RESUMO: O objetivo do presente trabalho é apresentar a visão doutrinária e jurisprudencial do instituto da filiação socioafetiva e da desbiologização da paternidade.
O real sentido da relação paterno-filial ultrapassa a lei e o sangue, não podendo ser determinada por escrito nem comprovada em laboratórios, já que tais vínculos são mais sólidos, mais profundos e “invisíveis” aos olhos da ciência, mas são visíveis àqueles que não têm os olhos limitados, os quais são capazes de enxergar os verdadeiros laços que tornam alguém um “pai”: os laços afetivos. De tal forma que os verdadeiros pais são aqueles que cuidam, educam, acarinham, amam e dedicam sua vida a uma criança.
O direito de família contemporâneo caminha a passos largos para o direito de filiação desbiologizado, no qual se retira o vínculo biológico da posição central e se predomina a relação de afeto entre pai e filho, sendo as relações familiares baseadas na afetividade. No conflito, preferem-se os pais sociológicos aos pais biológicos ou naturais.
Nesse ponto, concentra-se o presente trabalho que realiza um estudo detido sobre a filiação socioafetiva e objetiva demonstrar que o afeto está apto a determinar a verdadeira relação de parentesco.
Primeiramente, cabe asseverar que, apesar de não estar expresso no Código Civil de 2002, na Jornada de Direito Civil ocorrida no Superior Tribunal de Justiça, entre os dias 11 e 13 de junho de 2002, aprovou-se proposição no sentido de que o parentesco civil descrito no art. 1.593 não decorre somente da adoção, mas também da filiação proveniente de reprodução assistida heteróloga e da paternidade socioafetiva, fundamentada na posse de estado de filho[1].
Nesse sentido é o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, no qual se asseverou que o art. 1.593 do Código Civil deve ser interpretado de modo amplo de forma a reconhecer também como parentesco civil o vínculo decorrente da relação socioafetiva, não sendo o parentesco civil restrito à adoção judicial. Vale destacar trecho na íntegra do referido acórdão[2]:
O parentesco civil, no Código Civil de 1916, sempre foi havido como aquele oriundo somente de adoção. Todavia, o atual Código Civil, em seu artigo 1.593, dispõe que o “parentesco pode ser natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”, referindo-se de modo amplo ao parentesco civil, como sendo aquele que resulta de outra origem que não seja a consangüinidade, possibilitando, assim, outras interpretações. Entre essas interpretações, encontra-se aquela que reconhece, também como parentesco civil, o oriundo de relação sócio-afetiva, que não se restringe à adoção. E dentre tais relações sócio-afetivas estão aquelas antes vistas, em que um homem registra filho alheio como seu, hipótese dos autos. A paternidade sócio-afetiva, portanto, passou a ter apoio legal.
Destarte, resta induvidoso que, se a expressão “outra origem” significasse apenas a adoção judicial, bastaria ao legislador ter repetido a regra do Código Civil de 1916. Ademais, numa interpretação rápida poder-se-ia pensar que o art. 1.593 do Código Civil de 2002[3] estaria restrito aos filhos originados de técnicas de reprodução artificial, ou seja, inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, inc. V). Todavia, essa norma engloba também a paternidade e a maternidade socioafetivas, cujo vínculo não decorre de laços de sangue, mas, sim, de reconhecimento social e afetivo da relação paterno-filial[4].
