Resumo: O presente artio trata do Direito à Verdade a partir da análise de um precedente da Corte Interamerica de Direitos Humanos, o Masacre de La Rochela, ocorrido em 1989 na Colômbia. Para a análise completa, o artigo abrange os conceitos de verdade real e chega, após a análise do próprio direito à verdade e do precedente da CIDH, à realidade brasileira.
Palavras-chave: Direito à Verdade. Masacre de La Rochela. Verdade Real. Verdade Processual. Anistia.
1. Introdução
O direito à verdade pode ser definido, em um primeiro momento, como o direito ao conhecimento da autoria e das circunstâncias de um ato tipificado como crime. Tal direito pode ser visto, contudo, sob duas óticas distintas.
Por um lado, cabe ressaltar que as autoridades estatais, por sua função de defesa do interesse público, estão munidas de formas institucionais de realização do direito à verdade. A principal delas consiste no próprio processo penal, meio pelo qual se averigua a materialidade e a autoria de um determinado tipo penal, a fim de definição de uma pena. Nesse sentido, o processo penal configura uma forma estatal de ‘’busca pela verdade’’ acerca de um determinado acontecimento.
O direito à verdade pode ser visto, então, como o substrato que legitima a atuação policial e judiciária no âmbito penal.
Por outro lado, a sociedade igualmente titulariza um direito ao conhecimento de eventuais acontecimentos emanados do próprio Estado. Isto é, o direito à verdade não só legitima a atuação estatal, como incide sobre ela. Sob essa segunda perspectiva, a população faz jus a que virtuais arbitrariedades cometidas por agentes estatais, ao longo do processo de busca da tão valorizada ‘‘verdade’’, igualmente sejam desveladas, averiguadas e penalizadas.
O direito à verdade se desdobra, portanto, em uma via de mão dupla, que não só constitui o fundamento da atuação estatal na esfera penal, como impõe seus próprios limites. A atividade estatal, nesse âmbito, possui como alicerce o direito ao conhecimento de uma dada realidade – quando ela investiga e penaliza; bem como é objeto desse próprio direito – quando passa a ser o agente violador de outros direitos. Ambos são titularizados pela sociedade.
Observa-se a coexistência, não só no Brasil como em outros países da América Latina, de duas situações opostas: a omissão em buscar a verdade em determinados casos e o excesso cometido em outros, que, sob a justificativa de busca incessante dessa mesma verdade, recorrem inclusive à tortura.
Tais situações serão exemplificadas no presente trabalho pelo estudo de caso do Masacre de la Rochela, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e do caso brasileiro Tayná.
Tecidas tais considerações iniciais, cabe então analisar também quais são as concepções de verdade que embasam a atual atividade penal estatal; de que forma a predominância da ‘‘verdade real’’ vem dando ensejo a recorrentes violações pelo Estado das garantias fundamentais dos acusados; e de que maneira tal verdade, por vezes tão lembrada, deixa de ser uma prioridade quando a violação parte de determinados atores sociais – como no aludido caso colombiano.
2. Concepções de verdade real x processual – e suas consequências, ora para o excesso, ora para a omissão nas investigações
O processo penal é um instrumento pelo qual se busca a investigação e a comprovação de alguns dados da realidade, é um ‘‘modo de construção do convencimento do juiz’’[1] sobre dados do mundo. Sob esse prisma, entender que tipo de verdade se objetiva por meio do processo nos permite compreender sua própria estrutura.
Existe, ainda hoje, um verdadeiro mito acerca da existência de uma suposta ‘‘verdade real’’, perfeitamente alcançável, ao qual o processo deve apenas ‘‘des-cobrir’’, desvelar em seus exatos termos e trazer aos autos, tal qual ela se encontra no mundo fático. Nesse sentido, objetiva-se uma total correspondência do processo com o mundo.
A busca incessante por essa verdade substancial torna a esfera penal apenas um instrumento para o alcance a todo custo desse fim tido como supremo. Assim, inclusive, define Aury Lopes, citando Pacceli:
Nessa linha, sintetiza com acerto o autor que ‘a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do estado foi a responsável pela implementação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal.’’ (LOPES JR., Aury – pág. 825 – Direito Processual Penal – 9ª Edição – Editora Saraiva)
A concepção de que a verdade é um dado real e perfeitamente alcançável possui na Inquisição Católica do século XIII sua origem. Inaugurou-se à época a concepção de que a verdade é algo pré-concebido, existente como um elemento fixo da realidade passada e, portanto, mero objeto do procedimento inquisitivo que visa buscá-la.
Surge assim a crença de que 1) a verdade é concreta e ‘‘está lá’’, em algum lugar da consciência do acusado; e 2) ela é integralmente acessível, exatamente por ser ‘‘real’’. A partir dessas duas premissas, legitima-se a utilização de quaisquer meios para a obtenção desse dado real, que se torna um fim em si mesmo do procedimento de busca.
Daí advém as bases do próprio processo inquisitório, cujo substrato deriva dessa concepção de verdade real e substancial, que, nos termos utilizados por Coutinho, é uma verdade ‘‘dada ex ante’’.[2]
Os resultados daí emanados são conhecidos, sendo os principais deles: a coisificação do acusado, do qual deve-se retirar essa verdade; e a legitimidade de meios violentos nesse procedimento de obtenção.
Dessa forma, a concepção de verdade real é a base de todo um paradigma segundo o qual as hipóteses de indagação são predeterminadas de tal forma que sua confirmação passa a ser perseguida sem limites.
