RESUMO: Ingeborg Maus, socióloga alemã e autora do expoente “O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’”, atenta para a posição de supremacia assumida pelo Poder Judiciário nos últimos anos, alçado à qualidade de “pai” e ditador dos valores de uma sociedade essencialmente carente de tutela e, portanto, “órfã”. Referido texto nos servirá de norte a fim de traçarmos um paralelo com o momento de criação no Brasil do Conselho Nacional de Justiça (pela Emenda Constitucional n. 45/2004) que, com quase dez anos de sua instituição, parece invariavelmente se apresentar como instrumento de contenção do Judiciário, apesar das polêmicas em torno de sua essência.
Palavras-chave: Sociedade Órfã. Supremacia do Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Controle.
The brazilian national council of justice: contention instrument for the judiciary as the society “superego”?
Keywords: Orphan Society. The Judiciary empowerment. Brazilian National Council of Justice. Control.
Ainda que o texto que ora inspira nossas reflexões – “O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’” – tenha sido escrito com base na realidade da Corte Constitucional Alemã e reconhecendo, de imediato, o risco da imigração das idéias[1], não há como não trazer para a realidade da Suprema Corte Brasileira as ponderações ali construídas por sua autora, Ingeborg Maus.
A professora e socióloga alemã faz questão de pontuar acerca do fenômeno do aumento de atribuições da corte constitucional alemã, bem como da excessiva evidenciação da pessoa do magistrado, levado à condição de celebridade, figura exemplar, espelho moral e símbolo do homem virtuoso, de qualidades irrepreensíveis.
No Brasil tem-se construído um cenário muito próximo do descrito por Maus, na medida em que a população já reconhece os Ministros da Suprema Corte Brasileira e acompanha com curiosidade pela televisão os julgamentos de grande repercussão nacional. O atual presidente da Suprema Corte, Joaquim Barbosa, goza de notório reconhecimento e vez ou outra é conclamado a assumir a presidência do país e suas frases antológicas são repetidamente reproduzidas em redes sociais e estampam as notícias do dia.
Ainda que vez ou outra algum meio de comunicação possa colocar em xeque a imparcialidade decisória de algum Ministro (em razão de sua indicação, em um processo eminentemente político), parece repousar no inconsciente da população um sentimento geral de confiança e apoio aos atos muitas vezes dotados do mais puro “ativismo judicial”. De toda forma, antes de qualquer outra digressão, é preciso reconhecer que o título do presente estudo pode, em verdade, se apresentar muito mais como uma simples releitura do texto de Ingeborg Maus e às consequências de um ativismo judicial, do que um caminho para se chegar a uma resposta positiva ao questionamento que repousa neste mesmo título. Isto se dá, em razão de um fator que de pronto merece ser antecipado e que nos parece um obstáculo à obtenção de uma resposta afirmativa ao questionamento ali aposto e diz respeito à própria formação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem como seu presidente, o Presidente do Supremo Tribunal Federal.
É preciso superar este empecilho na tentativa de traçar um retrato do CNJ desde sua criação (com a Emenda Constitucional 45/2004) até o presente momento, há mais de oito anos de sua efetiva instalação (que se deu em 14 de junho de 2005), a fim de se verificar se o mesmo tem cumprido com sua missão constitucional ou se presta a ser mais um órgão a maquiar dados e sobrecarregar ainda mais a máquina pública.
Decerto que apesar do obstáculo acima antecipado, não se pode perder de vista o exercício de reflexão que pretende reforçar traços de um Judiciário que reconhece a necessidade de possuir freios, de se autorregular e este é o esforço que ora se buscou empreender. Pretendeu-se, tendo por base teórica o célebre artigo de Ingeborg Maus, encontrar paralelos na realidade brasileira e trazê-lo para o momento de criação do Conselho Nacional de Justiça, como exponencial instrumento de “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, §4º, Constituição Federal de 1988).
Nesta ordem, e em um primeiro momento, oportuno um olhar sobre a obra que inspira nossas reflexões e, portanto, um debruçar sobre o texto que nos serve de referência (e seus desdobramentos) se faz premente. Feitas algumas considerações iniciais acerca do texto em questão, compulsório o enfrentamento de temática que necessariamente guarda correlação com todo o estudo aqui proposto: o ativismo judicial e a “judicialização da política”. Na sequência, entendemos necessário contextualizar citado texto com o cenário brasileiro, momento em que passaremos ao momento da criação (com a Emenda Constitucional 45/2004) e instituição do Conselho Nacional de Justiça e tudo o que isto representou e tem representado para o Judiciário Brasileiro. Finalmente, nestas reflexões acerca do CNJ, julgamos de interesse geral, um olhar geral sob as atribuições que hoje têm sido abarcadas por citado Conselho, especialmente, na tentativa de se firmar como um órgão de importância no cenário brasileiro.
O texto que ora nos serve de referência se desenrola em um momento em que se descortinava na Europa o paradigma do Estado de bem-estar, momento em que teria ocorrido um incremento dos poderes e competências do Poder Judiciário alemão, especialmente o de sua Corte Constitucional. Segundo sua autora – Ingeborg Maus, tal crescimento se deu em razão de um novo tipo de abordagem hermenêutica que passou a ser realizado pela Corte, que não mais se contentava em aplicar apenas o direito posto, mas se pautava, principalmente, em aspectos de ordem moral.
