Resumo: É inegável que o Poder Judiciário está sobrecarregado e se mostra incapaz de atender a todas as demandas de maneira célere e eficaz. A busca por meios alternativos de solução de conflitos que possam garantir o acesso à Justiça é medida que se impõe e a desjudicialização se apresenta como importante forma de promover este acesso.
Palavras chave: desjudicialização; meios alternativos; acesso à justiça.
Introdução.
A sociedade está habituada a levar seus conflitos para os tribunais em busca da prestação jurisdicional (judicialização), por acreditar que o Poder Judiciário é a única fonte de acesso à Justiça, uma verdadeira cultura do litígio que culminou com a crise do Judiciário que, abarrotado de processos, está cada vez mais moroso e ineficiente.
Diante deste cenário a desjudicialização surge como um relevante instrumento capaz de proporcionar a redução do volume de processos, de modo a desobstruir o Poder Judiciário e auxiliá-lo, para que preste a tutela jurisdicional pretendida às demandas que a aguardam.
O presente artigo pretende abordar a desjudicialização como meio alternativo de solução de conflitos, considerando-se que referido método também possibilita o efetivo acesso à justiça.
1. Acesso à justiça.
O Poder Judiciário não pode ser considerado como único meio de acesso à Justiça, a questão que se traz a lume é garantir este acesso, ainda que por meio de outras vias que não as judiciais, em tempo razoável e de maneira efetiva.
Nesta esteira, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, abordaram as dificuldades de acesso à Justiça e apresentaram as chamadas “ondas renovatórias de universalização do acesso a Justiça”.
A primeira onda renovatória se referia à ampliação de acesso ao judiciário, concedendo a assistência judiciária aos pobres, por meio da remoção das barreiras econômicas. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º., LXXIV, ao determinar que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos ”, demonstra essa preocupação.
Já a segunda onda objetivou a proteção dos interesses difusos (proteção ambiental, do consumidor, etc.). Por último, a terceira onda renovatória apresentou um novo enfoque de acesso à Justiça[1], até porque englobou perspectivas das duas primeiras ondas e buscou aprimorá-las, trouxe uma concepção mais ampla, cujo ponto central era a utilização de técnicas alternativas de resolução de conflitos, tais como: conciliação, mediação e arbitragem que não serão objetos deste estudo, aumentando as opções de forma a tornar a justiça mais acessível e apropriada a cada situação fática apresentada.
As técnicas alternativas visam à resolução prévia dos conflitos que uma vez solucionados, certamente contribuirão para o enxugamento da máquina do judiciário, o que não representa sua substituição, nem tampouco reduzir seu poder, mas oferecer formas aliadas de solução de demandas, em razão das constantes modificações sociais, que requerem mais que um único ente capaz de tutelar seus direitos.
Nesse contexto é que surge a desjudicialização como forma de assegurar o acesso à justiça.
2. Desjudicialização.
O termo desjudicialização diz respeito à propriedade de facultar às partes comporem seus conflitos fora da esfera judicial, desde que sejam juridicamente capazes e que tenham por objeto direitos disponíveis[2], na busca de soluções sem a tramitação habitual dos tribunais, considerada morosa.
A desjudicialização indica o deslocamento de algumas atividades que eram atribuídas ao poder Judiciário e, portanto, previstas em lei como de sua exclusiva competência, para o âmbito das serventias extrajudiciais, admitindo que estes órgãos possam realizá-las, por meio de procedimentos administrativos.
Este processo de transferência de serviços para os cartórios extrajudiciais que antes só poderiam ser feitos pela Justiça (desjudicialização), tem por objetivo trazer celeridade às ações que não envolvem litígio e contribuir para a redução da crescente pressão sobre os tribunais, que estão abarrotados.
Para que o instrumento judicial se torne célere, é imperioso concentrar a atividade do Juiz, afastando do Poder Judiciário questões de menor complexidade, nas quais inexistam conflitos entre as partes. Assim, se evitaria a intervenção judicial nas situações em que não se faz necessária. A legislação processual necessita ser adequada a essa realidade.
É preciso buscar mecanismos que assegurem ao cidadão a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva, de modo que possa atender ao direito fundamental de acesso à Justiça. Nesse cenário, o prazo razoável da entrega da tutela exerce papel primordial, sendo pressuposto da satisfação das contendas derivadas das mudanças do mundo contemporâneo.