No mesmo intento de demonstrar a aceitação da filiação socioafetiva pela legislação vigente, apesar da inexistência de disposição expressa, cabe destacar as observações de Paulo Luiz Netto Lobo[5], o qual assevera que a Constituição Federal de 1988 em momento algum confundiu os conceitos de genitor e pai ou deu primazia à paternidade biológica, tendo optado claramente pela filiação socioafetiva, a saber:
Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica: todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, §6º); a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§5º e 6º); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §4º), não sendo relevante a origem ou a existência de outro pai (genitor); o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, caput).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o referido autor demonstra que o Código Civil de 2002 também fez clara opção pela filiação sociológica e conclui que diante de todos esses conceitos e textos normativos não há como se afirmar a primazia da paternidade biológica e muito menos a sua exclusividade. Vale citar os comentários de Paulo Luiz Netto Lôbo aos referidos dispositivos[6]:
a) art. 1.593 – o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem. (...) A norma, ao contrário do persistente equívoco da jurisprudência, inclusive a do STJ, é inclusiva, pois não atribui primazia à origem biológica – a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade; b) art. 1.596 – reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento [...], ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. [...] c) art. 1.597, V – admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com a utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior; d) art. 1.605 – consagrador da posse de estado de filiação quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificativamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. e) art. 1.614 – contém duas normas, demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não e imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois se admite a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida. A segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos aos adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após o seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia.
Pode-se dizer que a partir do princípio da igualdade na filiação trazido pela Carta Magna e aplicado à toda a legislação infraconstitucional, instaurou-se a busca pela verdadeira paternidade. Como já demonstrado, a paternidade, primeiramente, era encontrada com a presunção pater is est, ou seja, o pai era necessariamente o marido da mãe. Mas, em verdade, o verdadeiro pai nem sempre é aquele que a lei determina como tal. Posteriormente, buscou-se derrubar a verdade jurídica da filiação por meio dos avanços científicos, ocorrendo a sacralização da paternidade biológica, pois esta oferece quase 100% de certeza da identidade do genitor através de testes hematológicos, mais especificamente, o exame de DNA. Assim, chegou-se à segunda vertente da filiação, a verdade biológica.
Todavia, mais uma vez, o verdadeiro pai pode não ser aquele que os laudos laboratoriais afirmam. Aparece, então, a terceira vertente da filiação e esta sim pode ser considerada a verdadeira paternidade. O real sentido da relação paterno-filial ultrapassa a lei e o sangue, não podendo ser determinada por escrito nem comprovada em laboratórios, já que tais vínculos são mais sólidos e mais profundos. São “invisíveis” aos olhos da ciência, mas são visíveis àqueles que não têm os olhos limitados, que são capazes de enxergar os verdadeiros laços que tornam alguém um “pai” – os laços afetivos –, de tal forma que os verdadeiros pais são aqueles que cuidam, educam, acarinham, amam e “dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e se dispor a dá-lo. Pais nos quais a criança busca carinho, atenção e conforto, sendo estes para os sentidos dela o seu porto seguro”[7].
Nesse sentido, Rosana Fachin[8] assevera que diante do novo modelo de família deve-se buscar equilibrar a verdade biológica e afetiva, senão:
O filho é mais que um descendente genético e se revela numa relação construída no afeto cotidiano. Em determinados casos, a verdade biológica cede espaço à “verdade do coração”. Na construção da nova família deve-se procurar equilibrar essas duas vertentes, a relação biológica e a relação socioafetiva.
Rodrigo da Cunha Pereira[9] assevera que, segundo a psicanálise, a paternidade constitui uma função e é essa que é determinante e estruturante dos sujeitos. Portanto, o papel de pai e mãe não precisa ser necessariamente exercido pelos genitores. Qualquer pessoa poderá ocupar esse lugar, desde que exerça essa função. Assim, a figura do pai ou mãe pode ser assumida por uma série de pessoas ou personagens, como: o “genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção...”. Enfim, aquele indivíduo que exerce a função de pai.
Assim, percebe-se que, de acordo com a nova estrutura da família brasileira eudemonista, adquire maior importância para a configuração da relação de paternidade e/ou maternidade os laços afetivos, não sendo mais suficiente a ascendência genética ou o vínculo jurídico, sendo basilar para este novo modelo de família a integração dos pais e filhos através do afeto.