Por muito tempo jugulado pelo direito formal burguês e ante a proeminência do Poder Legislativo, o Judiciário ao longo de todo o século XIX se sustentava sob jugo do paradigma liberal, da ideia do juiz la bouche de la loi, tendo sido o advento do Estado de bem-estar social um sopro de renovação muito esperado. Os juízes alemães reivindicavam cada vez mais e mais poderes, por intermédio de sua Associação, já sob a égide da famigerada Constituição de Weimar. A instauração do regime nazista corroborou para alimentar o inconsciente coletivo de que os juízes encarnavam o modelo ideal de “moralidade” do povo alemão. Esses juízes seriam responsáveis pela unidade schmittiana daquele povo e, portanto, embalados por um tipo de autorização dada pelo III Reich para que eles se desligassem das “muletas da lei” e pudessem levar adiante o projeto de “unificação”.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o restabelecimento do regime democrático, o Judiciário Alemão se reafirma em seu papel e sustenta o alargamento de suas competências e de seus poderes recém-adquiridos. Confortável nesta posição, a Corte Constitucional Alemã passa a criar doutrinas, donde citamos a reconhecida “jurisprudências de valores”, julgando de acordo com cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados e outros parâmetros abertos que não guardavam vinculação à letra da Constituição Alemã.
Diante de todo este cenário, Maus descreve o panorama das mudanças que marcam seu texto. Com a dessacralização da sociedade e a queda da monarquia (monarca), que durante muito tempo ocupou o centro da vida e de direção da sociedade, “o povo alemão perdeu indubitavelmente um importante símbolo de sua unidade”[2]. Esta sociedade, então livre desta figura central que ditava todos os aspectos de sua vida, segue sem um “censor moral”, se tornando, portanto, “órfã”. A “sociedade órfã” que não dispunha do livre acesso à emancipação moral, buscava por um “pai” que lhe outorgasse os principais valores tidos por ele como os mais relevantes. Transpõe-se, portanto, para o Judiciário esse vazio, essa ausência, passando o mesmo a representar o “superego” desta sociedade carente de tutela. O “superego” (Überich), vale reforçar, como representação psicanalítica que diz respeito a uma das três instâncias do aparelho psíquico (ego, id, superego), representa a parte moral da mente humana, responsável pelos valores presentes em uma determinada sociedade[3]. Tanto para Freud quanto para Lacan, o “pai” seria a figura da lei, o definidor do ego. Seria, enquanto senhor da mulher e ameaça de castração para os filhos, a origem, o fundamento e a realização daquilo que constitui a lei[4]. Nota-se, por todas estas referências à psicanálise feitas por Maus, as sutilezas do inconsciente coletivo na busca por quem fizesse as vezes deste verdadeiro referencial de controle.
No esforço de construção e reforço de seu pensamento, Maus ultrapassa as fronteiras da Alemanha e cita que o “retorno mais marcante da imagem do pai parece revelar-se no exame da jurisdição constitucional dos Estados Unidos”[5]. A autora chama especial atenção para a vasta literatura a versar sobre a biografia de juízes da Suprema Corte norte-americana, tratando-os como verdadeiros “profetas” e “deuses do Olimpo”, incutindo-se, portanto, a ideia de que “os pressupostos para uma decisão racional e justa residem exatamente na formação da personalidade de juízes”[6].
Esta dita “centralização da ‘consciência’ social na Justiça”[7] é por demais preocupante, na medida em que se eliminariam discussões e procedimentos no processo de construção política do consenso. Neste ponto, “a inclusão da moral no direito, imuniza a atividade jurisprudencial perante a crítica à qual originariamente deveria estar sujeita”[8]. E Maus conclui:
Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao que normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social[9].
Neste panorama, não podemos deixar de reconhecer os traços (e os riscos) do tão propalado ativismo judicial, que sob o discurso das omissões e mazelas de outros poderes dormentes, reforça o confortável quadro até então desenhado de supremacia e falta de controle social sobre o Judiciário. Sobre esta questão, trataremos de tecer maiores pormenores no tópico seguinte.
De toda forma, reconhecendo a citada “centralização da ‘consciência’ social na Justiça”, a autora continua suas reflexões chamando a atenção para os riscos da aproximação entre a Jurisprudência e a moral. Neste sentido, Maus se apressa em criticar Ronald Dworkin, que seria a “expressão plena do pensamento dominante de que o direito e moral não podem ser separados na atividade jurisprudencial”[10]. Segundo a autora, citada teoria encobriria um decisionismo judicial, em franco detrimento das normas jurídicas, perpetuando-se uma “relação indeterminada entre a moral atribuída ao direito e as convicções morais de uma sociedade”. Nesta dinâmica, “a moral que deve dirigir a interpretação do juiz, torna-se produto de sua interpretação”[11].
Invariavelmente, Maus é criticada[12] por ter direcionado mal sua crítica à Dworkin, não tendo se preocupado em destrinchar a teoria dworkiniana com base em sua principal distinção, pautada em “argumentos de princípio” e “argumentos de política”[13]. Segundo tal distinção, os ditos “argumentos de política” justificariam uma decisão política, de forma a proteger algum objetivo coletivo de determinada comunidade como um todo. Os “argumentos de princípio”, por sua vez, justificariam uma decisão política, evidenciando que a mesma se deu com o devido respeito ao direito de um indivíduo ou de um grupo. Nesta proposta, os juízes decidiriam de acordo com a integridade do direito, agindo como membros de uma comunidade de princípios. Por este viés, o que Dworkin chama de “moralidade política” seria um todo coerente de virtudes normativas, como justiça e integridade e não a moral criticada por Maus.
No desenvolvimento de toda esta crítica, Alexandre Gustavo Melo Bahia, pondera:
(...) o diagnóstico de Maus é extremamente pertinente; mas a crítica é mal dirigida. Ela seria melhor endereçada à própria Corte Constitucional Alemã e a autores como Robert Alexy. Para Alexy, os princípios jurídicos seriam mandados de otimização que obedecem a uma “lei de ponderação”: quanto menor o grau de satisfação de um princípio, maior deve ser o grau da satisfação do princípio correspondente. Isto implica que, em casos de colisão de princípios, um balanceamento seja possível. Neste balanceamento, dificilmente (já que há uma relativização) o juiz deixaria de fazer implicar na decisão aquilo que é bom para ele. Com isto, teríamos efetivamente o problema da assunção pelo Judiciário de uma eticidade (e não moralidade, como quer Maus) nociva ao pluralismo jurídico[14].