Nesse sentido, dispõe Aury Lopes que:
Historicamente, está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma ‘verdade mais material e consistente ‘ e com menos limites na atividade de busca, produziu uma ‘‘verdade’’ de menor qualidade e com pior trato para o imputado. Esse processo, que não conhecia a ideia de limites – admitindo inclusive a tortura -, levou mais gente a confessar não só delitos não cometidos, mas também alguns impossíveis de serem realizados.
O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o ‘interesse público’ (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma ‘verdade’ a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura de um juiz-ator (inquisidor). (LOPES JR., Aury – pág. 824 – Direito Processual Penal – 9ª Edição – Editora Saraiva)
Tal concepção de verdade, não obstante sua origem, tampouco as consequências que gera, ainda tem voz na esfera penal atualmente, pautando métodos de inquirição até hoje recorrentes. Passou, inclusive, a dominar o senso comum da população, que não raramente reconhece a validade de recursos ‘mais enérgicos’ – para não dizer violentos – de investigação e interrogatório.
Todo o sistema erguido a partir do mito da verdade real funciona direcionado ao ‘’outro’’, ao criminoso distante – em sua origem, o pecador – que significa mero objeto da estrutura de procura e com o qual o detentor dos meios em nada se identifica.
Talvez exatamente por sua unilateralidade tenha ganhado tamanha repercussão em sistemas autoritários e sirva tão bem, até hoje, à estigmatização realizada pelas estruturas de poder. Configura, assim, um instrumento de dominação.
Sob essa ótica, igualmente observa-se o porquê de a verdade ser excessivamente perquerida quando o objeto de busca é o ‘outro’, cujos direitos individuais estão abaixo do direito supremo à verdade, e ser tão negligenciada quando o ator delinquente detém posição privilegiada nesse sistema.
É a concepção de verdade real, portanto, que permite, em alguns casos, os excessos ocorridos no seio dos sistemas penais de diversos países – como no caso brasileiro Tayná - e, em outros, a omissão em buscar sua descoberta – como no colombiano Caso de la Masacre de la Rochela.
Tal sistema:
‘‘[...] interessa a quem não é atingido por seus tentáculos ou, pelo menos, pensa-se inatingível, desde que as bases estão lançadas ex ante: o alvo são os outros!’’ (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda – pág 106 – Sistema Acusatório – cada parte no lugar constitucionalmente demarcado – Revista de Informação Legislativa - nº 143)
Ocorre, contudo, que desde a virada linguística, a concepção de verdade real já foi superada no âmbito da filosofia e de outras ciências, tendo ainda reflexos jurídicos tão somente em razão de motivos políticos.
Entende-se desde então, na esteira das concepções trazidas por Heidegger, que qualquer acontecimento passado, exatamente por não se situar no presente, não é totalmente apreensível. O passado só é atingível por meio da linguagem. E essa, dada sua relatividade, não é capaz de alcançar nenhuma verdade tal qual ela se encontrava, mas se limita a construí-la de forma discursiva e atual. A única verdade passa a ser o presente.
Assim, o processo penal, como um meio de reconstrução narrativa de um acontecimento pretérito, deve acompanhar os novos entendimentos. Nessa nova concepção, não há possibilidade de estabelecer uma correspondência dos autos com a realidade passada. A verdade passa a ser construção linguística, dialógica entre os atores a sua volta, não mera apreensão unilateral.
Nessa trilha, Aury Lopes defende que apenas é legítima uma concepção de verdade processual, distinta da verdade histórica. Essa verdade não pretende ser substancial como a concepção anterior, não objetiva guardar correspondência com a realidade passada. Tal verdade é formal, construída no processo, ‘‘mediante o respeito das regras precisas e relativas aos fatos e circunstâncias considerados como penalmente relevantes’’[3].
Dessa forma, a mudança da concepção de verdade real para verdade processual visa a proteger as garantias fundamentais, uma vez que tira o acusado de uma posição de passividade e de mero objeto de descoberta unilateral e ilimitado da verdade. Fixando a verdade como algo a ser construído no presente, dada a impossibilidade de apreensão perfeita do passado, o acusado passa a ser parte em posição de igualdade face o acusador.
Dessa forma, a verdade a ser ‘‘retirada’’ do acusado deixa de ser um fim, o que torna sem sentido a utilização de métodos variados que violem sua dignidade. Pelo contrário, é a partir da constituição bilateral, dialógica e discursiva da verdade, dentro de limites normativos, que garante que o acusado, como parte, tenha seus direitos garantidos.
Nesse sentido, Ferrajoli, em citação de Aury Lopes:
‘‘[...] a verdade processual não pretende ser a verdade. Não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa. A verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao controle informativo que qualquer hipotética verdade substancial.’’ (LOPES JR., Aury – pág. 826 – Direito Processual Penal – 9ª Edição – Editora Saraiva)
Entretanto, ainda que sob a denominação de acusatórios, diversos sistemas penais latinos permanecem com resquícios inquisitórios de busca da verdade real, premissa que enseja recorrentes violações às garantias fundamentais dos acusados. Alguns exemplos, no Brasil, ainda são a resistência de controle judicial efetivo de atos abusivos no curso do inquérito policial e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a aceitação de condenação (ainda que não exclusivamente) por ‘‘provas’’ obtidas nesse mesmo inquérito policial.
Vê-se, portanto, o predomínio ainda hoje do mito da verdade real, que, como visto, permite que a busca incessante e desigual por uma verdade hipotética gera, em alguns casos, excessos – como no caso brasileiro Tayná - e, em outros, a omissão em buscar sua descoberta – como no caso colombiano que foi a julgamento na CIDH.