Sendo o verdadeiro sentido da relação paterno-filial muito mais profundo que a filiação biológica, no qual o cuidado, a atenção, o amor filial e a dedicação paterna revelam uma verdade afetiva, um vínculo construído na convivência diária e no reiterado tratamento afetivo entre pai, mãe e “filho do coração”, formando verdadeiros laços de afeto, nem sempre encontrados na paternidade biológica. Assim, “há um nascimento fisiológico e, por assim dizer, um nascimento emocional. É nesse, sobretudo, que a paternidade se define e se revela”[10].
Segundo João Baptista Villela, que já em 1979, antes mesmo da publicação da Constituição Federal de 1988, já escrevia sobre a desbiologização da paternidade, a paternidade propriamente dita não é um fato da natureza, mas sim um fato cultural. Assim:
Embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação[11].
Assim, neste momento cabe diferenciar as noções de genitor e de pai. De acordo com a noção contemporânea de família, a terminologia “genitor” não é mais tratada como sinônimo de “pai”. Ambas caracterizam conceitos diversos, haja vista a larga diferença imposta pelos avanços sociais, técnicos e genéticos.
Com efeito, genitor é o que gera, aquele que concebe geneticamente um ser humano, seja pelos meios naturais, seja pela procriação artificial. Ser o genitor de um ser não significa necessariamente que é (ou será) o pai deste indivíduo.
Como bem colocado por Eduardo de Oliveira Leite, pai e genitor são dois conceitos distintos que podem ou não estar presente conjuntamente numa mesma pessoa. Todavia, o legislador brasileiro ao priorizar o vínculo biológico, fazendo depender a paternidade do exame de DNA, termina por confundir essas duas noções, uma vez que, qualquer homem que tenha capacidade instrumental para gerar pode ser genitor, entretanto, para ocupar a posição de pai é necessário mais que ser o mero genitor daquela pessoa, ultrapassando a ideia de reprodução[12].
Como assevera Luiz Edson Fachin[13], “paternidade e ascendência genética são conceitos que nem sempre se identificam no mesmo sujeito”. Prossegue o mesmo autor asseverando que por mais impressionante que tenham sido os efeitos decorrentes do exame de DNA na determinação da ascendência genética (e não na determinação da paternidade, como se pretende equivocadamente), o pai não é aquele que o exame hematológico definiu como tal. Veja-se, com Eduardo Leite, que “nunca foi. Não é e nunca será. Porque a descendência genética é um mero dado, enquanto a filiação afetiva se constrói”[14].
A verdade biológica predominou no final do século passado e ainda continua a ser valorizada nos dias de hoje. Todavia, com as grandes mudanças pelas quais vem passando o direito de família e, especificamente, o direito de filiação, parte da doutrina já defende a tese da desbiologização da paternidade. Nesse sentido, vale destacar as importantes conclusões de Zeno Veloso [15], a saber:
Em suma: paradoxalmente, nas vésperas de um novo milênio, a poderosíssima prova do DNA, em muitos casos, pode não ter importância nenhuma, pode não ter qualquer serventia, pode não interessar coisa alguma, porque a verdade que se busca e se quer revelar e prestigiar, nos aludidos casos, não é a verdade do sangue, mas a verdade que brota exuberante dos sentimentos, dos brados da alma e dos apelos do coração.
A desbiologização da paternidade é, portanto, o fenômeno da dissociação entre a figura paterna e o status de genitor de um ser. Como pode se verificar, o direito de família contemporâneo caminha a passos largos para o direito de filiação desbiologizado, no qual se retira o vínculo biológico da posição central e predomina a relação de afeto entre pai e filho, sendo as relações familiares baseadas na afetividade. Preferem-se os pais sociológicos aos pais biológicos ou naturais.