De toda forma, julgamos oportuno relembrar que Ronald Dworkin foi um ferrenho crítico do poder discricionário dos juízes, afirmando que “a opinião do juiz não oferece mais garantias de verdade do que a de qualquer outra pessoa”[15]. Baracho Júnior[16] explica muito bem este pensamento dworkiniano ao pontuar:
A integridade é dividida por Dworkin em integridade na legislação e integridade na aplicação. No primeiro caso, aqueles que criam a lei devem mantê-la coerente com seus princípios; no segundo, requer-se que aqueles responsáveis por decidir o sentido da lei busquem coerência com a integridade. Isso explicaria porque os juízes devem conceber o corpo de normas que eles administram como um todo, e não como um cenário de decisões discricionárias no qual eles são livres para fazer ou emendar as normas, uma a uma, com um interesse meramente estratégico. Grifamos.
Além do mais, Dworkin intuiu acerca da metáfora do “Juiz Hércules”[17], como um ser de capacidades e paciência sobre humanas, referência inalcançável da qual se serviu, acreditamos, especialmente para reforçar a “humanidade” dos magistrados. Neste ponto, acreditamos que Dworkin e Maus, mesmo que com propósitos diferentes, acabam por convergir na crítica contra a figura “intocada” dos juízes.
Transpostas todas estas questões iniciais, Ingeborg Maus passa a enfrentar todo o cenário, espacial e histórico, que culminou na provocação de um questionamento preliminar: “não será a justiça em sua atual conformação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”[18]. Sendo assim, promove uma “ideia de regressão”, que caracterizaria “o desenvolvimento do aparelho judicial estatal do século XX em face do ideal de autonomia das concepções constitucionais do século XVIII”[19].
Nesta dinâmica, traz à baila Emmanuel Sieyès com a sua ideia de “proteção paternal do poder do Estado”, bem como as reflexões de um Montesquieu que já temia o poder de interpretação dos tribunais em face da lei, acreditando que sem a respectiva limitação desta interpretação, “viver-se-ia na sociedade sem conhecer exatamente os vínculos a que se está sujeito”[20]. Montesquieu reforça a concepção de que em Estados despóticos não haveria lei e, portanto, o juiz toma a si próprio como lei, instaurando-se, desta forma, a ideia de que, em governos republicanos, a essência da Constituição se preserva com a obediência da letra da lei. Nasceria desta concepção, todo um ideal de liberdade que acaba por evidenciar a necessidade de se vincular ao aparelho estatal à atividade legislativa e esta, à vontade do povo. Neste imaginário, a vinculação do aparelho judicial e do Executivo ao Legislativo, nada mais faria do que submeter todo este aparato “à vontade legislativa do povo”.
Sob o primado do modelo clássico de separação de poderes, teria se instaurado um conceito de “autonomia social”, pautada na concepção moral do iluminismo. É neste ponto que Maus identifica como o momento em que se alteraria “aquela concepção das funções do superego os resultados do ‘crescimento natural’ do processo de socialização”. Sendo assim, com a ascensão da justiça como administradora da moral pública, o que lhe conferiria maior grau de legitimação, suas decisões ficariam imunes a qualquer crítica, como também haveria “uma liberação da Justiça de qualquer vinculação legal que pudesse garantir sua sintonização com a vontade popular”[21].
Neste cenário, Maus também chama a atenção para o fato de que a estrutura legal também se adéqua a esta “inversão das expectativas de direito”, com a multiplicação de expressões carregadas de teor moral como, “má fé, sem consciência, censurável”[22]. Dentro de todo este panorama, constrói-se uma permanente confiança popular, que acaba por fechar o ciclo, donde a justiça surge como instituição neutra, capaz de auxiliar de forma imparcial as partes envolvidas em conflitos de interesse.
A autora alerta para mais um perigo deste verdadeiro ciclo de perpetuação do judiciário como superego da sociedade, ao afirmar que o Tribunal Constitucional “submete todas as outras instâncias políticas à Constituição por ele interpretada e aos princípios suprapositivos por ele afirmados, enquanto se libera ele próprio de qualquer vinculação às regras constitucionais”[23]. E Maus, conclui, respondendo ao seu questionamento preliminar: “assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decidido na constituição ‘corretamente interpretada’, podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma ‘ordem de valores’ submetida à Constituição”. Desta feita, o grande risco de toda esta situação seria, aos olhos da autora, uma prática judiciária quase religiosa, uma veneração popular da justiça e os traços praticamente imperceptíveis deste superego constitucional, que coincidiria com “formações ‘naturais’ da consciência e tornando-se portador da tradição no sentido atribuído por Freud”[24], ou melhor, reproduzindo-se através das gerações.
Finalmente, deixando de lado algumas peculiaridades da realidade alemã das quais partem as reflexões de Maus e por onde a mesma se embrenha, a autora conclui seu texto com mensagem que nos é de grande valia, senão vejamos:
Com a apropriação dos espaços jurídicos livres por uma Justiça que faz das normas “livres” e das convenções morais o fundamento de suas atividades, reconhece-se a presença da coerção estatal, que na sociedade marcada pela delegação do superego se localiza na administração judicial da moral. A usurpação política da consciência torna pouco provável que as normas morais correntes mantenham seu caráter originário. Elas não conduzem a uma socialização da Justiça, mas sim a uma funcionalização das relações sociais, contra a qual as estruturas jurídicas formais outrora compunham uma barreira.
