1. INTRODUÇÃO
Cuida-se o presente estudo de análise acerca do direito de superfície no ordenamento jurídico pátrio, com especial correlação com a função social da propriedade. Há ainda abordagem quanto à possibilidade de instituição do referido direito real sobre parte específica de um determinado imóvel.
2. DESENVOLVIMENTO
O Direito de Superfície consiste na união contratual, por meio de instrumento público e devidamente registrada no registro de imóveis, entre duas pessoas, física ou jurídica, uma proprietária e outra ainda não, com o intuito deste edificar construções ou plantações no solo daquele.
O Código Civil de 2002 positivou o direito de superfície, que se encontrava também inserto no Estatuto da Cidade de 2001. O referido Estatuto tentou configurar o direito de superfície como um novo instrumento de política urbana e habitação.
Por sua vez, o artigo 1.225 do Código Civil dispõe expressamente como direito real, o direito de superfície. Vejamos:
Art. 1.225. São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
XII - a concessão de direito real de uso. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
O referido codex aduziu ainda título próprio ao instituto, no Livro III, do Direito das Coisas, na nova sistemática cível do ordenamento jurídico, a partir dos artigos 1.369 e seguintes daquele Código.
Já o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257, de 10.jul.2001) deixa de tratar o direito de superfície como direito real, existindo controvérsias doutrinárias sobre a aplicação simultânea ou não do Estatuto das Cidades ou do Código Civil em questões relacionadas ao direito de superfície. No que toca a essa controvérsia, Silvio de Salvo Venosa leciona que: “Se levarmos em conta a opinião aqui tantas vezes defendida de que o Estatuto da Cidade institui um microssistema, tal como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Inquilinato, portanto, sob essa óptica, o estatuto vigorará sobranceiro no seu alcance de atuação, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores.”
Os dispositivos legais asseguram que o proprietário, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis, podendo esta concessão ser gratuita ou onerosa.
O magistério de Maria Helena Diniz nos ensina que: “um direito real sobre coisa alheia, porque recai diretamente sobre bem pertencente a outrem, impondo restrições ao titular do domínio em benefício do usuário, durante todo o tempo de vigência do título constitutivo”.
O direito de superfície poderá ser transferido por ato inter vivos ou causa mortis, sem que o proprietário do solo possa estipular o pagamento de qualquer quantia pela transferência, conforme aduz o art. 1372 do Código Civil. Por sua vez, em caso de alienação do imóvel ou da superfície, o superficiário, bem como o proprietário do solo, tem de respeitar o direito de preferência, reciprocamente nos termos do art. 1373 do Código Civil que dispõe: “ Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições”.
O referido direito tem o condão de cindir com o principio da acessão, segundo o qual, existe uma união física entre duas coisas em que uma delas depende de modo indissolúvel da outra. Dessa forma, o instituto permite uma melhor utilização da coisa.
O direito de superfície atende à necessidade prática de permitir a construção em solo alheio, acolhendo a propriedade de forma a cumprir o seu papel constitucional, a sua função social, bem como voltando-se para a preservação do meio ambiente, permitindo a transferência, gratuita ou onerosa, do direito de construir sem atingir o domínio. Apresenta-se como um novo e importante instituto, consagrando em ordem louvável a função social da propriedade e a ordem urbanística, disposto tanto no Código Civil quanto no Estatuto da Cidade, com mecanismos em seu bojo que permitem a utilização, por exemplo, do solo ou de prédios inacabados, a fim de promover o almejado bem-estar social e o planejamento urbano.
O proprietário do solo mantém a substância do bem, pertencendo-lhe o solo, no qual pode ter interesse na exploração ou utilização do que dele for retirado. Já o superficiário terá o direito de construir ou plantar.
O direito real de superfície, instituto que na prática substituiu a enfiteuse, tem sua aplicação prática na finalidade de se evitar que imóveis fossem objeto de especulação, sem sua imediata exploração, o que afronta o princípio da função social da propriedade.