Segundo Zeno Veloso[16], pai não pode ser somente aquele que forneceu o espermatozóide e sim aquele que convive cotidianamente com o filho, que cria, educa, dá carinho, enfim, que assume o papel de pai, sendo esta, a filiação a ser consagrada, diante do conflito entre a paternidade biológica e a paternidade afetiva, senão:
Sem dúvida, é genitor o cavalheiro que expeliu o espermatozóide que fecundou o óvulo. Mas quem deve ser o pai? Este, ou o cidadão que acolheu e embalou a criança, que a acompanha à escola, ao estádio de futebol? Que a assiste, alimenta, corrige, educa, cria? Que ama o filho? Se há conflito, e o pai biológico não é o pai sócio-afetivo, como decidir? Com certeza absoluta, não é o laudo molecular que resolverá o problema. Afinal, a paternidade se faz e se constrói. A paternidade mais viva, autêntica e apreciável implica uma adoção que se renova a cada dia. A disciplina jurídica das relações de parentesco entre pai e filhos não atende, exclusivamente, quer valores biológicos, quer juízos sociológicos, expõe LUIZ EDSON FACHIN, concluindo: “É uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos ou abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos”.
Na adoção e na inseminação artificial heteróloga pode se verificar claramente a distinção entre o pai e o genitor, em que nem sempre aqueles que procriam uma criança são os que a criam. Em ambas as situações, os filhos não nascem a partir de um dado genético, mas do coração, do livre desejo de atuar como pai ou mãe de uma criança.
Todavia, com a teoria da desbiologização não se busca eliminar ou desconsiderar completamente a filiação biológica e sim incluir na relação paterno-filial os laços de afeto.
Desse modo, com a tese da desbiologização põe-se termo à idéia que predominou por muito tempo em matéria de filiação de que a única forma de se estabelecer a paternidade era por meio da troca de material genético, nascendo outra verdade da filiação, “a verdade do coração, dos sentimentos”[17], calcada na idéia de que “ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir”[18].
Nesse sentido, Rose Melo Venceslau[19] assevera que o verdadeiro sentido da relação paterno-filial transcende às disposições legais e ao vínculo consangüíneo, in verbis:
Pai é aquele que vulgarmente se diz que “botou o filho no mundo”, fato a que o Direito atribui responsabilidade. Por conseguinte, pai não é apenas o genitor, ao contrário, é aquele que assume a responsabilidade que o Direito lhe impõe. E essa responsabilidade consiste em cuidar, educar, alimentar, proteger... Enfim, é o exercício contínuo de uma função.
[...]
Desta forma, não se pode aceitar que a paternidade seja submetida a um reducionismo biológico. A consangüinidade ainda é determinante do parentesco, mas não só ela. A afetividade se apresenta como um critério tão relevante quanto o biológico, podendo até prevalecer em alguns casos. Exemplo disto é a adoção e a fecundação heteróloga, onde os pais, independentemente de laço de sangue, adotam seus filhos, fazendo-os nascer do coração.
A jurisprudência nacional vem paulatina e reiteradamente decidindo a favor da tese da desbiologização, dando predominância à filiação socioafetiva em detrimento do vínculo biológico, senão vejamos:
EMENTA: DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE RECONHECIMENTO. MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PREPONDERÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DA ESTABILIDADE FAMILIAR.
[...]
Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação [...].[20]
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGUÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.
[...]
- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.
- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.
Recurso conhecido e provido[21].
ALIMENTOS. MAIORIDADE. ADOÇÃO SIMULADA. O fato de ter registrado a autora como sua filha biológica, mesmo sabendo que não era, alterando a verdade dos fatos, por sua livre e espontânea vontade, caracteriza o que doutrina e jurisprudência denominam de adoção simulada, assumindo, desta forma, todos os deveres inerentes à paternidade, sem qualquer diferenciação da prole natural (art. 226, § 6º, CF). A paternidade, muito mais do que um evento meramente biológico, é um fenômeno social, merecendo prestígio a verdade socioafetiva. Filho não é algo descartável, que se assume quando desejado e se dispensa quando conveniente (...). [22]
Portanto, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial pode-se afirmar que a verdadeira filiação não é aquela determinada pela origem genética, mas sim aquela calcada nos laços de afeto, sendo que na concepção atual de família, as relações paterno-filiais são fundamentadas na afetividade, tendo sido construída a filiação sociológica.