3. Caso “La Masacre de la Rochela”
3.1 Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamerica de Direitos Humanos
Antes de abordar o Caso “La Masacre de la Rochela” é importante definir brevemente o que é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos Comissão Interamerica de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) é um tratado internacional que prevê direitos e liberdades que devem ser respeitados pelos Estados-membros da OEA. Além de prever direitos e liberdades a Convenção também determina que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos são os órgãos competentes para conhecer dos assuntos relacionados aos compromissos contraídos pelos países membros.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA) que tem por objetivo de promover a proteção dos direitos humanos no continente americano. Além de promover a observânica dos direitos humanos ela atua como órgão consultivo da OEA nas matérias relacionas a direitos humanos. Ainda, realiza funções com caráter quase judicial. Dentro desta competência é que recebe as denúncias de particulares ou organizações relativas a violações de direitos humanos, examina as petições e adjudica os casos no suposto de que se cumpram os requisitos de admissibilidade. Foi criada em 1959, é integrada por sete membros e possui sede em Washington.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma instituição judicial autônoma que tem como obejetivo aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A sua organização, procedimentos e funções estão reguladas na Convenção Americaba. A sede da Corte está em San José da Costa Rica.
Com o conhecimento de tais conceitos é possível proseguir para a análise do Caso do “Masacre de La Rochela”.
3.2 O Caso “La Masacre de la Rochela”
No dia 18 de janeiro de 1989 no município de La Rochela na Colômbia foram assassinados doze de quinze membros de uma comissão do Poder Judiciário que investigava uma série de homicídios e desaparições que estavam ocorrendo na região[4] de suposta autoria de uma aliança entre narcotraficantes, paramilitares e agentes da força estatal.
O grupo de funcionários do Poder Judiciário se encontrava em um zona de tensão, colhia testemunhos de locais quando surgiram quarenta homens fortemente armados com fuzis, que se identificaram como guerrilheiros. Segundos testemunhas, os homens ordenaram que os funcionários judiciais entrassem em carros e saíssem da região. Logo depois, o carro foi obrigado a parar e aproximadamente quinze homens dispararam contra o carro. Somente três pessoas sobreviveram, porque se passaram por mortas.
Devido a este fato, o Estado colombiano foi condenado quase vinte anos depois do feito, em maio de 2007, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Muito do que hoje se conhece sobre o massacre se deve aos estudos do Grupo de Memória Histórica que foi incumbido de levantar os acontecimentos como forma de honrar a memória dos assassinados. A formação do Grupo de Memória História foi uma das determinações da Corte IDH.
Segundo as investigações, o planejamento e a posterior execução do massacre foi fruto de um acordo conjunto entre paramilitares, narcotraficantes, militares e políticos. Sua motivação seria a preocupação com o resultado das investigações feitas pelos funcionários judiciais sobre os homicídios e desaparições que estavam ocorrendo na região. Além disso, segundo testemunhas, também temiam que encontrassem um grande plantio de coca que tomava forma na região. Ainda, além do assassinato dos funcionários, quase todos os documentos, e as supostas provas da investigação, que carregavam foram roubados.
3.3 Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu no dia 11 de maio de 2007 sentença que declarava a responsabilidade internacional do Estado colombiano pela violação ao direitos à vida em prejuízo dos membros da comissão judicial assassinados (artigo 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[5]), pela violação do direito a integridade pessoal em prejuízo da vítimas e seus familiares (artigo 5.1[6] e 5.2[7]), do direito a liberdade pessoal em prejuízo das vítimas (artigo 7[8]), e por violação aos direitos de garantias judiciais e proteção judicial (artigo 8.1[9] e 25[10]).
A Corte IDH também homologou um acordo parcial de reparações firmado entre o Estado colombiano e os representantes das vitimas, além de determinar outras medidas de reparação, como: investigar, julgar e sancionar os responsáveis, a reforma do programa colombiano de proteção as testemunhas e funcionários judiciais, a prestação de atenção médica e psicológica aos familiares das vítimas, a formação do Grupo de Memória histórica para honrar a memória das vítimas, entre outras.
No entanto, atualmente, vários familiares das vítimas ainda movimentam processos no sistema de justiça da Colômbia para que as determinações da Corte IDH sejam cumpridas.
3.4 O Direito a Verdade no Caso do “Masacre de la Rochela”
Durante o processo os representantes das vítimas alegaram ter sido violado o seu direito à verdade, uma vez que o contexto dos assassinatos não foi devidamente investigado pelo Estado colombiano, além de não ter sido atribuída qualquer responsabilidade aos autores. Ainda, ressaltaram a estreita relações entre a violação do direito à verdade e a violação dos artigos 2[11] (desrespeito ao dever de adotar disposições de direito interno por parte do Estado colombiano), 8 (desrespeito as garantias judiciais) e 25 (desrespeito a proteção judicial) da Convenção Americana.
Tal linha de raciocínio trabalha com a idéia de que para se configurar a violação do direito à verdade basta que seja desrespeitado o dever de adotar disposições de direito interno por parte do Estado (no caso existem comprovações das omissões do Estado colombiano em processar os responsáveis) ou que se observe o desrespeitos às garantias judiciais e proteção judicial. Uma vez violados tais direitos, a verdade não estaria sendo alcançada, ou sequer estariam buscando alcança-lá, e portanto, resta configurada a concomitante violação ao direito à verdade.
O Estado colombiano respondeu dizendo que o direito à verdade não seria um direito autônomo, porque se encontraria subsumido nos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Sendo assim, não caberia a parte contrária a possibilidade de pleiteá-los.