No que tange à possibilidade de o direito de superfície recair sobre uma parte determinada de um imóvel, nos parece ser possível. Senão vejamos.
O próprio art. 1.371 do Código Civil prevê que o superficiário arcará com os encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel, in verbis:
Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
Já o art. 21, §3º, do Estatuto da Cidade estatui que é o superficiário responsável pela integralidade dos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária e, proporcionalmente, à sua parcela de ocupação efetiva do imóvel. Vejamos:
Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.
§ 1o O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.
§ 2o A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
§ 3o O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo. (omissis)
Ademais, o enunciado nº 94 da I Jornada de Direito Civil prescreve que:
Enunciado 94 - Art. 1.371. As partes têm plena liberdade para deliberar no contrato respectivo sobre o rateio dos encargos e tributos que recairão sobre a área incidida.
Ora, se é possível a deliberação acerca do rateio de encargos e tributos somente sobre a área que incide o direito real, não há dúvidas quanto à possibilidade de ele se restringir a determinada área da coisa imóvel.
No que toca ao aspecto notarial do instituto, impõe registrar que a aquisição, transferência ou extinção do direito somente se dará por instrumento público, não incidindo, portanto, a regra do art. 108 do Código Civil que prescreve a necessidade de instrumento público somente referente a imóveis cujo valor ultrapasse trinta salários-mínimos.
3. DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A promulgação da Constituição Federal de 1988 atribuiu à propriedade o status de direito fundamental do cidadão, sempre devendo ser observada sua função social. Nesse sentido, prescreve o artigo 5.º, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social.
Com efeito, a propriedade se mostra um dos alicerces do sistema socioeconômico do estatal, a sua importância ultrapassa os limites dos direitos individuais, alcançando importância fundamental na ordem econômica e social, o que torna compreensível o conceito de que a propriedade deve atender aos anseios tanto do proprietário quanto da sociedade.
O proprietário privado tem por faculdade, prescrita no código civil, o uso, gozo e disposição da coisa, além de poder reavê-la de quem injustamente a detenha, desde que o exercício do direito não contrarie os legítimos anseios da sociedade.
Dessa forma, o uso da propriedade pelo seu titular deve encontrar legitimidade junto à sociedade, pois os reflexos do seu uso serão suportados por toda a coletividade. A propriedade, assim, deve ser utilizada de forma que não acarrete prejuízos para o bem coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos, bem como o equilíbrio ambiental.
Desde há muito, não mais se concebe a propriedade como um direito ilimitado de seu proprietário. A Constituição Federal garante ao proprietário seu direito, desde que a coisa atenda a sua função social. A limitação ao direito de propriedade encontra inúmeros dispositivos constitucionais que a regulamentam, como é o caso, por exemplo, daquele que admite a expropriação em caso de necessidade ou utilidade pública ou ainda por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
O Código Civil é claro ao dispor que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Vejamos o que prescreve o art. 1228.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
As restrições legais não se mostram exaurientes, ou seja, as limitações se mostram como numerus apertus, uma vez que é defeso ao proprietário também contaminar o solo de imóvel que é dono.
4. CONCLUSÃO
O direito de superfície foi introduzido no sistema jurídico pátrio, em exceção ao princípio da acessão, segundo o qual, existe uma união física entre duas coisas em que uma delas depende de modo indissolúvel da outra. Tal evolução jurídica se deu em homenagem ao princípio da função social da propriedade, que tem como importante vertente seu uso racional e adequado pelo maior número de pessoas possível.
Portanto, a propriedade deve ser utilizada como instrumento da produção e circulação de riquezas, para moradia ou produção econômica, não podendo servir de instrumento para a destruição de bens ou valores caros a toda a sociedade como é o caso do meio ambiente sadio e equilibrado.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 18. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002.
FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais, 6º ed. Lumen Juris, 2010
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Pós-Graduado em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp<br>Procurador Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SECCO, Henrique de Melo. Do direito de superfície. Aspectos doutrinários e urbanísticos. Função social da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40550/do-direito-de-superficie-aspectos-doutrinarios-e-urbanisticos-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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