Diante da dificuldade do Judiciário em atender com presteza às demandas judiciais que a sociedade produz, bem como da necessidade de encontrar soluções eficazes, a desjudicialização tornou-se uma realidade no Brasil, com a edição de leis que favorecem a composição amigável de situações sociais por meio dos serviços extrajudiciais, buscando desta forma propiciar o desafogo do Poder Judiciário.
Estas leis representam uma valiosa contribuição do legislador para minorar, em suas realidades, o acúmulo de processos e possibilitar soluções mais rápidas para as ações pretendidas, além de demonstrarem avanços no Direito pátrio.
Francisco Carlos Duarte[3] assevera que na esfera cível e processual cível, há necessidade de reestruturação e reforma do sistema de administração e gestão da justiça como forma de fomentar a efetividade dos direitos e deveres e tornar o sistema de justiça um fator de desenvolvimento econômico e social, que pode ser alcançado, entre outros fatores, pelo progresso na desjudicialização e resolução alternativa de litígios, de forma a evitar acesso generalizado e, por vezes, injustificado à justiça estatal. Nesta linha, propugna o autor seja estimulado um movimento de desjudicialização, retirando da esfera de competência dos tribunais os atos e procedimentos que possam ser eliminados ou transferidos para outras entidades e salvaguardando o núcleo essencial da função jurisdicional.
Como visto, a desjudicialização traz inúmeras alternativas para aliviar o Judiciário em face da progressiva litigiosidade das relações sociais, em um mundo cada vez mais complicado e que está em constantes transformações. A desoneração do Poder Judiciário tem utilização especialmente naquelas atribuições por ele realizadas que não se referem diretamente à sua função primordial em nosso modelo de jurisdição, qual seja a prerrogativa de poder dizer o direito em caráter definitivo, por seu trânsito em julgado soberano.
Como ensina Ada Pelegrini Grinover, a crise da Justiça, representada especialmente por sua inacessibilidade, lentidão e custo, põe imediatamente em destaque o primeiro objetivo almejado pelo renascer da conciliação extrajudicial: a racionalização na distribuição da Justiça, com a subsequente desobstrução dos tribunais, pela atribuição da solução de certas controvérsias a instrumentos institucionalizados de conciliação, ainda que facultativos[4].
A informalização da Justiça significa acatar espaços jurisdicionais alternativos e desenvolver mecanismos consensuais de justiça em espaços comunitários. Com essa informalização, cresce a desjuridificação (desjudicializacão), ou seja, a adesão a meios informais de solução de controvérsias.
Seguem alguns exemplos de desjudicialização no Brasil: a) Lei n° 8.560/92 que se refere ao reconhecimento de paternidade perante os serviços de registro civil; b) Lei n° 9.514/97, que trata dos procedimentos de notificação do devedor e leilão extrajudicial nos contratos de alienação fiduciária; c) Lei n° 10.931/2004, que autoriza a retificação administrativa dos registros imobiliários; d) Lei 11.481/2007 que dispõe sobre a regularização fundiária para zonas especiais de interesse social; e propiciaram que o judiciário, nesses casos, ficasse limitado aos conflitos de interesse, às contendas, e que, por seu turno, os cartórios extrajudiciais passassem a atuar de forma a prevenir litígios e homologar acordos, solucionando com agilidade os problemas.
Nessa trilha, como importante exemplo da desjudicialização, a Lei n° 11.441/2007[5] que, sem a necessidade da intervenção judicial, possibilita a lavratura de escritura pública, nos cartórios e tabelionatos, para os casos de inventário, partilha, separação e divórcio, diante da ausência de conflito e de partes menores ou incapazes. A referida escritura torna-se documento hábil para a averbação da mudança do estado civil e para a transferência da propriedade dos bens partilhados.
Graças à lei acima citada e a Emenda Constitucional 66/2010 (PEC do Divórcio), os processos de divórcio consensual, inventários e partilhas, que antes se arrastavam por meses ou por anos nos tribunais, atualmente podem ser concluídos em poucos dias.
Cumpre salientar que, além da celeridade, o custo dos procedimentos fora da esfera judicial é consideravelmente menor.
Para Karin Regina Rick Rosa, a Lei n° 11.441/2007 facilita extremamente o procedimento para os atos nela previstos e ao mesmo tempo alivia a carga do Judiciário, permitindo-lhe deixar de lado providências meramente homologatórias para dedicar-se com mais profundidade à solução rápida e justa de processos litigiosos[6].
