STF declarou a responsabilidade solidária dos entes federados que compõem o Sistema Único de Saúde. Outro exemplo, esse citado por CUNHA JÚNIOR (2011, p. 889), é o julgamento da ADI 2.544, em que o Supremo afirmou impossibilidade da demissão unilateral do encargo comum das unidades da federação em promover a proteção do patrimônio comum, inclusive dos sítios arqueológicos.
Daí o próprio legislador constituinte ter previsto a necessidade de regulamentação das competências comuns, por meio de leis complementares, que fixem normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e o do bem-estar em âmbito nacional.
Assim é que o art. 24 da Constituição Federal trata da competência concorrente entre a União e os Estados e o Distrito Federal para legislarem sobre as matérias ali arroladas como, por exemplo, direito tributário, financeiro e econômico, proteção à infância e juventude, educação, cultura ensino e desporto, etc. Trata-se de um campo de atuação determinado pela Constituição onde tais entes políticos possuem, de certa forma, liberdade para regulamentarem temas específicos.
Segundo MARTINS (2012, p. 16), a técnica da “concorrência” é um dos modelos básicos de repartição de competências legislativa e foi concebido no constitucionalismo social do pós-guerra. Citando HORTA (1995, p. 354), o autor afirma que a Constituição alemã de 1949 teria sido a “forma mais evoluída de repartição de competências no moderno Estado Federal”, representando uma autêntica forma de federalismo cooperativo ou de equilíbrio.
Para MORAES (2004, p. 300), a legislação concorrente pode ser cumulativa, quando não são impostos limites ao exercício da competência tanto pela União quanto pelos Estados, ou não cumulativa, também conhecida como repartição vertical, em que se reserva à União uma posição de supremacia, para dispor sobre os princípios e normas gerais, relegando-se aos Estados-membro a edição de normas complementares. Como é cediço, o Brasil adotou esse último modelo.
A crítica realizada pela doutrina é no sentido de que a União, não raras vezes, não se limita ao estabelecimento de normas gerais, descendo a pormenores provavelmente não autorizados pelo Constituinte. BASTOS (2002, p. 495), criticando o modelo federativo pátrio no que refere à redução da autonomia dos Estados e do Distrito Federal pela Constituição de 1988, adverte que a competência concorrente não pode ser entendida como aquela em que “todos concorram em iguais condições”. Prossegue o jurista asseverando que, mesmo diante da previsão do exercício da competência legislativa plena pelos Estados e o DF enquanto inexistir Lei federal dispondo sobre determinado assunto, não se pode conceber qualquer possibilidade daquelas unidades da federação legislarem originariamente sobre o quer que seja, sendo sua atuação meramente secundária, pois as leis editadas pela União “são bastante amplas, a ponto de tolherem quase que por completo a atuação livre dos Estados.”
A título ilustrativo, tem-se o exemplo citado por MARTINS (2012, p. 19), do caso decidido pelo STF no julgamento da ADI 927-MC, em que se discutia a legalidade de programa social levado a efeito pelo Estado do Rio Grande do Sul, que pretendia transferir áreas de propriedade do Estado aos cidadãos considerados de baixa renda. Ocorre que o estatuto de licitações públicas, que é uma Lei editada pela União no âmbito da competência legislativa concorrente, dispõe em seu art. 17, inc. I, “b”, e inc. II, “b”, que doações e permutas de bens públicos só podem ser realizadas entre órgãos e entidades da Administração Pública. Ante a “ilegalidade” do programa social estadual, o Governador do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, no bojo da qual o STF conferiu interpretação conforme aos dispositivos legais mencionados, no sentido de que a vedação se aplicaria apenas ao âmbito federal, não atingindo os demais entes federados. Um clássico exemplo em que a União extrapolou os limites da atribuição de elaborar normas de caráter geral.
O que o legislador complementar tem que ter em mente é que tal regulamentação deve se ater ao estabelecimento de procedimentos para viabilizar uma colaboração mútua e harmônica, mas, de forma alguma, criar restrições absolutas sobre determinada matéria, sob pena de realizar uma divisão profunda de competências que caracterize a supressão do federalismo de colaboração.
Uma das mais severas censuras encontrada na doutrinária diz respeito ao fato de que a divisão de competências entre os entes da federação brasileira reside num acúmulo de atribuições nas mãos da União, que acarreta uma total dependência dos Estados-membros e municípios, mitigando a autonomia dessas unidades. Segundo Celso Bastos (2002, p. 488), os dispositivos constitucionais que atribuem competências aos Estados-membros na atual Constituição possuem “ares de verdadeira irrisão, provocando mesmo a mofa e a galhofa. Isso porque são tão amplas as competências atribuídas a títulos diversos à União, que a participação do Estado se torna evanescente.”
Na prática, tem-se um agravamento da construção teórica, pois além do pequeno espaço de atuação reservado à competência privativa dos Estados-membros, tem-se a sobreposição da União em matéria de competência legislativa concorrente, quando esse ente não se limita a estabelecer normas gerais sobre determinada matéria, descendo a pormenores que comprometem a pretensa autonomia estadual. Eis alguns dos dilemas do nosso modelo federativo de descentralização vertical.
Referências:
ACUNHA, Fernando José Gonçalves. A Administração Pública Brasileira no Contexto do Estado Democrático de Direito. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. A Administração Pública e a Constituição. Brasília: CEAD/UnB, 2012.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
STRECK; Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis<br>Especialista em Direito Público e em Direito Processuaà l Civil. MBA em Gestão Pública.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RORIZ, Rodrigo Matos. A Federação: breves reflexões sobre a coordenação e a repartição de competências no modelo federativo brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 abr 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38923/a-federacao-breves-reflexoes-sobre-a-coordenacao-e-a-reparticao-de-competencias-no-modelo-federativo-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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