As chamadas ações ou remédios constitucionais há muito vêm sendo classificadas pela doutrina, sobretudo por doutrinadores liberais, dentro da categoria garantia. Este fato se deve à clássica distinção feita entre direitos e garantias, que no Brasil ganhou destaque na voz de Rui Barbosa. Dizia ele que os direitos seriam disposições declaratórias, enquanto as garantias seriam disposições assecuratórias¹. As disposições declaratórias imprimiriam existência legal aos direitos reconhecidos e as disposições assecuratórias seriam as que em defesa dos direitos limitariam o poder.
Essa clássica distinção ainda prevalece entre os doutrinadores contemporâneos, aqui no Brasil, José Afonso da Silva (2006) assim discute o tema: “Garantias são imposições negativas ou positivas aos órgãos do poder público, limitativas de sua conduta, para assegurar a observância dos direitos fundamentais”.
Em suma, o objetivo da garantia seria justamente tornar eficaz a liberdade tutelada pelos poderes públicos e estampada nas declarações de direito, bem como que se assegurassem os famigerados direitos sociais. Em outras palavras, são meios de reclamar o restabelecimento de direitos fundamentais violados, seja por um ato comissivo ou omissivo.
Não se deve confundir, no entanto, garantias com os remédios ou ações constitucionais. As expressões não são sinônimas. Há entre elas, na verdade, uma relação de continência, pois as garantias não só abrangem os remédios constitucionais, mas, também, as disposições assecuratórias. Aquelas (garantias) seriam o gênero, enquanto estas (ações ou remédios), uma das espécies.
As ações, ou remédios, constitucionais são muitos. Diante disso, restringiremos nosso estudo ao tratamento do Habeas data. Uma das inovações trazidas pela Constituição de 1988, este instituto, reafirma a ordem democrática aclamada pela nossa Carta Maior, na medida em que é um importante instrumento de proteção ao direito fundamental individual da pessoa e por ser uma resposta histórica aos abusos cometidos pela Ditadura Militar, especificamente, no trato de seus arquivos, bem como, uma segurança, em tempos de neoliberalismo, contra os abusos cometidos pelos entes privados responsáveis por bancos de dados, sobretudo, os dá relação de consumo.
A raiz terminológica do habeas data, segundo Luiz A. D. Araujo (2008, p. 207), encontra-se nas expressões latinas habeas corpus e data, substantivo plural (no latim) da palavra dado.
Situada no art. 5º, LXXII, da Constituição de 1988, tem a finalidade de:
a) Assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constante do registro ou banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) A retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.
No plano infraconstitucional é regulado pela Lei 9.507 de 12 de novembro de 1997.
Do entendimento destes dois referenciais legais abstrai-se que dois são os objetivos deste instituto: conhecimento de informações e retificação de dados. Assim ele cabe a quem não conseguiu as informações ou retificação que deseja pela via administrativa. Dessa forma, os dados errôneos, falsos ou verdadeiros poderão tornar-se conhecidos e serem consertados por meio dessa garantia². Veja-se que esses bancos de dados não são os constantes eminentemente nos órgãos públicos, como os arquivos dos órgãos de informação ou cadastros policiais, mas qualquer um, mesmo que privado, desde que possua caráter público (como os cadastros do SPC e SERASA)³.
A instituição do habeas data, portanto, visa prevenir que atos de órgãos públicos sejam baseados em informações sigilosas, ignoradas pelo interessado, que lhe subtrai qualquer possibilidade de contraste ou defesa, caracterizando uma nova garantia constitucional. É de fundamental importância em nosso país, tendo em vista que atravessamos recentemente por um período de Ditadura Militar, onde pessoas eram perseguidas e fiscalizadas, fazendo-se banco de dados de supostos inimigos do Estado, muitas vezes aplicando-lhes o rótulo de perigoso para a sociedade, o que, em verdade, não condiz realmente com a prática de um Estado Democrático.
José Afonso da Silva (2003, p. 451), citando ensinamento de Firmín M. Prats, diz que o habeas data é um remédio constitucional que tem por objeto proteger a esfera interna dos indivíduos contra: a) os abusos dos registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; b) introdução nestes registros de dados sensíveis (como os de orientação sexual, origem racial, religião etc.) e, c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos previstos em lei.
Desse modo, prevalece o entendimento que aquelas duas finalidades constantes no habeas data – acesso à informação e direito de retificação - são ontologicamente distintas e materialmente separadas. Neste sentido, afirmando a independência e autonomia destas finalidades, dispõe Luiz A. D. Araujo (2008, p. 210):
Veja-se que, denegado o acesso à informação por meio de pedido dirigido ao titular do registro, surgiria a condição da ação para a impetração da ordem dentro da primeira finalidade. Obtido o êxito pretendido, surgiria nova realidade, novo pedido deveria ser dirigido ao titular do órgão informativo e, ante eventual denegação, novo habeas data deveria ser impetrado, agora com o objetivo de realizar o direito de retificação dentro das especificações apontadas.
