Resumo: A teoria – ou cláusula – da reserva do possível vem sendo utilizada pelo Estado como justificativa para a não concretização de direitos sociais. O presente trabalho traz uma breve reflexão sobre a origem dessa expressão alemã e sua utilização no direito brasileiro.
Palavras-chave: 1. Direitos Sociais . 2. Políticas Públicas. 3 . Reserva do Possível.
O presente trabalho não tem por escopo fazer uma análise pormenorizada acerca da “teoria da reserva do possível”, mas, tão-somente, realizar um breve estudo sobre a origem e a utilização da referida expressão.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi constitucionalizada uma série de direitos fundamentais, entre eles, os direitos sociais.
A Carta Magna dedicou a esses direitos uma gama de dispositivos, conferindo-lhes um título específico e fazendo com que o Estado passasse a intermediar as relações sociais.
As políticas públicas são o principal meio de efetivação, pelo Estado, dos direitos fundamentais sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal.
Nesse sentido, lecionam Jorge Renato dos Reis e Rogério Gesta Leal:
O Estado é a instância onipresente na vida de todos os cidadãos, dividido em diversas estruturas e poderes, por isso, caberá a ele a responsabilidade originária ou direta do estabelecimento e do desenvolvimento das condições de vida de sua população. Para a implementação desses direitos, utiliza-se um instrumento para implementar sua atuação, as políticas públicas. Estas são desenvolvidas e administradas para que consigam arbitrar de forma justa e equilibrada as tensões sociais, almejando sempre a igualdade entre seus cidadãos e, consequentemente, a melhoria da qualidade de vida em seu âmbito de atuação. (REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. v. 7 : p. 1.890)
No entanto, nem sempre o Estado consegue dar efetividade às políticas públicas.
Diante da omissão estatal, muitas vezes o Poder Judiciário é a única solução encontrada para buscar a concretização desses direitos. Vagas em escolas públicas, atendimento em hospitais públicos, fornecimento de medicamentos, condições dignas de vida para os presidiários são exemplos de direitos sociais constitucionalmente previstos que têm sido constantemente omitidos.
A alegação mais comum apresentada pelo Estado para justificar a não implementação das políticas públicas é a teoria/cláusula da reserva do possível.
Essa teoria surgiu na Alemanha e foi acolhida pela Corte Constitucional germânica na década de 1970.
O caso – conhecido “numerus clausus” – referiu-se ao direito de acesso às vagas do curso de medicina de universidades alemãs.
Os estudantes que não foram aceitos nas universidades de Hamburgo e Munique – em razão da limitação das vagas – recorreram ao Poder Judiciário, requerendo o acesso ao referido curso, ao argumento de que o artigo 12 da Lei Fundamental Alemã dispõe que “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.
O Tribunal negou o pedido dos estudantes, ao fundamento de que só se pode exigir do Estado aquilo que se pode esperar, nos limites da possibilidade e da razoabilidade. No caso em questão, a Corte Alemã considerou não ser razoável esperar do Estado o oferecimento de vagas ilimitadas para o curso de medicina.
Ingo Wolfgang Sarlet esclarece:
Ainda no contexto mais amplo de direito à educação, situa-se a problemática do acesso ao ensino superior, objeto de ampla discussão na Alemanha já no início dos anos setenta, debate que, aliás, forneceu importantes e interessantes subsídios para a controvérsia em torno dos direitos sociais prestacionais. Na sua afamada e multicitada decisão numerus clausus, o Tribunal Federal Constitucional, com base na constatação de que a liberdade fundamental de escolha da profissão não teria valor algum caso não existissem as condições fáticas para a sua fruição, entendeu que este direito objetiva também o livre acesso às instituições de ensino. De fato, acabou o Tribunal da Alemanha reconhecendo que, a partir da criação de instituições de ensino pelo Estado, de modo especial em setores onde o poder público exerce um monopólio e onde a participação em prestações estatais constitui pressuposto para a efetiva fruição de direitos fundamentais, a garantia da liberdade de escolha de profissão (art. 12, inc. I, da LF), combinada com o princípio geral da igualdade (art. 3º, inc. I) e com o postulado do Estado Social (art. 20), garante um direito de acesso ao ensino superior de sua escolha a todos os que preencherem os requisitos subjetivos para tanto. Remanesceu em aberto, contudo, eventual possibilidade de se admitir um direito fundamental originário a prestações, isto é, não apenas o tratamento igualitário no que tange ao acesso, mas também o direito a uma vaga no âmbito do ensino superior. Tal hipótese foi aventada pelo Tribunal Federal Constitucional, que, mesmo sem posicionar-se de forma conclusiva a respeito da matéria, admitiu que os direitos a prestações não se restringem ao existente, condicionou, contudo, este direito de acesso ao limite da reserva do possível. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2010, p. 340/341)
Surgiu, então, a teoria da reserva do possível, segundo a qual a sociedade somente pode exigir o que razoavelmente se possa esperar do Estado.