A Corte IDH em sua decisão ressalta que o direito ao acesso a justiça deve assegurar, em tempo razoável, os direitos das vítimas e de seus familiares, e que seja feito todo o possível - dentro da legalidade - para que a verdade seja conhecida e para que os responsáveis sejam sancionados.
Ainda, a Corte aponta na sentença que em casos de graves violações aos direitos humanos, é necessário que as obrigações positivas inerentes ao direito à verdade exijam a adoção de programas institucionais para que o direito se realize da forma mais idônea, participativa e completa possível, garantindo que sua efetivação não enfrente obstáculos burocráticos capazes de tornar a concretização do direito ilusória.
A Corte chega inclusive a destacar que para se alcançar a satisfação da dimensão coletiva do direito à verdade exige-se a uma análise jurídica completa da situação, incluindo um levantamento das ações de todas as pessoas envolvidas, e a determinação de suas correspondentes responsabilidades.
Determina também que o esforço e as investigações necessárias para o alcance da satisfação do direito à verdade devem ser assumidas pelo Estado como um dever jurídico próprio, e não como uma gestão de interesses particulares que dependa da iniciativa processual das vítimas ou de seus familiares.
Ainda, a Corte estabelece que o reconhecimento e o exercício do direito à verdade em uma situação concreta constitui um meio de reparação. Sendo assim, determina que no caso em análise, o direito a verdade gera uma expectativa nas vítimas e seus familiares, que deve obrigatoriamente ser satisfeita pela Estado. Portanto, conclui-se que a violação do direito à verdade gera uma obrigação positiva de reparação.
4. Tentativa de diminuir esses casos de omissão no Brasil – Comissão Nacional da Verdade
É sabido que a Ditadura Militar é o maior exemplo brasileiro de como a busca incessante por essa verdade real e substancial gera a legitimação dos meios mais violentos e absurdos de inquisição dos acusados. Os procedimentos realizados pelo Estado que buscavam obter os “dados reais” sobre os crimes supostamente cometidos sujeitavam os acusados a diversos métodos de tortura física e psicológica, além de outras práticas que violaram em massa os direitos humanos dos supostos “criminosos”.
Porém, por mais que já fosse um consenso entre os brasileiros o fato que não existiram limites para a atividade estatal de busca pela “verdade” durante a Ditadura, os dados, informações e registros oficiais do Estado Brasileiro não trazem essa realidade. Milhares de famílias, que tiveram seus filhos, irmãos, maridos e esposas vítimas das atrocidades cometidas nesse período, continuam sem saber o destino e o paradeiro de seus familiares.
Para tentar mudar esse quadro, foi criada a Comissão Nacional da Verdade com a sanção da Lei 12.528, que inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o direito à verdade, entendido a partir de duas dimensões: individual, referente às famílias das vítimas; e coletiva, como um direito da sociedade de saber o que ocorreu em seu passado para que não mais se repita no futuro.
Assim, o que antes estava restrito à esfera privada das famílias, é ampliado para o coletivo, como o direito da sociedade à memória:
Em sua dimensão individual, o direito à verdade impõe a obrigação do Estado de apresentar informações específicas sobre circunstâncias das violações cometidas e, no caso de morte e desaparecimento, sobre a sorte e o paradeiro da vítima; por sua vez, em sua dimensão coletiva, o direito da sociedade de saber impõe a obrigação do Estado de apresentar, a toda a sociedade, informações acerca das circunstâncias e razões do ocorrido (obrigação de lembrar). [12]
(grifou-se)
A partir dessa dupla dimensão do direito à verdade, entende-se que o objetivo deste é garantir o conhecimento da “íntegra e completa” verdade sobre os detalhes dos ocorridos durante esse período de exceção, principalmente:
as causas que levaram à vitimização; as causas e condições para as graves violações de direitos humanos e de direito humanitário; o progresso e os resultados de investigações; as circunstâncias e razões para o cometimento de crimes internacionais; as circunstâncias em que as violações ocorreram; e, finalmente, a identidade dos perpetradores.[13]
Nesse sentido, pode-se dizer que a Comissão Nacional da Verdade, marca a normatização do direito à verdade no ordenamento jurídico brasileiro, mas que há muito já vinha sendo discutido na esfera internacional. Trata-se de um longo processo de reivindicação/aplicação do direito internacional humanitário especificamente na dimensão individual, que, no contexto dos desaparecimentos forçados recorrentes nos períodos de exceção, ampliou-se para a dimensão coletiva. O que antes estava restrito ao apelo das famílias aos judiciários nacionais, faz parte agora de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos, que estabelece um:
direito autônomo e inalienável à verdade sobre graves violações de direitos humanos, graves infrações de direito humanitário e crimes internacionais, reconhecido por diversos tratados e instrumentos internacionais e por inúmeras resoluções e precedentes em âmbito internacional, regional e nacional.
As investigações, então inseridas nesse sistema internacional de proteção, buscam primeiramente o conhecimento dos fatos para que possam ser reconhecidas e apontadas pessoas, entidades, órgãos e, principalmente, Estados responsáveis pelas atrocidades ocorridas. E é nesse sentido, com esse propósito, que foi instaurada a Comissão Nacional da Verdade, que, apesar de não ser a única comissão da verdade focada nos acontecimentos do período da Ditadura Militar [14], é sem dúvida a mais abrangente e que recebe mais atenção tanto do Governo Federal quanto da mídia.
