RESUMO: O artigo destina-se a elucidar o tema da tutela indígena frente a errônea interpretação e aplicação dos dispositivos da Lei nº 6.001/73 e da Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Tutela Indígena. Constituição Federal de 1988. Direito à diferença. Preservacionismo.
O tema da tutela indígena, mesmo duas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ainda provoca controvérsias, inclusive no âmbito do Poder Judiciário, motivo pelo qual, na qualidade de operador do Direito em matéria indígena, entendo pertinente contribuir para a elucidação do tema.
Tais controvérsias, sobre a aplicação ou não da tutela do índio (enquanto instrumento para suprir uma incapacidade), decorrem da errônea interpretação dos dispositivos da Lei nº 6.001/73 e da Constituição Federal de 1988, bem como pelo desconhecimento da antropologia moderna.
Inicialmente, faz-se breve menção à legislação surgida no século XX acerca da temática.
O Decreto nº 8.072, de 20 de Junho de 1910, cria o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, o primeiro órgão oficial da República a cuidar dos interesses indígenas, com a finalidade de prestar assistência aos índios e formar centros agrícolas constituídos por trabalhadores nacionais.
A Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil –, em seu artigo 6º, inciso IV, elenca os silvícolas como relativamente incapazes, sujeitando-os, em seu parágrafo único, ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação. Destaco que a tutela contida no Título VI do Livro I da Parte Especial do Código Civil, que trata do Direito de Família, não se aplicava aos índios, por expressa disposição do artigo 6º, além do que, a tutela ali contida é de cunho privatístico, não se coadunando com a necessidade de proteção coletiva decorrente da diferenciação sociocultural indígena.
Sobreveio o Decreto nº 5.484, de 27 de junho de 1928 que, em seu artigo primeiro revoga expressamente a tutela orfanológica aos índios, classifica-os (artigo 2º) em quatro categorias (a primeira são os nômades, a segunda, os aldeados, a terceira, os pertencentes a povoações indígenas, e a quarta os pertencentes a centros agrícolas ou que vivem promiscuamente com civilizados), para depois restringir-lhes a capacidade (artigo 5º) enquanto não se incorporarem à sociedade civilizada, declarando nulos (artigo 7º) os atos praticados pelos índios da 1ª, 2ª ou 3ª categorias, realizados sem a representação de inspetor do Serviço de Proteção ao Índio.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, previa, em seu artigo 5º, inciso XIX, alinea “m”, competir privativamente à União, legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. Tal dispositivo não foi repetido na Constituição de 1937 (Estado Novo), cuja única referência aos índios prescrevia o respeito à posse das terras em que se acham localizados.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, previa em seu artigo 5º, inciso XV, alínea “r”, a competência da União para legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional, em texto idêntico ao de 1934.
A Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, alterou a redação do parágrafo único do artigo 6º do Código Civil: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País”. Tratou-se de simples alteração do texto legal, sem maiores repercussões práticas, à medida que continuava a remeter o regime tutelar a regramento específico.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, em seu artigo 8º, inciso XVII, alínea “o”, prescrevia a competência da União para legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.
Em 1967 foi autorizada a instituição da Fundação Nacional do Índio – FUNAI (Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967), em substituição ao já combalido Serviço de Proteção ao Índio, a quem compete exercer “os podêres de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais”.
Em 1973, foi promulgada a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Estatuto do Índio. Trata-se de diploma que se destina a regulamentar a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas, para a preservação de sua cultura e progressiva integração à comunhão nacional, de cunho nitidamente integracionista. Abaixo, a transcrição do regime tutelar previsto na norma:
Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.
§ 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória.
§ 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.
Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.
Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efeitos.
Art. 9º Qualquer índio poderá requerer ao Juiz competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta Lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes:
I - idade mínima de 21 anos;
II - conhecimento da língua portuguesa;
III - habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional;
IV - razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional.
Parágrafo único. O Juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença concessiva no registro civil.
Art. 10. Satisfeitos os requisitos do artigo anterior e a pedido escrito do interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição à capacidade, desde que, homologado judicialmente o ato, seja inscrito no registro civil.
Art. 11. Mediante decreto do Presidente da República, poderá ser declarada a emancipação da comunidade indígena e de seus membros, quanto ao regime tutelar estabelecido em lei, desde que requerida pela maioria dos membros do grupo e comprovada, em inquérito realizado pelo órgão federal competente, a sua plena integração na comunhão nacional.
Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste artigo, exigir-se-á o preenchimento, pelos requerentes, dos requisitos estabelecidos no artigo 9º.
Para Souza Filho[1]:
A Lei brasileira sempre deu comandos com forma protetora, mas com forte dose de intervenção, isto é, protegia-se para integrar, com a idéia de que a integração era um bem maior que se oferecia ao gentio, uma dádiva que em muitos escritos está isenta de cinismo porque o autor crê, sinceramente, que o melhor para os índios é “viver em civilização”.