Diante de todo o exposto e como já fizemos questão de antecipar, as reflexões de Ingeborg Maus acerca das mais variadas atribuições avocadas pela Corte Constitucional de seu país, representam um referencial crítico para a análise de nosso Judiciário que a cada dia quer se firmar como Corte Constitucional e não apenas como última instância recursal. Não há como não reconhecermos nossa realidade nos perigos apontados pela autora, os riscos, delírios e legitimidades que se escondem por detrás de uma “justa” prestação jurisdicional. O fascínio por um Judiciário que chama para si as mazelas de seu povo e, promove um caminho sem volta em prol da realização das garantias constitucionais, é uma “propaganda” muito forte de se combater e a crítica tende a se tornar vazia.
De toda forma, nos mantemos firmas na nossa proposta inicial de buscar no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, um instrumento de contenção, na tentativa de frear o Judiciário brasileiro, uma vez reconhecendo em nosso ordenamento este ciclo comportamental que coloca os tribunais brasileiros e sua Corte Constitucional imune a certas críticas.
De toda forma, antes de adentrarmos na proposta propriamente dita deste estudo, julgamos interessante um olhar sobre o ativismo judicial como faceta deste Judiciário que se comporta como o “superego” desta sociedade carente de tutela e que orbita em busca da figura de um “pai”.
Como tivemos a oportunidade de antecipar, Ingeborg Maus, ao longo do texto que nos serve de norte, chama a atenção para o excesso de atribuições que a Corte Constitucional Alemã chamou para si, o que nos leva, invariavelmente, a pensar no peso do denominado “ativismo judicial” em todo este contexto. Desta feita, é preciso traçar algumas considerações sobre o tema, a fim de contemplarmos seus riscos e verdadeiras possibilidades.
É certo que existe todo um ambiente propício ao desenvolvimento do ativismo judicial (seja este ativismo entendido tanto como um posicionamento progressista quanto uma decisão conservadora), bem como à “judicialização da política” (figura invariavelmente atrelada ao ativismo), sendo os fatores mais recorrentemente citados: a existência de um sistema político democrático, a separação dos poderes, o exercício dos direitos políticos, o uso dos tribunais pelos grupos de interesse, o uso dos tribunais pela oposição e, por fim, a inefetividade das instituições majoritárias[25]. Há de se concluir, desde logo, que o cenário brasileiro se encontra, em maior ou menor escala, cercado por todos estes fatores. Também há de se concluir que existem outros fatores que serviriam de “propulsores” de tais fenômenos, tais como: a constitucionalização do Direito a partir do pós Segunda Guerra Mundial, um reforço no que diz respeito a temas atrelados ao reconhecimento e legitimidade dos Direitos Humanos, o exemplo institucional da Corte Suprema Americana e o Sistema europeu de controle concentrado de constitucionalidade das leis[26].
De toda forma, há de se reforçar que as reflexões acerca do ativismo judicial, vez e outra, voltam ao centro das discussões da teoria jurídica brasileira, alimentada pelos mais diferentes pontos de vista, no que vale a reflexão deste tópico. Em junho do corrente ano, quando da posse de Luís Roberto Barroso como Ministro da Suprema Corte brasileira, o tema insurge mais uma vez. Em entrevista[27], logo depois de assumir o cargo, Barroso afirmou não existir um “surto de ativismo judicial” e que a quantidade de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo seria ínfima. Na oportunidade, afirmou:
Não acho que o Brasil viva um problema que se possa denominar de ativismo judicial, se a essa expressão se quer emprestar um conteúdo negativo. É possível que uma ou outra decisão tenha provocado uma fricção maior entre o Supremo e o Congresso. Mas foram decisões excepcionais. No geral, ao contrário do que às vezes se pensa, o Supremo costuma ser deferente para com a atuação do Congresso. A quantidade de leis federais declaradas inconstitucionais é ínfima e, em casos mais emblemáticos, o Supremo manteve a decisão política do Congresso ou do Executivo. Isso se depreende de diversos casos.
Vale reforçar que, antes de Ministro da Suprema Corte, Barroso sempre foi jurista de referência em matéria constitucional, tendo sempre se posicionado sobre os riscos do ativismo judicial que rondava o Brasil, associado a “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes”[28].
De todo modo, levando-se em consideração a entrevista do Ministro, uma primeira observação se faz necessária: não haveria qualquer correlação entre a declaração de inconstitucionalidade de leis federais e o dito “ativismo judicial”. Atrelar uma coisa à outra, de fato, nos surpreende e subverte toda a dinâmica do tema. Coadunamos com o entendimento de que não se pode definir o grau de ativismo de uma Corte pelo número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIn rejeitadas ou deferidas. Ora, a questão vai além. Quando a Corte Constitucional declara a inconstitucionalidade de certa lei, nada mais faz do que exercer função essencial que lhe cabe.
De toda forma, na construção de nossas reflexões neste tópico e por conta das usuais aproximações feitas entre o ativismo judicial e a “judicialização da política”, entendemos oportuno, desde já, contextualizar devidamente o tema. Desta feita, lançamos mão de uma conceituação de ativismo judicial do próprio Ministro Barroso, que em artigo referência sobre o tema, pontuou:
(i) a aplicação direta da constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas[29].
É possível perceber, portanto, da ordem de fatores acima, todas as nuances que o tema assume. Não se trata, desta feita, da mera declaração de inconstitucionalidade, mas sim, a declaração “com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição”. Não basta a mera imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público, estas teriam de se dar em matéria de políticas públicas (neste ponto, há de se concluir, como veremos, como é tênue a linha que separa o ativismo da “judicialização da política”). Finalmente, prevaleceria a aplicação da Constituição a circunstâncias não contempladas expressamente em seu texto e sem qualquer manifestação do legislador ordinário.