Criada pela Lei nº 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, a CNV é formada por sete membros nomeados pela Presidente Dilma Rousseff que, juntamente a quatorze auxiliares, foram escolhidos para atuar na apuração das graves violações de Direitos Humanos ocorridas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ou seja, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
A Comissão recebeu poderes específicos para convocar vítimas, acusados e testemunhas para depoimentos, bem como acessar todo o arquivo mantido pelo Poder Público referente ao período. Seu trabalho visa descobrir a verdade sobre o que de fato aconteceu, como um "passo relevante para consolidação da sociedade democrática brasileira" [15], livre das restrições, mentiras e omissões típicas dos regimes ditatoriais. Porém, o papel da Comissão não é processar ou punir os acusados e nem recomendar que sejam punidos pelos órgãos competentes, mesmo que suas investigações concluam pela responsabilização destes. Essa punição deve ser feita pelos órgãos do Judiciário, inclusive porque a Comissão (estabelecida no âmbito do Poder Executivo) não recebeu poderes para isso. Vale aqui destacar trecho da entrevista concedida à BBC Brasil pelo comissário da ONU Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão da Verdade no Brasil:
Nossa função é apurar os fatos e circunstâncias e oferecer isso como uma fotografia honesta, complexa e completa de uma história que normalmente é contada com preconceitos e com viés ideológico. Acho que precisamos nos confrontar com a verdade. O trabalho da comissão vai ser também um exercício de contar a verdade.[16]
Ele afirma também que a Comissão não tem mandato para questionar a Lei de Anistia de 1979, que concedeu perdão aos acusados, envolvidos ou responsáveis por violações aos direitos humanos anteriores à lei, afastando o julgamento e a, passível, condenação e punição dos militares e agentes do Estado pelos crimes cometidos[17]. Assim, tem-se que a função da Comissão é elaborar um relatório para apresentar à sociedade “os fatos e circunstâncias e oferecer isso como uma fotografia honesta, complexa e completa de uma história que normalmente é contada com preconceitos e com viés ideológico.” [18], cabe ao Judiciário decidir se atua no sentido de usar essas conclusões serão usadas para punir os responsáveis.
A Comissão, que tem como foco principal esclarecer os casos de desaparecidos políticos, está organizada em três subcomissões: Pesquisa (dividida em grupos de trabalho temáticos), Relações com a Sociedade e Comunicação. Os grupos de trabalho se estruturam em torno de 13 eixos temáticos e atuam a partir de pesquisa documental e tomada de depoimentos, estando articulados com os arquivos públicos e as comissões da verdade dos estados, bem como empresas públicas ou privadas que possuam arquivos do período e organismos internacionais, visto que a política de repressão do regime recebeu apoio internacional de diversos países.
Os trabalhos da Comissão já renderam resultados preliminares, apresentados em seis relatórios:
1. Entregue em 18/02/2014 – Apresentado ao Ministério da Defesa, buscou identificar instalações sob responsabilidade direta de cada uma das três Forças Armadas, localizadas nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, que foram utilizadas para perpetração de torturas e ocorreram mortes sob tortura, entre outras graves violações de direitos humanos, de presos políticos durante o regime.
2. Entregue em 27/02/2014 – Apresentado no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, tratou sobre o caso do deputado Rubens Paiva, preso, torturado, morto e desaparecido em janeiro de 1971, indicando autores diretos e indiretos da tortura e morte.
3. Entregue em 25/03/2014 – Também apresentado no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, expôs esclarecimentos sobre a casa da morte de Petrópolis, centro clandestino de tortura na época ditatorial.
4. Entregue em 07/04/2014 – Apresentado em São Paulo, sobre os centros clandestinos de violação de direitos humanos.
5. Entregue em 22/04/2014 – Apresentado em Brasília, sobre o acidente de carro que causou a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek e do motorista Geraldo Ribeiro.
6. Entregue em 29/04/2014 – Apresentado no Rio de Janeiro sobre o caso Riocentro: terrorismo de Estado contra a população brasileira
O prazo para a Comissão finalizar seus trabalhos é dezembro de 2014, quando os grupos devem entregar um relatório final com descrevendo as atividades realizadas e os principais achados e esclarecimentos sobre os fatos investigados, identificando também conclusões quanto aos autores das graves violações, bem como demais informações pertinentes (local, data, vítimas, etc).
5. Direito à Verdade e à Memória no Brasil
5.1. Processo Democrático
A luta da sociedade brasileira pela construção de uma identidade social, pela consolidação de sua democracia e superação de seu passado autoritário mais do que um ponto de chegada é um processo de constante busca pelo direito à verdade, à história, à memória e à informação.
A constituição brasileira de 1988 foi um marco fundante de uma sociedade pós autoritária e inaugurou um período de promoção aos direitos humanos e de sua incorporação como base do ordenamento jurídico no Estado brasileiro, estabelecendo como seu fundamento a proteção à dignidade da pessoa humana. Contudo, essa emergência de um Estado democrático fundado na proteção aos direitos humanos surgiu como forte demanda da população brasileira durante os governos autoritários dos anos sessenta e setenta. Importante ressaltar que esse processo democrático não é estático e linear mas se molda de acordo com as experiências e memórias históricas de uma sociedade.
5.2. Comissões de Verdade
Nesse contexto surge a discussão sobre um direito fundamental à memória como essencial à construção da identidade do indivíduo e da comunidade e portanto trata-se em última análise de um direito voltado à proteção da dignidade humana. É um direito extremamente importante pois somente através da memória uma sociedade é capaz de ressignificar seu presente através de um enfrentamento do passado e contribuir, assim, para sua mudança e superação no futuro, construindo uma democracia cada vez mais fortalecida. "A luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento" (Hannah Arendt). Com esse intuito, a partir de 1974 surgem inúmeras comissões de verdade no Brasil e no mundo buscando garantir um direito à verdade, à informação e à memória das pessoas. Apesar de suas diferenças e particularidades todas tem um objetivo em comum que é evitar que a amnésia social e o esquecimento político afetem o futuro democrático de uma população.
