INTRODUÇÃO
Com a nova ordem constitucional implantada a partir da Constituição Federal de 1988, a exemplo das mais modernas democracias mundo a fora, ganha destaque as atribuições reservadas ao Poder judiciário, um dos Pilares do estado democrático de Direito neste atual paradigma constitucional[i].
Diante dessas atribuições constitucionais, sobretudo com a reafirmação do poder Judiciário como Poder guardião da constituição e responsável último para resolver qualquer questão que seja levada à sua apreciação – Princípio da inafastabilidade de Jurisdição – cabe tecer breves considerações acerca do papel reservado a este Poder na atual ordem jurídica constitucional.
DESENVOLVIMENTO
A partir da revolução francesa e seus ideais de liberdade e igualdade, e já definido o conceito de Estado por Maquiavel no sentido de sociedade política, ganhou corpo as formas e modelos de Estados tal qual a concepção contemporânea.
Seguindo essa evolução, surge o denominado Estado de Direito ou Estado Liberal como sendo o primeiro paradigma constitucional a regular os tipos de Estados que se seguiram a partir de então até o atual paradigma denominado de Estado Democrático de Direito.
Esse modelo de Estado, formado a partir da concepção da teoria dos três poderes desenvolvida por Montesquieu, tinha como objetivo a proteção dos direitos e liberdades contra investidas do poder ilimitado e concentrado na figura de uma só pessoa, o rei.
No Estado Liberal, portanto, o principal objetivo da sociedade era instituir garantias de liberdades, sobretudo a liberdade do homem em face do Estado, o que se limitava, basicamente, à garantia formal das liberdades como princípio da democracia política ou democracia burguesa, a atuação do Estado era, portanto, mais de não fazer, de não intervir do que intervir.
Assim, juntamente com os dois outros poderes – Legislativo e Executivo – surge o Poder Judiciário, cuja atuação, num primeiro momento, se restringia à solução de conflitos individuais. Sua atuação, portanto, se resumia à uma “atividade mecânica resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera “bouche de la loi”’[ii].
Neste modelo de Estado de Direito ou Estado Liberal, cuja característica marcante era a submissão do Estado ao império da lei, a divisão de poderes e o prenúncio dos direitos fundamentais, que, até então, se resumia à uma igualdade meramente formal, não reservava ao judiciário um papel que se possa comparar com o relevo e importância que atualmente adquiriu esse pilar do Estado moderno, mormente em se levando em consideração que ao judiciário era reservado apenas o encargo de resolver os conflitos individuais, repita-se.
Todavia, com o surgimento da classe operária, aqueles anseios de liberdade que culminaram com o surgimento de institutos que apenas previam declarações de direitos que, de certo modo, eram apenas formais, tornaram-se insuficiente, pois não se destinavam à proteção da nova classe que começava a surgir e tampouco ofereciam qualquer solução para as contradições sociais já existentes, sobretudo as que afetavam as pessoas que viviam à margem da sociedade, aqueles que eram desprovidos de qualquer bem.
Se no Estado liberal ao Judiciário era reservado apenas o encargo de resolver os conflitos individuais, uma vez que a formação do Estado foi concebida apenas para proteger o indivíduo das investidas Estatais, tendo como principal objetivo a proteção dos direitos fundamentais de primeira geração, no Estado Social, ou Estado do bem-estar social, também chamado de Estado providência, exigiu-se uma maior participação do judiciário como forma de garantir o exercício de determinados direitos surgidos a partir dessa nova ordem.
Isso porque, como houve uma evolução e o surgimento de uma série de direitos até então inexistentes e a necessidade premente de se conferir concretude a estes direitos, não mais se coaduna com a nova ordem uma mera igualdade formal, como nos ensina, mais uma vez, Manelick de Carvalho Netto,
“Igualdade e liberdade requerem agora materialização tendencial; não mais podemos nelas pensar sem considerar as diferenças, por exemplo, entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário apenas de sua força de trabalho, o que passa a requerer a redução do Direito Civil, com a emancipação do Direito do Trabalho, da previdência social e mesmo a proteção civil do inquilino. Enfim, o lado mais fraco das várias relações deverá ser protegido pelo ordenamento e, claro, por um ordenamento de leis claras e distintas.”