A judicialização, por sua vez, de um modo mais amplo, se daria em três dimensões diferentes[30], em sendo: institucional, sociológica e lógico-argumentativa, onde “a primeira, diz respeito à transferência decisória do Executivo e Legislativo para o Judiciário, o qual passa a rever, inclusive, as regras de atuação democrática. A segunda, perpassa a solução de conflitos coletivos com o escopo de agregação social e promoção da cidadania realizada pelos magistrados. A terceira, transfere a lógica da argumentação política para a lógica jurídica, no que chamaram de “domesticação da política”[31]. Percebe-se nesta classificação de José Ribas Vieira, que a judicialização da política, que ora nos interessa diferençar do ativismo judicial, se encaixaria muito bem em uma dimensão institucional da judicialização, exatamente no aspecto de transferência das funções típicas do Executivo e do Legislativo para o Judiciário, a qual Ran Hirschl[32] denominou de “Juristocracia”.
Desta feita, é recorrente a compreensão de que a “judicialização da política” significaria: “1) a expansão da jurisdição das Cortes ou dos juízes ao âmbito dos políticos e/ou administradores, que é a transferência dos direitos de tomada de decisão advindos da legislatura, dos Ministérios, ou do serviço civil das Cortes, ou ao menos, 2) a propagação dos métodos judiciais de tomada de decisão para além da jurisdição apropriada”[33].
Apesar da proximidade entre os dois objetos que ora tentamos tratar de distinguir, Lênio Streck garante que é importante ter em mente que “judicializar a política pode não ser exatamente o mesmo que praticar ativismos. Aliás, não é o mesmo. Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. O problema é o ativismo (que é comportamental, espécie de behaviorismo cognitivo-interpretativo)”[34].
Trazendo para a realidade brasileira todas as facetas deste ativismo judicial, fica claro seu caráter marcadamente “formal ou jurisdicional”, que na classificação sugerida por Marshall[35], diz respeito à “resistência das cortes em aceitar os limites legalmente estabelecidos para sua atuação”. Nesta perspectiva, o STF parece constantemente alargar suas competências institucionais, processo que representaria, na tendência do texto de Maus que nos serve de referência, uma forma de centralização de seu poder.
No mais, julgamos oportuno mencionar uma das pesquisas mais abrangentes acerca da temática do ativismo e da judicialização no Brasil, de autoria da professora Thamy Pogrebinschi[36]. Citada autora levanta sete teses que pretendem desconstruir o imaginário jurídico-social de que o Supremo Tribunal Federal estaria judicializando a política, e ainda, “de que exista uma crise de representação ou risco de crise institucional em face de um excessivo intervencionismo do Poder Judiciário no país”. Lênio Streck[37], de maneira bastante didática, resume as sete teses em questão, que seriam:
1) Não é verdade que o STF tem uma atuação contramajoritária, isto porque é inexpressivo o número de decisões declarando a inconstitucionalidade, em todo ou em parte, de leis e atos normativos promulgados pelo Congresso Nacional.
2) Ao contrário do que se diz, o STF reforça a vontade majoritária representada no Congresso Nacional, isto porque ele vem confirmando a constitucionalidade das leis e atos normativos em 86,68% das ADIs e ADPFs.
3) Não é verdade que o STF atua de forma ativista; portanto, não é verdadeiro dizer que ele colmata as supostas lacunas deixadas pelo Legislativo, uma vez que, para cada declaração de inconstitucionalidade, havia uma média de 11,75 projetos de lei tratando da mesma matéria específica em tramitação no Congresso, além de uma média de 2,6 leis tratando do mesmo tema discutido pelo pleno da corte.
4) Não há enfraquecimento do poder majoritário do Legislativo, uma vez que, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade, o Congresso propõe uma média de 6,85 projetos de lei versando sobre a mesma matéria.
5) Ao contrário do que se afirma, o STF fortalece a atuação do Legislativo, obrigando-o a legislar sobre determinadas matérias. O prazo médio de resposta do Legislativo foi de 16 meses, sendo que em 45,83% dos casos a resposta vem em menos de seis meses.
6) O comportamento do Supremo não se alia a nenhuma coalizão majoritária do Congresso, porque o a relação entre ADPFs e ADIs reconhecidas é proporcional.
7) Por último: o STF tem se utilizado de recursos jurídicos para preservar ao máximo a palavra do Legislativo, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e a modulação de efeitos.
Fazemos questão de pontuar, que a transcrição para este estudo da tese da professora Thamy tem caráter meramente indicativo. Não temos aqui a pretensão de apresentar nenhum contraponto a sua tese. Julgamos somente de grande valia para as reflexões aqui pontuadas, a citação deste importante referencial bibliográfica acerca do tema.
Finalmente, diante de todo o exposto, vale refletir acerca do aspecto mais sensível do ativismo judicial e que realmente “ganha o coração” desta nossa “sociedade órfã” e é quando nossa Corte Suprema se embrenha na suposta efetivação de direitos fundamentais e garantias constitucionais. O discurso de que “alguma coisa tem de ser feita”, ante a omissão e indiferença dos demais poderes na realização de funções típicas é certamente a fala mais sedutora do ativismo judicial brasileiro. De toda forma, não podemos deixar de lado, certas decisões claramente alimentadas pelo mais puro ativismo judicial, que demonstraram a necessidade de avanço e de maturidade da sociedade brasileira em termos de reconhecimento de direitos. Neste sentido, citamos, exemplificativamente, a discussão acerca dos fetos anencéfalos.