Essas comissões buscam através de investigações, depoimentos, testemunhos, averiguação de documentos, dentre outros meios, o esclarecimento de situações obscuras ocorridas durante um período de repressao ou uma guerra civil em que houve abusos e violações à direitos fundamentais. No entanto, mais do que buscar trazer a tona a verdade sobre eventos e fatos ocorridos no passado, essas comissões procuram a compreensão sobre um contexto histórico passado. Dessa maneira, busca-se evitar que esses momentos em que arbitrariedades políticas são cometidas e direitos são afrontados sejam negados à memória da história de uma sociedade e que as marcas da repressão sejam apagadas do espaço publico. Dessa forma, a memória significa também um alerta sobre governos autoritários e, ainda, uma forma de se atingir as instituições de Estado, aperfeiçoando-as e contribuindo, assim, para uma política de não repetição.
5.3. Justiça de Transição
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem um papel importante na promoção desse direito pela sua jurisprudência que promove um entendimento da justiça de transição como um momento de proteção dos direitos e reconhecimento das infrações. A justiça de transição trata-se da promoção de políticas de reação às violações sistemáticas aos direitos humanos cometidas em períodos de autoritarismo. Possui caráter restaurativo e objetiva uma reparação e reconhecimento às vítimas assim como a construção de possibilidades de reconciliação nacional e fortalecimento da democracia através da memória. Do ponto de vista individual, essas políticas são uma forma de restaurar a dignidade humana ferida durante esses períodos enquanto do ponto de vista coletivo, elas permitem um reconhecimento por parte do Estado de sua responsabilidade pelos atos praticados em seu nome, representando uma remissão deste com seus cidadãos.
5.4. Anistia Brasileira
É fundamental estabelecer que a lei de anistia de 1979 surgiu de um contexto de fortes reinvindicações populares, ao contrário do que ocorreu em muitos países da América Latina, por exemplo, em que a anistia foi uma imposição do governo contra a população, ou seja, uma auto-anistia explícita. No nosso caso, entretanto, a anistia foi uma forte demanda da sociedade, referindo-se em princípio aos presos e perseguidos políticos. De toda forma, a anistia como ocorreu, abrangendo as torturas cometidas por agentes de Estado não foi objeto das demandas populares, sendo, de fato, uma degeneração da referida lei da anistia. Essa interpretação deturpada da lei, que em última análise nada mais é senão uma auto-anistia, camuflada pela ideia de uma anistia bilateral vai de encontro ao nosso ordenamento jurídico sob a luz dos princípios de proteção aos direitos humanos e respeito aos tratados internacionais firmados pelo Brasil.
Nesse sentido, não devemos esquecer que a Lei da Anistia (Lei 6.683/79) surgiu ainda em um contexto de vigência de regimes militares e apesar de ter marcado o ínicio da nossa redemocratização e ter surgido de grande apelo popular, negou o benefício da anistia à parte de seus perseguidos políticos e portanto, negou-lhes também o direito à opor-se àquele regime de exceção. Além disso, essa lei foi interpretada de forma a promover a amnésia social e o esquecimento, até mesmo dos crimes de tortura e assassinatos cometidos pelo governo vigente.
5.5. Políticas de Consolidação da Memória
No Brasil, a discussão sobre direito à verdade e à memória, apesar de tardia em comparação a outros países da América Latina, foi potencializada pela criação da Comissão da Verdade que procura revelar a história e as situações de opressão ocorridas durante o período da ditadura militar. No entanto, o reconhecimento do direito à verdade e à memória em relação à ditadura militar se iniciou com a Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que criou a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMP) no âmbito do Ministério da Justiça e que, segundo sua ementa, "reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979", conferindo ao Estado a responsabilidade pelo assassinato de opositores políticos.
Após à Lei nº 9.140/95, houve a edição da Lei nº 10.559/2002 que estabeleceu a Comissão de Anistia também no âmbito do Ministério da Justiça para examinar requerimentos de reparação econômica com caráter indenizatório à pessoas perseguidas politicamente naquele período. Assim como a CEMP, esta Comissão também possui um caráter reparatório. Não podemos esquecer do já comentado e importantíssimo passo para o estabelecimento e consolidação da democracia no Brasil: a nossa Constituição Cidadã, que surge como uma resposta aos anseios sociais pelo respeito e promoção dos direitos humanos.
Vale ressaltar, ainda, o papel importante de outras frentes na promoção ao direito à memória como o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, criado em 2009 pela Casa Civil da Presidência da República com o objetivo de difundir informações e estudar fatos sobre o regime político que vigorou durante os governos militares no Brasil. Há também alguns trabalhos oriundos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República como o livro “Direito à Verdade e à Memória” e a exposição de fotos “Direito à memória e a verdade”. Para além desses trabalhos, foi concebido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2008 um conjunto de políticas educativas chamado “Anistia Política: uma educação para a democracia, cidadania e os direitos humanos”. Foram também consolidadas ações tal como as Caravanas da Anistia e o Memorial da Anistia, dentre outras contribuições para a construção dessa memória histórica.
5.6. Perspectivas
Todas essas políticas de memória tendem a construir um senso comum democrático, que vá de encontro a nossa cultura autoritária e de naturalização da violência, fortalecendo uma cultura de contestação à regimes opressores e progressivamente incorporando valores democráticos em todas as camadas da sociedade. Dessa forma, mais do que punir culpados e realizar julgamentos e condenações, nossa justiça de transição deve buscar garantir o direito à memória, à verdade histórica, à construção de uma identidade coletiva, de um senso comum democrático, assim como promover o direito à voz dos oprimidos, à sua opinião, ressignificação a sua história e à liberdade de expressão.