Por fim, o Estado Brasileiro promulgou a Constituição Federal de 1988, a qual prevê em seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Essa mesma “Constituição Cidadã” dedicou um capítulo inteiro à temática indígena, com nítido reflexo sobre as políticas até então adotadas:
CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
A sucessão dessas normas no tempo apontam claramente para uma alteração de paradigma decorrente da correta compreensão do pluralismo político e uma de suas acepções, o direito à alteridade, sem que isso implique em limitação do “ser diferente”.
A Constituição Federal de 1988, ao dedicar capítulo inteiro à temática indígena – e em outros artigos espalhados pelo texto constitucional – deixa clara a opção pelo respeito à alteridade ao apontar textualmente, em seu artigo 231 que aos índios se reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
É nítida a mudança de paradigma advinda da Constituição Federal de 1988. Basta uma leitura despretensiosa de todos os normativos anteriores à Constituição de 1988, que se chega a uma única conclusão: todas as normas visavam a integração do índios à sociedade envolvente, concebido como o meio pelo qual o indígena deixaria a condição de “subdesenvolvido” para mesclar-se ao mundo civilizado.
Para Anjos Filho[2]:
O impacto dessa guinada constitucional nas relações jurídicas envolvendo os índios no Brasil é enorme. A Constituição, adotando uma postura de respeito à diversidade cultural brasileira, assegura o direito de os índios serem e permanecerem diferentes, afastando a possibilidade de qualquer forma de discriminação, como decorrência direta da liberdade e da igualdade. É o princípio da proteção da identidade, já mencionado retro. Está constitucionalmente vedado qualquer entendimento jurídico que implique afirmar direita ou indiretamente a superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas. Isso significa que o modo de ser e de viver dos índios deve ser respeitado e protegido, e não destruído, sendo-lhes garantido o pleno exercício dos seus direitos culturais.
Portanto, não se pode negar o advento da visão preservacionista, em detrimento da ótica assimilacionista ou integracionista, que imperava anteriormente.
Desse modo, cumpre a análise da tutela estampada no Estatuto do Índio em face desse nono paradigma e dos preceitos constantes da nova ordem constitucional.
A noção de tutela está ligada à ideia de proteção ou assistência. Seria um encargo conferido a alguém capaz para gerir os bens do incapaz, representando-o ou assistindo-o na prática dos atos da vida civil. Trata-se de instituto que visa suprir uma incapacidade. Na questão indígena:
Conforme relata Thaís Luzia Colaço, a ideia da incapacidade do índio proveio de uma série de dúvidas que os europeus tinham em relação à sua natureza humana. Foram inicialmente considerados animais; após as diversas opiniões e muitas discussões de conquistadores, teólogos e juristas, chegou-se à conclusão de que os habitantes da terra recém-descoberta não eram nem animais, nem algo intermediário entre feras e homens. Finalmente, os índios passaram a ser considerados seres humanos, mas inferiores, por serem incapazes de viver por si próprios, segundo os costumes dos europeus. A partir daí surgiu a necessidade de protegê-los e tutorá-los[3].
Ainda:
Caio Mário S. Pereira chega a afirmar que os índios “podem ser equiparados quase a crianças”, que sua “educação” é muito lenta e difícil e, por isso, é “natural” que o legislador crie um sistema de proteção.
Maria Helena Diniz sustenta as mesmas ideias quase com as mesmas palavras.
Ficamos impressionados como a força na crença do “infantilismo” e/ou “retardo mental” dos índios ainda reverbera, sobretudo através do “argumento de autoridade”, em pleno século XXI[4].
A tutela se justificava na perspectiva evolucionista de que os índios eram seres ingênuos, não desenvolvidos completamente, incapazes de interagir com a sociedade envolvente. Daí a necessidade da “proteção” estatal.
Contudo, a moderna visão da questão indígena estampada na Carta de 1988 deixa claro o respeito à diferença, não se admitindo, em hipótese alguma, que os índios sejam tratados como inferiores. Ao contrário, são tratados como cidadãos componentes de uma sociedade plural, cuja manifestação vontade também é determinante para a manifestação de vontade estatal. Nesse sentido, transcrevo trecho da ementa da PET 3388/STF:
Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.
(...)
Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de “desenvolvimento nacional” tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.
A análise feita até o presente momento aponta para o fato de que a tutela orfanológica indígena prevista no Estatuto do Índio e que tem como fundamento a incapacidade, não se coaduna com a noção de respeito à alteridade contida no atual texto constitucional. A Constituição, muito antes de se preocupar com os índios, demonstra que o arcabouço jurídico por ela inaugurado não é compatível com a institucionalização de apenas uma cultura ou visão de mundo em detrimento de outras que historicamente existam na sociedade brasileira, ao contrário, garante a pluralidade em todos os sentidos, notadamente a cultural, na linha de construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, o que implica no dever estatal de respeitar as particularidades de cada grupo social e o impede de compeli-los a alterar o seu modo de vida.
Nesse sentido, a doutrina é clara quanto à não recepção do regime tutelar enquanto instituto destinado a suprir uma incapacidade:
A menção a índios significa que um único índio ou um grupo de índios pode ir a juízo defender os direitos coletivos de todo o seus grupo ou tribo. A possibilidade constitucional de um índio, individualmente, ir a juízo em defesa dos direitos e interesses da coletividade à qual pertence é mais um fator que comprova a não recepção do regime tutelar e de incapacidade anterior[5].