Nesta dinâmica, vale refletir também acerca de certos entendimentos, como o do Ministro Evandro Guerios Leite[38], para quem o ativismo judicial é um princípio do Direito Processual Civil, afirmando que: "o comportamento tem que ver com a habitualidade de certa conduta (...) O ativismo, como conduta habitual, torna-se princípio e caminha para a formação de material jurídico positivo. A aplicação do direito é produção de direito como norma agendi. O ativismo condiz, pois, com a contextualidade do Direito Processual Civil, no pertinente à atividade jurídica e à ação judiciária: atuação de um Poder (política); função do jus dicere (finalidade); processo e organização (instrumentalidade). Dentro desse quadro, o estudioso pode aderir a um novo princípio de legitimidade ou a uma nova idéia de direito, com o juiz como figura principal, segundo a lição de A. Peyrefitte. (grifos do autor)."
Feitas estas considerações, é forçoso reconhecer o quão tênue é a linha que separa um ativismo judicial “destruidor”, de um ativismo judicial garantidor do Estado Democrático de Direito. É sobre esta fina mistura de centralização de poderes e garantia de direitos sobre a qual se move o ativismo, bem como o excesso de atribuições das Cortes Constitucionais pelo mundo, que o texto de Maus nos cativa e nos alerta.
No mais, na sequência traçaremos algumas considerações acerca do ponto central deste estudo – o Conselho Nacional de Justiça – a fim de encontrarmos em sua estrutura e essência uma resposta para o questionamento proposto no título deste trabalho, no sentido de se encontrar naquele Conselho um instrumento de contenção do Judiciário brasileiro.
A dita “Reforma do Judiciário”, como usualmente se tem notícia, aconteceu no universo normativo brasileiro com a Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004. Todavia, os movimentos que clamavam por referida reforma têm seus desdobramentos bem antes disso, em 1992, com a proposta de Emenda Constitucional – PEC 96-A/1992[39], por parte do Deputado Hélio Bicudo (PT/SP). Dali, inúmeras apensas marcaram o documento original que, recorrentemente, reforçavam a necessidade de se instituir um “sistema de controle do Poder Judiciário”.
Acreditamos seja importante reforçar este panorama político da Reforma do Judiciário, em um cenário de pressões internas e externas, estas, especialmente vindas do Banco Mundial, que tornaram célebres as suas intenções de implementar nos países da América Latina e Caribe, o Documento técnico 319, de 1996, que propõe uma verdadeira cartilha para a Reforma do Judiciário. Dispõe citado documento:
A função do Poder Judiciário em qualquer sociedade é o de ordenar as relações sociais e solver conflitos entre os diversos atores sociais. Atualmente, o Judiciário é
incapaz de assegurar a resolução de conflitos de forma previsível e eficaz, garantindo assim os direitos individuais e de propriedade. A instituição em análise tem se demonstrado incapaz em satisfazer as demandas do setor privado e da população em geral, especialmente as de baixa renda.Em face o atual estado de crise do sistema jurídico da América Latina e do Caribe, o intuito das reformas é o de promover o desenvolvimento econômico. A reforma do Judiciário faz parte de um processo de redefinição do estado e suas relações com a sociedade, sendo que o desenvolvimento econômico não pode continuar sem um efetivo reforço, definição e interpretação dos direitos e garantias sobre a propriedade. Mais especificamente, a reforma do judiciário tem como alvo o aumento da eficiência e equidade em solver disputas, aprimorando o acesso à Justiça que atualmente não tem promovido o desenvolvimento do setor privado. (BANCO MUNDIAL, 1996: 10)
Ademais as claras pressões do Banco Mundial e seu considerável esforço depositado em uma Reforma do Judiciário nos países da América Latina e Caribe, o Brasil tinha neste contexto suas próprias questões e urgências. Diante de uma série de mazelas, de denúncias de um Judiciário corrupto e ineficiente, uma agenda própria de Reforma de seu Judiciário merecia ser delineada.
Nesta medida, o governo se mobilizou no sentido de se utilizar da insatisfação popular para expor o Judiciário, a fim de encontrar subsídios para levar e aprovar a matéria junto ao Congresso Nacional. Desta feita, estrategicamente, a Secretaria da Reforma lança o “I Diagnóstico do Poder Judiciário”, com informações obtidas em questionários enviados a 96 tribunais do país, além de dados do Banco Mundial, da Secretaria do Tesouro Nacional e do Conselho de Justiça Federal, expondo, pela primeira vez, as dificuldades do sistema de justiça brasileiro.
Nestes termos, em 08 de dezembro de 2004, é promulgada a famigerada Emenda Constitucional nº 45, conhecida como a Emenda da “Reforma do Judiciário”. As mudanças trazidas pela Emenda atingiram tanto os procedimentos como a própria e estrutura do sistema jurídico. Sob o ponto de vista procedimental, a Reforma pretendeu uma maior agilidade processual (alterando a essência dos códigos processuais na busca por celeridade, criando súmulas de efeito vinculante etc.) e extraprocessual (com a digitalização dos processos, utilização de métodos de gestão etc.). No mais, no que se refere à alteração do sistema jurídico propriamente dito, a Reforma implementou um “controle externo” no Judiciário, mediante a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Deixando de lado todas as polêmicas carreadas por dita Reforma, nos interessa mais de perto a figura do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que carrega consigo suas próprias controvérsias e grande desconfiança por parte dos membros do Judiciário. Composto por quinze membros, tendo por seu presidente o também presidente do STF, chegando a contar com até dois cidadãos de “notável saber jurídico e reputação ilibada”, o CNJ tem as mais variadas missões, sendo a principal delas, a nosso ver: “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”.