6. Caso Tayná e o excesso por parte dos agentes do Estado.
O caso Tayná ficou bastante conhecido no País e, evidentemente, teve uma grande repercussão. Ocorrido no estado do Paraná, o caso retrata a morte de uma jovem de quatorze anos. O processo ainda carece de solução, mas, possui até então, quatro suspeitos. As investigações do caso ficaram conturbadas e tiveram uma demora em sua conclusão devido aos relatos dos possíveis suspeitos. Os mesmos relataram que após sofrerem quatro dias de tortura pelos policias e delegados responsáveis pela apuração dos fatos, é que o crime foi confessado. É dessa maneira que o acontecimento toma proporções maiores e ganha uma real complexidade.
O caso em tela traz a tona inúmeras discussões no âmbito jurídico, contudo, o tema abordado, por hora, será o excesso dos agentes do Estado. Os inquéritos instaurados devido ao delito cometido contra a pessoa de Tayná, são abordados separadamente, sendo um deles com o objetivo de acolher o pedido do Ministério Público do Paraná - baseado nos relatos e nas provas colhidas durante o decorrer do processo - em apurar os possíveis crimes de tortura e abuso de poder praticados pelos policiais envolvidos na investigação.
A busca incessante pela “verdade real” do direito brasileiro, é construída pelos próprios agentes que compõe o processo, sendo assim, o agente goza de uma confiança que é incumbida pelo Estado, e que não deve ser posta em dúvida nem utilizada de maneira ilegítima. E, essa busca nos dias de hoje não deveria se utilizar de meios violentos para ser atingida, já que, atualmente o meio que se procura a verdade deve ser construído de forma igualitária, ou seja, o acusado fica em posição equivalente ao do acusador e é munido de uma defesa contundente, visando assegurar suas garantias fundamentais. Antigamente e principalmente nas épocas ditatoriais, não existia essa paridade das partes no processo penal, o polo passivo fazia um papel de coadjuvante, não possuindo o direito de se defender amplamente como visto na atualidade.
O atual regulamento jurídico brasileiro não prevê, de maneira nenhuma, o uso de qualquer tipo de tortura para se descobrir a “verdade real”, muito pelo contrário, o uso de tortura pelos agentes do estado é passível de sanções rígidas tanto administrativamente quanto penalmente, e ainda, caso seja comprovado a tortura, as informações colhidas de maneira ilegal não podem ser usadas no processo, correndo o risco de se ferir o Princípio da Inadmissibilidade da Prova Ilícita.
Sendo assim, o Brasil de hoje vem seguindo o mesmo viés dos integrantes da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos(CIDH), com uma politica bastante positivada, onde nossa Constituição Federal é radicalmente voltada para a garantia dos Direitos Humanos. De uma maneira que os princípios fundamentais assegurados constitucionalmente são de extrema importância e sua violação não deve ficar impune, caminhando assim para um processo penal mais justo e mais coerente com a nossa atual Carta Magna e com o mundo moderno.
A tortura originária dos agentes estatais está sendo elevada ao um alto nível de punição penal, com uma lei especifica e com agravantes de punibilidade devido ao fato do agressor ser funcionário do estado, como versa a Lei 9.455/97, no seu artigo 1º, parágrafo 4º, inciso I:
“Art. 1º. Constitui crime de tortura:
I- Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento mental.
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa,
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa,
c) em razão de discriminação racial ou religiosa,
II- submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como, forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§4º Aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) até 1/3 (um terço).
I - se o crime é cometido por agente público.
II- se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos.
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
Porém, mesmo com todos os princípios elencados na Constituição brasileira e no direito processual penal, e ainda com um regime politico democrático que enaltece os direitos individuais - carregados de uma série de princípios - ainda é possível observar casos de utilização da força dos agentes estatais para se obter informações, como no caso supracitado. Os crimes de tortura praticados por autoridades policiais, ainda são bastante corriqueiros no cotidiano do brasileiro e criam um obstáculo para consolidação do sistema democrático do País. Esses atos de tortura acabam sendo vistos comumente, devido a grande dificuldade de se provar o delito, uma vez que, os agentes possuem técnicas apuradas para evitar deixar marcas no corpo lesionado, assim como, na maioria das vezes, os relatos feitos pelas vítimas não são dignos de credibilidade. Outro fator que dificulta a coerção desse tipo penal é a falta de organismos confiáveis para o encaminhamento do processo, pois sabemos que as Corregedorias e afins não funcionam corretamente.
O combate a esse crime é matéria de repercussão mundial, e as comissões de direitos humanos acrescidas das inúmeras organizações privadas defensoras de tais direitos são as maiores responsáveis por essa luta. A substancial diminuição na quantidade desses tipos de delitos se devem as grandes comissões e tratados internacionais firmados no intuito de findar tal ato.
7. Conclusão
O direito à verdade é um direito fundamental de extrema importância em um Estado Democrático de Direito, tendo em vista que objetiva esclarecer possíveis abusos e violações a outros direitos fundamentais. Além de legitimar a atuação estatal, o direito à verdade significa que a sociedade tem o direito de saber se eventuais arbitrariedades foram cometidas no processo de atuação estatal em busca da verdade.
O direito à verdade e à memória já está estabelecido internacionalmente, devido à sua relevância no sentido de contribuir para que o esquecimento político não afete o futuro democrático de uma população.