Prossegue o referido doutrinador, destacando as hipóteses em que as informações não serão passíveis de comprovação em juízo, dado o grau de subjetividade e complexidade que trazem. Nestes casos, afirma ele, deve prevalecer a informação proposta pelo impetrante, em virtude do postulado e direito à autodeterminação informativa.
Pelo exposto, fica notório que o objeto do habeas data pode ser a simples informação ou, se o impetrante já a conhecer, a retificação; e, agora, com inovação trazida pela lei 9.507/97 (art. 7º), pode ser também a anotação de esclarecimentos ou justificativas no registro de dados. Todas as modalidades podendo fazer parte de pedido em um único processo. Como sujeito ativo ter-se-á a pessoa, brasileira ou estrangeira a que se refere à informação. Como sujeito passivo pode ser tanto a entidade governamental, como a de caráter público que contenha os registros ou banco de dados sobre a pessoa.
O processo estabelecido pela lei 9.507/97 assemelha-se ao do mandado de segurança (lei 1.533/51). Vale ressaltar que o rito será o sumaríssimo, compreendendo: despacho da inicial; notificação à autoridade coatora para prestar as informações no prazo de 10 dias (art. 9º); manifestação do Ministério Público em 5 dias; a seguir os autos vão conclusos ao juiz para proferir a decisão em 5 dias.
Segundo Di Pietro (2007, p. 703) os recursos referidos na lei do habeas data são:
a) Apelação contra o despacho de indeferimento (parágrafo único do art. 10);
b) Apelação da decisão de mérito, apenas com efeito devolutivo, se na decisão for concedida a habeas data.
c) Agravo contra decisão do Presidente do tribunal ao qual competir o conhecimento do recurso que suspender a execução da sentença (art. 16)
Admite-se a renovação do pedido de habeas data desde que a decisão denegatória não houver apreciado o mérito (art. 18). E há prioridade para os processos de habeas data contra todos os outros, a exceção do de habeas corpus e mandado de segurança (art. 19).
A competência para apreciação do habeas data está disposta no art. 20 da lei 9.507/97 e na Constituição em seus artigos.: 102, I, d e II, a; 105, I, b; 108, I, c; 109, VIII; 114, IV; 121, § 4, V.
No art. 21, repetindo o enunciado do art. 5, LXXVII, da CF, estabelece a gratuidade do processo judicial de habeas data, assim como do procedimento administrativo referente ao acesso à informação, retificação de dados ou inclusão de anotações.
A Constituição Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo político-jurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que se oculta. Com esta vedação pretendeu o constituinte tornar efetivamente legítima, em face dos destinatários do poder, a prática das instituições do Estado. O habeas data configura remédio jurídico-processual, de natureza constitucional, que se destina a garantir, em favor da pessoa interessada, o exercício de pretensão jurídica discernível em seu tríplice aspecto: (a) direito de acesso aos registros; (b) direito de retificação dos registros; e (c) direito de complementação dos registros. Trata-se de relevante instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, a qual representa, no plano institucional, a mais expressiva reação jurídica do Estado às situações que lesem, efetiva ou potencialmente, os direitos fundamentais da pessoa, quaisquer que sejam as dimensões em que estes se projetem (...)[1].
BIBLIOGRAFIA
ARAUJO, Luiz A. D.; NUNES JUNIOR, Vidal S. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. e atual. Sao paulo: Saraiva, 2008.
DI PIETRO, Maria S. Z. Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel G. Curso de direito Constitucional. 33 ed. Rev e atual. – São Paulo: Saraiva, 2007.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª edição. São Paulo. Malheiros, 2003.
¹ Em um mesmo dispositivo pode coexistir tranquilamente os dois, como por exemplo no art. 5, X, da CF, onde na primeira parte assegura-se o direito material da intimidade, privacidade, honra e imagem, já a segunda parte, possui caráter assecuratório, garantindo o direito a reparação.
² O direito a retificação existe mesmo diante de eventual informação verdadeira, desde que está implique violação à lei ou à Constituição. Uma informação verdadeira que contenha dados sobre a orientação sexual do cidadão, viola sua intimidade, e é, portanto, passível de correção por habeas data. O mesmo se diga nos casos de complementação, quando por exemplo há a necessidade de se alterar dados obsoletos referentes a profissionalização.
³ Art. 1, da lei 9507/97: “considera-se de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo de órgão ou entidade produtora ou depositária das informações”.
[1] STF, RHD 22, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 19-9-1991, DJ, 1 set 1995, p. 27378, JUIS n. 7.
Delegado de Polícia no Estado do Espírito Santo. Já foi: Advogado, Policial Rodoviário Federal, Perito Papiloscópico da Policia Civil da Bahia, Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Pós-Graduado em nível de Especialização Latu Sensu em Gestão Pública e em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Luis Eduardo Rolin Carneiro de. Habeas Data Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39492/habeas-data. Acesso em: 22 nov 2024.
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