Desta feita, diante de toda esta conjuntura política e jurídica, bem como diante das reflexões de Maus que são o centro de nosso estudo, parece muito óbvia a linha de pensamento que nos levou a imaginar o CNJ como um instrumento de contenção do Judiciário, uma vez que o reconheçamos como “superego” da sociedade brasileira “órfã”. Todavia, como já fizemos questão de pontuar logo nas linhas iniciais deste estudo, a própria composição do CNJ nos impede de responder positivamente ao questionamento posto no título deste trabalho. Não há como dizer que o CNJ se prestará efetivamente como instrumento de efetiva limitação da Corte Constitucional brasileira, sendo que o Presidente desta Corte, também será o Presidente do CNJ. De toda forma, seria possível responder de forma parcialmente positiva ao questionamento proposto, na medida em que considerarmos os esforços do CNJ em enquadrar as demais instâncias do Judiciário, no sentido de prevenir e corrigir desvios de conduta dos membros e órgãos do poder Judiciário. No sítio público do CNJ, é possível ter uma noção de tais iniciativas, no link “Corregedoria”, depois “De Gestão”, onde estão balanços e relatórios de atividades. O último relatório disponível[40] se refere à Gestão da Corregedora Eliana Calmon e atesta o recebimento, no ano de 2011, de 4112 processos afetos a Reclamações, Representações por Excesso de Prazo, Pedidos de Providências, Sindicâncias, Avocações, Reclamações para Garantia das Decisões e Notas Técnicas.
O Conselho Nacional de Justiça - CNJ representa hoje, quase dez anos depois de sua criação (EC 45/2004) e após oito anos de sua instalação (em 14 de junho de 2005), se mostra um órgão que pretende ir muito além do que inicialmente se esperou dele. É possível visualizar em seu sítio público uma gama enorme de iniciativas.
No link “Programas de A a Z[41]”, nos deparamos com um CNJ atuante nas mais diversas frentes, no que fazemos questão de citar: “Acesso à Justiça”, que fomentam programas de conciliação e mediação em todo o Brasil; “Casas de Justiça e Cidadania” que representam um programa presente em quinze Estados brasileiros, a formar uma rede integrada de serviços ao cidadão, onde se oferece assistência jurídica gratuita, informações processuais, conciliações pré-processuais, emissão de documentos e ações de reinserção social de presos e egressos (temática esta a qual o CNJ tem recorrentemente feito de sua bandeira); em “Direitos Humanos”, destacam-se dois programas: O “Cidadania, Direito de Todos”, referente ao trabalho realizado pela Funai na busca da atualização do Registro Administrativo Nacional do Índio e o “Manual de Direitos Humanos”, documento destinado aos juízes, procuradores e advogados, contendo a legislação nacional e internacional sobre Direitos Humanos. Neste tópico, também se encontra inserida a questão do “Tráfico de pessoas”, o que seria e as formas de denúncia; no link que diz respeito à “Eficiência, modernização e transparência” se encontra agrupado o tema que efetivamente representa o centro de competência do CNJ, com programas relacionados à fiscalização, à transparência e ao aperfeiçoamento dos serviços prestados pelo Judiciário. Estes programas merecerão nossa especial atenção, vez que efetivam a missão primeira deste órgão; o programa de “Formação e Capacitação” guarda correlação com o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário (CEAjud) e com outras iniciativas de promoção de pesquisa (CNJ Acadêmico) e integração com escolas judiciais do Brasil (Plano Nacional de Capacitação Judicial), que tem por missão o aperfeiçoamento dos servidores e o aprimoramento do ensino e da pesquisa jurídica; “Infância e Juventude” promovem programas de âmbito nacional que estimulam o reconhecimento de paternidade e outros temas correlatos como a mobilização nacional para o registro civil de nascimento, adoção e a questão dos adolescentes em conflito com a lei (Justiça ao Jovem) ; Em “Mulher”, reforçam-se as iniciativas do CNJ no âmbito da concretização de medidas e acompanhamentos da questão da violência contra a mulher; “Saúde e Meio Ambiente”, com programas que elaboram estudos para a prevenção de conflitos judiciais na área da saúde, campanhas antidrogas e o papel do CNJ na adoção de políticas públicas em prol da melhoria da prestação jurisdicional nas atividades de Gestão Socioambiental; “Sistema Carcerário e Execução Penal” que se configura uma das frentes mais atuantes do CNJ, com mutirões carcerários que desde 2008 vem realizando um verdadeiro “Raio-X” no sistema penitenciário brasileiro e tem por finalidade “promover a cidadania e disseminar valores éticos e morais por meio de atuação institucional efetiva”[42]; Em “Sistemas”, o CNJ se lança em iniciativas que pretendem a facilitação do acesso à informação, com o desenvolvimento de programas de informática, a fim de “acabar com a burocracia dos atos processuais”[43].
É possível concluir que cada um dos tópicos acima enumerados merece uma incursão própria, um estudo individualizado, ante a vastidão de possibilidades e iniciativas. Não é o propósito deste trabalho que pretende neste momento um olhar sobre este órgão que em seu conturbado início, tem buscado conquistar seu espaço nas mais diversas frentes de atuação.
De toda forma, pautados nas reflexões de Maus, não podemos deixar de lançar um questionamento: não seriam todas estas iniciativas do CNJ, um modo de reforçar este quadro de centralidade do Judiciário que Maus tanto criticou em sua obra? Ao que parece, diante de todas as reflexões aqui postas, este será recorrentemente um ponto permanente de dúvida.
O objetivo principal do presente estudo é a reflexão acerca do texto “O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’”, da expoente autora alemã, Ingeborg Maus. A intenção inicial seria a de destrinchar o texto que apresenta rico diagnóstico acerca do comportamento centralizador da Corte Constitucional Alemã e sua pretensa personificação da figura do “pai” de uma sociedade carente de tutela e, portanto, “órfã”. Lançando mão da noção de “superego”, a autora em questão nos apresenta um Judiciário que se comporta, em verdade, de forma a perpetuar sua condição de vetor moral de uma sociedade.