“Antes, acreditava-se que bastava assegurar a liberdade e a igualdade formais a todos. Tal idéia torna-se aí bem mais complexa. O Direito é materializado em todos os níveis, e emergem novos ramos do Direito marcados por princípios inderrogáveis de ordem pública a limitar a liberdade de todos, para garantir a possibilidade de igualdade dos materialmente mais frágeis; as leis gerais e abstratas incorporam o reconhecimento da desigualdade material no sentido de buscar promover a liberdade de todos”.
O ordenamento legislativo se amplia. A liberdade não mais pode ser entendida como a ausência de leis. Pelo contrário, requer a materialização mínima da igualdade a ser realizada pela lei. As constituições prometem cidadania por meio do reconhecimento dos direitos coletivos de auto-organização e dos direitos sociais, que na verdade são prestações sociais, dependem de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado”[iii].
No entanto, foi e é no Estado Democrático de Direito, sobretudo com a complexidade das relações sociais e o surgimento dos direitos denominados de terceira dimensão que o papel do Judiciário ganha relevo e importância como garantidor do efetivo exercício destes direitos.
Portanto, se no Estado Liberal o papel de destaque cabia ao Legislativo e no Estado Social ao executivo, hoje é o judiciário que está no centro do debate.
Assim, no atual paradigma constitucional - denomina de Estado Democrático de Direito -, pode-se afirmar, sem sobra de dúvida, que ao Judiciário cabe papel preponderante na afirmação e materialização do exercício pleno dos direitos inerentes a este tipo de Estado – direitos fundamentais (liberdade e igualdade); sociais; e os chamados direitos de terceira geração, como direito ao meio ambiente equilibrado; direito do consumidor, e etc - sem, a toda evidência, se descuidar da relevância e importância dos dois outros poderes que compõem os pilares do Estado Democrático de Direito.
Partindo-se dessa premissa, sem medo de se cometer equívocos, pode-se igualmente afirmar que o Estado que não dispõe de um Judiciário forte e independente não se constitui, verdadeiramente, de um Estado Democrático de Direito.
No Estado brasileiro essa importância do Judiciário ganhou relevo com a nova ordem Constitucional surgida a partir da carta de 1988, materializada no Princípio da inafastabilidade de jurisdição, expresso no inciso XXXV do artigo 5º.
Portanto, se no Estado Liberal ao judiciário era reservado o papel de apenas resolver os conflitos individuais aplicando a lei nos casos concretos, com o surgimento dos chamados direitos de terceira geração, essa postura contemplativa, que, de certa já forma já havia sido afastada no Estado Social, no Estado Democrático de Direito é arredada por completo, reclamando do judiciário uma atuação muito mais ativa e eficiente, de modo a tornar efetivos os direitos e as garantias constitucionalmente previstos.
Bem a propósito, veja-se o que nos ensina Manelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti:
É que, na modernidade, a edição de normas gerais, hoje sabemos bem, não elimina o problema do Direito, tal como ansiado nos dois paradigmas anteriores e neles vivencialmente negado, mas, pelo contrário, o inaugura. O problema do Direito moderno, agora claramente visível graças à vivência acumulada, é exatamente o enfrentamento consistente do desafio de se aplicar adequadamente normas gerais e abstratas a situações de vida sempre individualizadas e concretas, à denominada situação de aplicação, sempre única e irrepetível, por definição. O Direito moderno, enquanto conjunto de normas gerais e abstratas, torna a sociedade mais e não menos complexa. Complexidade que envolve uma faceta que não mais pode se confundir com o exercício legítimo de direitos, com pretensões abusivas que a mera edição em texto do direito na forma de norma geral e abstrata incentiva. E isso porque ela (a norma) pode e tende a ser enfocada também da perspectiva de um mero observador interessado em sempre levar vantagem, o que vem ressaltar um aspecto central que hoje reveste os direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais fundantes de uma comunidade de pessoas que se reconhecem como reciprocamente merecedores de igual respeito e consideração em todas as situações de vida concreta em que se encontrem e que Konrad Hesse denominou a “força irradiadora dos princípios”[iv].
Na mesma direção,
“Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade dadecisão às particularidades do caso concreto”[v].
Neste contexto, com o surgimento de uma nova geração de direitos, os chamados direitos de terceira geração, fato é que o Poder Judiciário foi guindado a um patamar que não se conforma com a figura do juiz como mero aplicador da lei no caso concreto.