A verdadeira filiação não é aquela determinada pela origem genética, mas sim aquela calcada nos laços de afeto, sendo que na concepção atual de família, as relações paterno-filiais são fundamentadas na afetividade, tendo sido construída a terceira verdade da filiação, a filiação sociológica. Essencialmente, a verdadeira filiação se constitui do afeto que une pais e filhos, havendo ou não vínculo biológico entre eles.
O ordenamento jurídico pátrio reconhece o valor jurídico do afeto, ao estabelecer a adoção, que é calcada na escolha afetiva, ou seja, na vontade e no afeto, independentemente, dos vínculos biológicos.
A doutrina e a jurisprudência nacional vem paulatina e reiteradamente reconhecendo o vínculo de parentesco oriundo das relações afetivas e, com isso, deferindo ao filho afetivo todos os direitos e deveres advindos dessa relação paterno-filial, sejam morais ou patrimoniais.
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WALD, Arnold e FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da.Direito Civil: direito de família.vol. V. 17. ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] “Art. 1.593. o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho”. Cf. FACHIN, Rosana. Da filiação. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice. (Coord.). Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 117.
[2] BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Sexta Turma Cível. APC – 0000622-54.2007.807.0005 DF (2007 05 1 000622-7). Relator: Des. José Divino de Oliveira. j. 03/12/2008, DJ de 18/12/2008, p. 79. Nesse mesmo sentido, Cf.BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1000356/SP (2007/0252697-5). Relator Min. Nancy Andrighi. j. 25/05/2010, DJ de 07/06/2010.
[3] BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 12 dez. 2011.
[4] WALD, Arnold; FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da.Direito Civil: direito de família. Vol. V, 17. ed. Reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 358.
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a real. Revista CEJ, Brasília, n. 34, p. 15 a 21, jul./set. 2006, p. 17.
[6] Ibidem, loc. cit.
[7] NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras Nogueira. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001, p. 84.
[8] FACHIN, Rosana. Da filiação. In Pereira, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice (Coord.). Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 121.
[9] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. apud DONIZETTI, Leila. Filiação Socioafetiva e direito à identidade genética. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 31.
[10] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 71, p. 45-51, jul./set. 1980, p.47.
[11] Ibid., p.48.
[12] LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o limite entre o genitor e o pai. In Leite, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 77.
[13] FACHIN, Luiz Edson. Paternidade e ascendência genética. In Leite, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 164.
[14] LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o limite entre o genitor e o pai. In Leite, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 40.
[15] VELOSO, Zeno. A sacralização do DNA na investigação de paternidade. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 389.
[16] FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 29.
[17] LEITE, Eduardo de Oliveira. Exame de DNA, ou, o limite entre o genitor e o pai. In LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes Temas da Atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 79.
[18] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 71, p. 45-51, jul./set. 1980, p. 49.
[19] VENCESLAU, Rose Melo. O elo perdido da filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vínculo paterno-filial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 118-119.
[20] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1000356/SP (2007/0252697-5). Relator Min. Nancy Andrighi. j. 25/05/2010, DJ de 07/06/2010.
[21] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Terceira Turma. REsp878941/DF (2006/0086284-0). Relatora Min. Nancy Andrigui. j. 21/08/2007, DJ de 17/09/2007, p. 267.
[22] BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível nº. 70004778619. Relatora Des. Luiz Felipe Brasil Santos. j. 18/12/2002.
Procuradora do Estado de São Paulo. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduada em Direito do Estado pelo JusPodivm.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NERI, Renata Viana. Da filiação socioafetiva: a desbiologização da paternidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39602/da-filiacao-socioafetiva-a-desbiologizacao-da-paternidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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