Nesta ordem, diante de todo o “diagnóstico” tratado no texto e em parte reproduzido neste estudo, encontramos intrigante proximidade com a realidade do Judiciário (e da nossa Corte Suprema) brasileiro, que se utilizando das formas mais elementares do mais puro ativismo judicial, chama para si competências que, originariamente, não possui. Nesta ordem, para muito além da questão da separação dos poderes, o ativismo judicial se firma como instrumento de legitimação de um Judiciário que pretende se firmar como instrumento construtor de valores de uma sociedade.
No mais, em um cenário permanente de crises enfrentadas pelo Poder Judiciário, acaba-se por promover a tão propalada “Reforma do Judiciário”, concretizada pela Emenda Constitucional n. 45/04, que promoveu, dentre outras substanciais mudanças no sistema jurídico brasileiro, a criação de um órgão com poderes de “controle externo” do Judiciário – o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Traçando um paralelo entre a realidade tratada no texto que aqui nos serve de norte e a Corte Constitucional Brasileira, intencionamos uma reflexão acerca da possibilidade de o CNJ se apresentar muito mais do que um órgão de “controle externo” do Judiciário, chamando para si não só inúmeras outras funções, mas também a de instrumento de contenção do Judiciário como “superego” desta “sociedade órfã”.
De toda forma, concluindo-se pelas dificuldades estruturais do CNJ, que tem por Presidente, o Presidente do STF, a pergunta que figura título no título deste estudo deve ser respondida de forma parcial, na medida em que não há possibilidade de se efetivamente “conter” a Suprema Corte brasileira, restando o CNJ, somente, como um projeto de controle por parte das demais instâncias do Judiciário.
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[1] Pierre Bourdieu, citando Marx em sua obra O Poder Simbólico atenta para os riscos da imigração das idéias e a ingenuidade de se “repatriar produtos de exportação”.
[2] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. de 2000, p. 186.
[3] CARVER, Charles S.; SCHEIER, Michael F. Perspectives on personality. Boston: Allyn and Bacon, 2000, p. 63.
[4] BARUS-MICHEL, Jacqueline. “A democracia ou a sociedade sem pai”. In: ARAÚJO, José Newton; SOUKI, Léa Guimarães; FARIA, Carlos A. Pimenta de. Figura paterna e ordem social: tutela, autoridade e legitimidade nas sociedades contemporâneas. Belo Horizonte: Autêntica; PUC Minas, 2001, p. 34.
[5] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. de 2000, p. 185.
[6] MAUS, ob. cit., p. 185.
[7] Idem, p. 186.
[8] Idem, p. 187.
[9] Idem, p. 187.
[10] Idem, p. 186.
[11] Idem, p. 186.
[12] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Ingeborg Maus e o Judiciário como superego da sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, PP. 10-12, jul/set 2005, p. 12.
[13] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 129.
[14] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Ingeborg Maus e o Judiciário como superego da sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, PP. 10-12, jul/set 2005, p. 12.
[15] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 431.
[16] apud OMMATI, José Emílio Medauar. Da inconstitucionalidade da cobrança do adicional ao SEBRAE para as médias e grandes empresas. Um caso de interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1423>. Acesso em: 20/10/13.
[17] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 182.
[18] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. de 2000, p. 187.
[19] MAUS, ob.cit., p. 187.
[20] Ob.cit., p. 187.
[21] Ob.cit., p. 189.
[22] Ob.cit., p. 190.
[23] Ob.cit., p. 192.
[24] Ob.cit., p. 192.
[25]CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, 23, p.115 - 126, nov. 2004, p. 13.
[26] CASTRO, Marcos Faro. O STF e a judicialização da política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12, n. 34, p. 147 - 156, junho de 1997, p. 23.
[27] Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jun-07/entrevista-luis-roberto-barroso-ministro-supremo-tribunal-federal, acesso em 03/11/2013.
[28] BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista nº 04 da Ordem dos Advogados do Brasil. Janeiro/Fevereiro de 2009, disponível em http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf, acessado em 29 de outubro de 2013.
[29] Ob. Cit., 2009, p. 35.
[30] VIEIRA, José Ribas Vieira. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Vanice Líro do Valle (org.). Curitiba: Ed. Juruá, 2009, p. 76.
[31] Ob. cit, p. 76.
[32] HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004, p. 1.
[33] TATE, C.; VALLINDER, T. The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1997, p. 13.
[34] STRECK, Lênio Luiz. O ativismo judicial existe ou é imaginação de alguns? Consultor Jurídico. Coluna Senso Incomum. Junho de 2013. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/senso-incomum-ativismo-existe-ou-imaginacao-alguns, consulta em 04/11/13.
[35]MARSHALL, Willian. Conservatism and the Seven Signs of Judicial Activism. Colorado: University of Colorado Law Review, 2002. Disponível em http://ssrn.com/abstract_id=330266, acesso em 02 de outubro de 2013.
[36] POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, Konrad Adenauer e Ed. Campus, 2012.
[37] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto? O ativismo judicial em números. Consultor Jurídico. Coluna Senso Incomum. Outubro de 2013. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros, consulta em 04/11/13.
[38] LEITE, Gueiros Evandro. Ativismo Judicial. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/16980/Ativismo_Judicial.pdf?sequence=1. Acesso em 20 de outubro de 2013.
[39] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_02/parecer%20relator.htm, acesso em 11/06/2013, às 16:21h.
[40] Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/RELAT%C3%93RIO%20ANUAL%20CORREGEDORIA.FINAL.pdf, acesso em 04/11/13.
[41] Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z, acesso em 25/06/2013, às 11:00h.
[42] Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-mutirao-carcerario, consulta em 25/06/2013, às 12:07h.
[43] Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistemas, consulta em 25/06/2013, às 12:11h.
Advogada. Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Daniela Juliano. O Conselho Nacional de Justiça: instrumento de contenção do Judiciário como "superego" da sociedade? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39909/o-conselho-nacional-de-justica-instrumento-de-contencao-do-judiciario-como-quot-superego-quot-da-sociedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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