Portanto, assim como o administrador público que está vinculado a uma ordem jurídica maior – a ordem jurídica constitucional – a atuação do juiz, de igual forma, também está vinculada a esta ordem, de modo tal que, sempre que a conjuntura presenciada no caso concreto impugnado judicialmente, se desviar dessa ordem, exige-se do juiz, sempre fiel a esta nova ordem, uma atuação capaz de garantir o realinhamento dos atos, tanto os privados como os públicos.
Essa atuação, de modo a corrigir a ordem violada, em última ratio, dada a dimensão empregada aos direitos e princípios fundamentais, deve ter como objetivo concretizar aquilo que está previsto na atual ordem constitucional, de tal forma que os direitos e garantias fundamentais não se resumam a meros enunciados programáticos, mas se traduzam em efetivo gozo e exercício destes direitos.
Bibliografia
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em 18.12.2013.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
CARVALHO NETTO, Menelick de. In, "Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia, disponível em https://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/publicacoes_assembleia/obrasreferencia/arquivos/pdfs/consolidacao_leis/racionalizacao.pdf.
________________________________. "A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito". In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB, 2º semestre de 1998.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros Editores, 35ª Ed, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros Editores, 26ª Ed, 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros Editores, 30ª Ed, 2009.
[i] Acerca do assunto, valho-me das lições de Menelick de Carvalho Netto in A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito, conforme a seguir:
De início, portanto, cabe-nos introduzir a noção de paradigma e o seu emprego na Teoria Geral do Direito e no Direito Constitucional. O conceito de paradigma, como já tivemos ocasião de afirmar, vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn ( KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, sobretudo da p. 218 à 232.). Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padecede óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados. É claro que a história como tal é irrecuperável e incomensuravelmente mais rica do que os esquemas que aqui serão apresentados, bem como se reconhece as infinitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos históricos. Assim, o nível de detalhamento e preciosismo na reconstrução desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivos da pesquisa que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzirmos rapidamente a aplicação do conceito no Direito Constitucional, sobretudo com vistas aos supostos da hermenêutica constitucional, reconstruiremos um único grande paradigma de Direito e de organização política para toda a antigüidade e idade média, como contraponto à modernidade que, por sua vez, será apresentada em três grandes paradigmas (o do Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrático de Direito) que tendencialmente se sucedem, em um processo de superação e subsunção (aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigüidade, ainda possam encontrar, no nível fático, curso dentre nós, a condicionar leituras inadequadas dos textos constitucionais e legais. Daí mesmo a razão e a necessidade de também apresentarmos os paradigmas anteriores pois, mediante essa contraposição, melhor poderemos compreender o novo paradigma positivado e suposto pela Constituição da República de 1988, (CARVALHO NETTO, In, A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito op. cit., p. 3).
[ii] CARVALHO NETTO, In, A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito op. cit., p. 7.
[iii] CARVALHO NETTO, Menelick de. In, "Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia, P. 20, disponível em https://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/publicacoes_assembleia/obrasreferencia/arquivos/pdfs/consolidacao_leis/racionalizacao.pdf.
[iv] CARVALHO NETO, Menelick de; e SCOTTI, Guilherme, em Limites internos e externos e o “conflito de valores”, P. 4, consultado em http://moodle.cead.unb.br/agu/course/view.php?id=9, acesso em 06/01/2014. Para maiores informações, consultar a obra dos autores: OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A (IN)CERTEZA DO DIREITO, A Produtividade das Tensões Principiológicas e a Superação do Sistema de Regras. Publicação da Editora Fórum.
[v] CARVALHO NETTO, In, A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito op. cit., p. 10.
Pos-graduado em direito público pela UnB. Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza/UNIFOR. Vasta experiência na advocacia privada. Foi Defensor Público no Estado do Ceará após aprovação em Concurso Público. Foi também aprovado em concurso público para o cargo de Defensor Público da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, não tendo assumido o cargo devido a aprovação para o mesmo cargo na Defensoria Pública do Estado do Ceará. Aprovado no Concurso Público para a Advocacia Geral da União para o cargo de Procurador Federal. Atualmente é Procurador Federal responsável pela coordenação de Consultoria da Procuradoria Geral Federal Especializada do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes/DNIT, na Cidade de Brasília/DF.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, José Alves de. O papel do Judiciário no Estado Democrático de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 maio 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39306/o-papel-do-judiciario-no-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.