Percebe-se que dita teoria não se refere à existência de recursos financeiros.
Assim, ressalta o referido autor:
(...) colhe-se o ensejo de referir decisão da Corte Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. (SARLET, Ingo Wolfgang. Ob, cit., p. 287)
No entanto, a teoria da reserva do possível passou a ser adotada em outros países para justificar a existência de limites à efetivação dos direitos sociais.
No Brasil, essa expressão perdeu o seu sentido inicial, pois o Estado passou a utilizá-la como fundamento para a ausência de recursos financeiros para efetivar políticas públicas.
Comumente, o ente público invoca essa teoria para dizer que não tem condições orçamentárias para concretizar as políticas públicas e que, caso isso fosse feito, seria retirado dinheiro de outras áreas prioritárias, em detrimento de toda a coletividade.
Houve, portanto, modificação da origem da expressão alemã.
A reserva do possível, em seu sentido original, refere-se tão somente à razoabilidade da pretensão, nada se referindo às condições materiais do Estado.
Porém, atualmente, é utilizada no direito brasileiro em sentido mais amplo.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 45 - promovida contra veto do Presidente da República, incidente sobre o parágrafo segundo do art.55 da proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), convertida, posteriormente, na Lei 10.707/2003, destinada a fixar as diretrizes pertinentes à elaboração da lei orçamentária de 2004 – fez importantes considerações acerca da cláusula da reserva do possível.
Confira-se:
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).
[...]
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Renovar):
“Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.” (grifei)
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF 45, Relator: Min. Celso de Mello, 2004).
Verifica-se do julgado em questão que a cláusula da reserva do possível também foi analisada no tocante à existência de disponibilidade orçamentária, e não apenas quanto à razoabilidade da pretensão.
Sem aprofundar no mérito da questão, por óbvio, a alegação de falta de recursos financeiros, destituída de comprovação, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao ente público na efetivação dos direitos sociais. Esses direitos devem ser respeitados como prioridade absoluta pelo Estado e não podem ficar relegados indefinidamente ao desamparo e ao descaso público.
Andreas Krell critica a utilização da teoria da reserva do possível no Brasil:
“Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assistência social que recebem, etc” (KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002, p. 108/109)
Fato é que, como já observado, as possibilidades materiais do Estado não se referem à cláusula da reserva do possível em seu sentido original.
A reserva do possível foi criada no Direito Alemão para afirmar que somente se pode cobrar do Estado o que seja razoável.
No Direito Brasileiro, entretanto, essa expressão passou a significar a “reserva do financeiramente possível”, sendo utilizada pelo Estado como limite absoluto à efetivação de direitos sociais.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45, Brasília, DF, 29 abr 2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45. Acesso em: 14 jul 2014.
KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11. ed. Método, São Paulo: Método, 2007
MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da; BARCHET, Gustavo. Curso de direito constitucional: atualizado até a emenda constitucional nº 53/2006. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2007.
REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. v. 7.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2010.
Analista em Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Graduada em Direito em dezembro de 2006, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós graduada em Direito Administrativo, Processual Civil e Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Mariana Barbabela de Castro. Clausula da reserva do possível: a origem da expressão alemã e sua utilização no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40197/clausula-da-reserva-do-possivel-a-origem-da-expressao-alema-e-sua-utilizacao-no-direito-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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