Nesse mesmo sentido, Valestan Milhomem Costa assinala a importância da Lei 11.441/07 e como a edição da mesma está em consonância com a sociedade, que clama por uma justiça mais célere e efetiva: “A Lei nº 11.441/07, que passou a permitir o inventário, a separação e o divórcio administrativos, é a demonstração inconteste do bom senso daqueles que vêm conduzindo a reforma do Judiciário, demonstrando um sério compromisso com a desburocratização, com a celeridade, com a efetividade e com a segurança jurídica, princípios cogentes em toda sociedade moderna comprometida com o desenvolvimento sustentável, com a defesa de suas instituições, com a economia popular e com o fortalecimento do crédito, cuja principal garantia ainda é imobiliária. Já era tempo de dispensar a tutela judicial para as sucessões sem testamento, quando os interessados, sendo maiores e capazes, estão de pleno acordo quanto à partilha dos bens, pois a função de aquilatar se o quinhão concreto não fere o quinhão abstrato contemplado na lei, observando-se a devida vocação hereditária, e de fiscalizar o recolhimento da contribuição tributária correspondente ao valor dos bens, pode perfeitamente ser desempenhada por um tabelião, profissional do direito dotado de fé pública, sobretudo quando as partes contam com a assistência de advogado[7]”.
Por meio da desjudicialização, também se tornou possível a realização de casamento homoafetivo, que pode ser facilmente providenciado nos cartórios de registro civil.
É fato que os serviços notariais e de registro possuem como princípios fundamentais: a garantia da publicidade, a autenticidade, a segurança e eficácia dos atos jurídicos, sendo certo que seus atos são fiscalizados pelo Judiciário, de modo que se apresentam como método eficiente para atender aos interesses das partes. Cumpre salientar que o processo de desjudicialização não afeta o núcleo basilar de atuação do Poder Judiciário, de modo que a responsabilidade pela condução de causas complexas e litigiosas deve permanecer com o Judiciário.
Feitas estas considerações, constata-se que a desjudicialização apresenta-se como meio propício a desobstruir o Poder Judiciário e não resta dúvidas de que as serventias extrajudiciais são de extrema importância para que este processo possa gerar bons e eficazes efeitos, por sua própria, pela responsabilidade e confiabilidade que os cerca, tudo em conformidade com os princípios jurídicos que os norteiam.
Por fim, Luiz Carlos Weizenmann considera que a substituição de determinadas funções administrativas exercidas pelo judiciário por sua atribuição aos notários atende ainda aos preceitos da Emenda Constitucional 45/2004, que tratou da Reforma do Poder Judiciário no que se refere aos fatores de eficácia e eficiência na solução dos conflitos.[8]
Observa-se que a união de esforços entre particulares e órgãos estatais, atende à hodierna concepção de celeridade, efetividade e justiça, edificada com a participação de todos os interessados e sem ruptura do princípio da segurança jurídica.
3. CONCLUSÃO
A desjudicialização representa um avanço na resolução de conflitos e contribui significativamente para desafogar o Poder Judiciário, liberando-o para cumprir adequadamente o seu mister, nas demandas que forem levadas à sua apreciação, além de se traduzir em uma nova forma de acesso à Justiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso a justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
[2]HELENA, Eber Zoehler Santa. O fenômeno da desjudicialização. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 922, 11 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7818>.
[3] DUARTE, Francisco Carlos. Direito e Justiça. In: XIX Conferência Nacional de Advogados aprova teses sobre Reforma da Justiça. Disponível em:<http://www.paranaonline.com.br/canal/direito-e-justica/news/147765.
[4] GRINOVER, Ada Pellegrini. A conciliação extrajudicial no quadro participativo. In: Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.282.
[5] Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – CPC, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação e divórcio consensual por via administrativa. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11441.htm.
[6] ROSA, Karin Regina Rick. Adequada atribuição de competência aos notários. In CAHALI, Francisco José; FILHO, Antônio Herance; ROSA, Karin Regina Rick; FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Escrituras públicas – Separação, divórcio, inventário e partilha consensuais: análise civil, processual civil, tributária e notarial – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 54.
[7] COSTA, Valestan Milhomem. A atividade notarial, o inventário, o divórcio e a separação administrativos. A Lei nº. 11.441/07. Disponível em:<http://www.irib.org.br/be/BE/2979.html>.
[8] WEIZENMANN, Luiz Carlos Weizenmann. A escritura pública decorrente da lei 11.441/07 e seu registro. TUTIKIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana. Novo direito imobiliário e registral - São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 290.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES, Norma Jeane Fontenelle. A desjudicialização como forma de acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40301/a-desjudicializacao-como-forma-de-acesso-a-justica. Acesso em: 25 nov 2024.
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