Nesse cenário, destacou-se o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem se esforçado para garantir que cada país respeite os direitos fundamentais, efetivando-os por meio de suas respectivas Constituições. A Corte Interamericana tem criado importantes precedentes e, no tocante ao direito à verdade, ressalta-se o Caso de la Masacre de la Rochela, que condenou o Estado da Colômbia por violação dos direitos às garantias processuais e à proteção judicial, além de violação do direito à vida, à liberdade e à integridade das vítimas e de seus familiares.
Segundo o entendimento da Corte Interamericana, o direito à verdade é o direito de que a vítima ou seus familiares obtenham das autoridades competentes do Estado o esclarecimento dos atos violatórios e suas correspondentes responsabilidades.
Quanto ao Brasil, percebe-se que a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda não foi definitivamente incorporada pelos tribunais brasileiros. Conforme anteriormente exposto, ainda se vislumbra atualmente casos de não observância das garantias processuais, muitas vezes em busca da suposta “verdade” real, que acabam violando direitos fundamentais.
Essa busca pela “verdade” real permite que sejam cometidos excessos durante a instrução processual, como no caso Tayná, e por se ter atingido o objetivo que era a descoberta de uma suposta verdade, não há a preocupação em esclarecer os meios que foram utilizados na persecução, ferindo o direito à verdade.
Outro grave problema de se manter ocultos os meios utilizados na instrução criminal, é que os casos de tortura e abuso vão se tornando mais frequentes, pois os agentes não são responsabilizados e permanecem impunes. A ausência de publicidade dos atos estatais leva, infelizmente, ao descaso para com os direitos e garantias fundamentais.
Entretanto, apesar de a posição do Estado brasileiro ainda não ser satisfatória, tendo em vista que ainda são cometidas violações a garantias processuais e, consequentemente, a direitos fundamentais que permanecem sem explicação, já se observa que existem iniciativas de garantir o respeito à verdade e à memória.
Um dos principais exemplos nesse sentido é a criação da Comissão Nacional da Verdade, que inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o direito à verdade, entendido a partir de duas dimensões: individual, referente às famílias das vitimas; e coletiva, como um direito da sociedade de saber o que ocorreu em seu passado para que não mais se repita no futuro.
A Comissão Nacional da Verdade, juntamente com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e outras iniciativas, representam um grande avanço na concretização do direito à verdade, buscando suprir a omissão de anos do Estado brasileiro. É preciso que comissões como essas estejam sempre atuando, com o intuito de fiscalizar os órgãos estatais para que garantias fundamentais sejam respeitadas e excessos não sejam cometidos.
Conforme explicitado pela Corte IDH na sentença do caso do Masacre de la Rochela, as obrigações positivas inerentes ao direito à verdade exigem a adoção de programas institucionais para que o direito se realize de forma mais idônea, participativa e completa possível, garantindo que sua efetivação não enfrente obstáculos burocráticos capazes de tornar a concretização do direito ilusória.
Sendo assim, é certo que a transparência dos atos estatais é essencial para o respeito aos direitos fundamentais, garantindo que não haja excessos por parte do Estado e que também não haja omissões na investigação de possíveis violações. A satisfação do direito à verdade deve ser um dever assumido pelo Estado brasileiro, pois somente desta forma poderemos ter um processo penal que respeite os indivíduos e um real Estado Democrático de Direito.
Referências Bibliográficas:
LOPES, Aury. Direito Processual Penal. 11 Edição. 2014
[1] LOPES JR., Aury – pág. 823 – Direito Processual Penal – 9ª Edição – Editora Saraiva
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda – pág 105 – Sistema Acusatório – cada parte no lugar constitucionalmente demarcado – Revista de Informação Legislativa - nº 143
[3] LOPES JR., Aury – pág. 825 – Direito Processual Penal – 9ª Edição – Editora Saraiva
[4] Para maiores informações ver “Caso de los 19 Comerciantes Vs. Colombia”.
[5] Artigo 4 da Convenção Americana: “1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”.
[6] Artigo 5.1 da Convenção Americana: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.”.
[7] Artigo 5.2 da Convenção Americana: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”.
[8] Artigo 7.1 da Convenção Americana: “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.”.
[9] Artigo 8.1 da Convenção Americana: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”.
[10] Artigo 25.1 da Convenção Americana: “Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”.
[11] Artigo 2 da Convenção Americana: “Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.”.
[12] http://www.revistaprincipios.com.br/principios/component/content/article/34-noticias/278-verdade-e-justica-para-joao-batista-franco-drummond-decisao-inedita-manda-retificar-sua-certidao-de-obito.html
[13] Idem.
[14] Temos também a Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada pela Lei 9.145/95, Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, criada pela Lei 10.559/02, a Comissão da Verdade de São Paulo, entre outras.
[15] Ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, membro da comissão - http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnv/57-a-instalacao-da-comissao-nacional-da-verdade
[17] Inclusive, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na decisão do caso Gomes Lund e outros v. República Federativa do Brasil, determinou que a aplicação da referida lei seja afastada nos casos em que represente um obstáculo para a investigação dos crimes contra os direitos humanos. O caso refere-se principalmente aos ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia no início da década de 1970, porém é uma decisão importante para a consolidação do direito à verdade, visto que estabelece obrigações ao Estado do Brasil para efetivação desse direito, bem como responsabiliza o país pelos desaparecimentos forçados ocorridos durante o conflito.
[18] Idem.
Estudante de Direito na Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAFAELA DE MIRANDA OCHOA PEñA, . Direito à verdade: Análise de Precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos - Caso de la Masacre de la Rochela Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40553/direito-a-verdade-analise-de-precedente-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-caso-de-la-masacre-de-la-rochela. Acesso em: 22 nov 2024.
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