Pensamos que a “tutela-incapacidade” não foi recepcionada, porquanto a CF/88 abandonou o “paradigma da integração” (cujo pressuposto era exatamente a “incapacidade”), substituindo-o pelo “paradigma da interação” (cujo fundamento é precisamente a “diferença”).
(...)
A CF/88 – que reconhece o índio como “diferente”, sem que essa “diferença” possa ser confundida com “incapacidade” e que reconhece a “capacidade” do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos, sem depender da intermediação – alterou substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente “protetiva”; segundo, passou a ter estatura “constitucional”[6].
Se a ideia de tutela como imposição de alguma restrição ao livre arbítrio do índio e limitação de seus direitos já tinha sido afastada, mesmo que continuasse a ser aplicada na prática, com a Constituição Federal de 1988 não pode haver nenhuma dúvida: ela garante expressamente ao índio a possibilidade de se organizar como comunidade ou através de organizações próprias, reconhecidas pelo direito, e de recorrer diretamente ao Poder Judiciário na defesa de seus direitos e interesses. Ora, a autonomia é então plena, tendo o índio os mesmos direitos e obrigações dos demais e sendo reconhecido com um cidadão brasileiro[7].
A situação de não recepção do regime tutelar é tão evidente, que negá-la levaria a um absurdo: todos os índios do Brasil não estariam integrados. Ora, a liberação do regime tutelar só poderia ocorrer mediante procedimento específico direcionado ao juiz competente, ou mediante Decreto do Presidente da República, consoante previsão legal. Entretanto, só temos na história um único caso de requerimento de liberação de regime tutelar e nunca fora editado um Decreto Presidencial concedendo a emancipação coletiva:
O Estatuto prevê a emancipação individual ou coletiva desde que se preencham os requisitos instituídos na própria lei. Contudo, ainda há de ser necessária uma dupla autorização, do órgão indigenista e do juiz. A tutela, na prática, não trazia grandes restrições para os índios de um modo geral e, mesmo que trouxessem a emancipação, por ser tão restritiva, não era uma saída. Pela dupla inutilidade, só é conhecido um caso de emancipação requerida e reconhecida. A emancipação coletiva, prevista no art. 11, nunca foi decretada[8].
No mais, essa discussão deveria ter sido totalmente superada após a ratificação pelo Estado Brasileiro da Convenção nº 169 da OIT, incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, a qual deixa expressamente consignada a capacidade civil dos indígenas, ou seja, o exercício de direitos e a assunção de obrigações:
Artigo 8º
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste principio.
3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.
Resta patente a não recepção do regime tutelar pela Constituição Federal de 1988, do mesmo modo como é cristalina a capacidade civil plena dos indígenas, afinal, a legislação mais atual é clara ao definir que os índios devem exercer os direitos reconhecidos a todos os cidadãos e assumir as obrigações correspondentes. Vários dispositivos do Estatuto do Índio – notadamente os referentes à tutela - não foram recepcionados pela Magna Carta. E, apenas para efeito de argumentação, ainda que tivessem sido recepcionados, teriam sido derrogados com o advento do Decreto nº 5.051/2004, ante a evidente incompatibilidade.
Logo, conclui-se que a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma político em relação às minorias e, especialmente, em relação aos índios, promoveu o respeito à alteridade, optando pelo modelo preservacionista consubstanciado em um capítulo inteiro dedicado à temática indígena. Essa nova política fulmina toda e qualquer norma que diminua a capacidade do indígena em face dos demais membros da sociedade, consagrando-lhe o exercício pleno da capacidade civil, posteriormente detalhada no art. 8º da Convenção 169 da OIT. Assim, não há que se falar em tutela da pessoa do índio, como elemento limitador da capacidade, mas apenas em tutela do direito do índio, como mecanismo de afirmação dos direitos dessa minoria. A consagração da plena capacidade do índio traduz-se na desnecessidade de intermediação da prática dos atos da vida civil por quem quer que seja, podendo exercer plenamente todos os direitos e, da mesma forma, assumir todas as obrigações correspondentes a seus atos.
[1] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O Renascer dos povos indígenas para o direito. 1. ed. (ano 1998). 6 reimpr. Curitiba: Juruá, 2009, p. 106-107.
[2] ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232, in BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Forense, 2009, p. 2403-2404.
[3] MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. 1. ed. São Paulo: Pillares, 2005, p. 68.
[4] BARRETO, Helder Girão. Direitos indígenas: vetores constitucionais. 1. ed. (ano 2003). 6 reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 40.
[5] ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232, in BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Forense, 2009, p. 2.426
[6] BARRETO, Helder Girão. Direitos indígenas: vetores constitucionais. 1. ed. (ano 2003). 6 reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 42.
[7] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 76.
[8] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 76.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. O fim da tutela indígena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40128/o-fim-da-tutela-indigena. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.