RESUMO: O constitucionalismo é um processo que está em pleno desenvolvimento. Se o seu surgimento ocorreu com a Constituição do Estado Liberal foi com o Estado Social que começou a ser superado as deficiências do constitucionalismo liberal. O presente artigo se destina a analisar, de forma suscinta, as origens, o ambiente historico e o significado da Constituição do Estado Social, bem como do movimento do constitucionalismo social, e seu legado. Analisa-se o significado das Constituições do México e da Alemanha e a influência das guerras mundiais e da revolução russa. Concluí-se afirmando-se que o maior legado do constitucionalismo social foi a superação da igualdade formal para igualdade material, com a proposta de diminuição das desigualdades reais, e a possibilidade de intervenção do estado na economia.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Constitucionalismo. Estado Social. Constitucionalismo social. Igualdade material. Intervenção do Estado na economia.
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A constituição do Estado Social de Direito[1] é fruto de um processo histórico que se desenvolve após a revolução Russa de 1917 e de um período em que se contestava a omissão do ente estatal em intervir na sociedade. O modelo do constitucionalismo liberal não mais atendia os problemas sociais – se é que em algum dia atendeu – por abster-se de regular atividades e negócios entre particulares em respeito ao princípio da autonomia da vontade, muito embora a autonomia entre desiguais não fosse a mesma.
Com o objetivo de analisar, de forma sucinta, as origens dessa fase do constitucionalismo e seu legado, é que se propõe esse artigo.
II – ORIGENS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL DE DIREITO
Nas últimas décadas do século XIX avultaram-se as críticas e movimentos como forma de contestação ao Estado Liberal burguês e de ruptura com o mesmo, tais como, e dentre os mais celebres, encontra-se o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Engels, e, no campo do direito, a conferência de Lassalle, sobre a essência da Constituição que seriam os fatores reais de poder e não mera folha de papel, entre tantos outros. Com a segunda década do século XX, em virtude da crise e da competição do capitalismo, por meio da sua expansão das nações centrais para as colônias[2], veio a Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial), assim designada por não se imaginar que haveria ainda outro conflito com proporções ainda maiores. No meio do conflito mundial ocorre e se desenvolve a revolução russa e a consequente fundação de um novo modelo de Estado, qual seja, o socialista, com fundamento na doutrina marxista-lininista.
Com a revolução mexicana, que teve início em 1910 e findou em 1917 com uma nova Constituição, e com a promulgação em 1919 na Alemanha da Constituição de Weimer, cimentou-se as bases do Estado Social, que se consolidou, após o término da Segunda Guerra Mundial.
Referindo-se a Constituição de Weimar, Vital Moreira, assinala que:
"nela a economia e o trabalho entram na Constituição. A economia tornou-se também uma questão do Estado e consequentemente uma questão constitucional (‘Constituição económica`). E ao lado dos direitos de liberdade individuais, típicos do primeiro Constitucionalismo, entram na Constituição os direitos colectivos e os direitos a prestação do Estado (direitos económicos, sociais e culturais). A par do cidadão individual paradigmático do Constitucionalismo liberal, o proprietário independente, entram na Constituição também os trabalhadores dependentes"[3].
Ao contrário do surgimento do Estado liberal burguês e do Estado socialista, o Estado social, não surgiu de uma revolução de classe social. Embora um dos seus sentidos e objetivos tenha sido uma revolução – mas não sua e sim a russa –, o surgimento do Estado social adveio da luta da classe oprimida e organizada, e uma concessão da elite capitalista, como forma de conter o avanço da revolução comunista deflagrada na Rússia em outubro de 1917. Noutras palavras, e no contexto brasileiro da revolução de 1930, com sinceridade peculiar, um político de então falou: “façamos a revolução antes que o povo faça”[4].
Consoante as lições de Dalmo de Abreu Dallari, as causas para o surgimento do Estado social[5], são, em síntese, as seguintes: revolução industrial, que possibilitou o surgimento da classe proletária que viria a reivindicar melhores condições de vida; a Primeira Guerra Mundial, que rompeu com o liberalismo econômico, pela necessidade de intervenção estatal; a crise econômica de 1929 e a depressão, onde nasceu uma política econômica, com base na teoria de Keynes, proclamando o intervencionismo estatal; a Segunda Guerra Mundial[6], quando é exigido do Estado um papel controlador dos recursos sociais; as crises cíclicas do sistema capitalista; os movimentos sociais, expondo a contradição entre o livre mercado e o interesse social e uma liberdade positiva.
É ilustrativo a seguinte passagem de José Luis Bolzan de Morais:
A construção de um Estado como Welfare State está ligada a um processo histórico que conta já de muitos anos. Pode-se dizer que o mesmo acompanha o desenvolvimento do projeto liberal transformado em Estado de Bem-Estar Social no transcurso da primeira metade do século XX e que ganha contornos definitivos após a Segunda Guerra Mundial[7].
O surgimento deste novo Estado afeta, sobremaneira, as concepções acerca das Constituições e suas funções, sentido ou objetivo. A sociedade não se contenta mais com a Constituição como um mero Instrument of Government, clamando por uma constitucionalização e concretização dos direitos sociais. Nesta quadra da história, o Estado passa a incorporar a "questão social, a qual lhe agrega um caráter finalístico percebido como função social, forjando-o como Estado Social e impondo-lhe um caráter interventivo-promocional"[8]. As Constituições, em termos gerais, são o estatuto jurídico para a atuação do Estado com um caráter finalístico e com uma função social.
Retornando a Constituição de Weiman, uma das referências desse período, conforme Klaus Stern, estabeleceu uma série de avanços:
"La Ley Fundamental de Bonn muestra una tal antecipación del futuro político sobre todo en la cláusula del Estado Social, en el mandato de reunificación (Preámbulo, Art. 23.2, Art. 146), en el Art. 6.5, en la igualdad de derechos del hombre y la mujer (Art. 3.2), en el encargo de la nueva organización de los Estados miembrosdel Art. 29 (redacción antigua), en su compromisso com la paz (Preámbulo, Art. 26.1), com las normas de Derecho Internacional (Art. 25) y com la integrción europea (Art. 24), así com en la configuración de numerosos derechos fundamentales"[9].
Deste modo, passam a fazer parte das Constituições o leque de direitos sociais que antes não apareciam nos textos constitucionais, dentre eles, a limitação a liberdade de contratar; limitação a propriedade privada com a função social qualificando-a; o intervencionismo econômico e social do Estado é inserido nas Constituições por meio das normas programáticas. Assim, o Estado passa a ter o dever de minimizar as diferenças econômicas e sociais, e a democracia é elevada ao seu mais alto grau como princípio fundamental da sociedade. A Constituição deixa de ser um instrumento único do Estado e passa a ser de toda a coletividade.
A partir deste período a Constituição pretende traçar o rumo da sociedade, por meio da inclusão em seu texto, de princípios norteadores à atuação do Estado e coletividade, tarefas a serem realizadas, através das normas programáticas constantes no corpo da Lei fundamental. Por conseguinte, passa a Constituição a incrementar funções e objetivos antes desconhecidos de seu ideário que, ou eram relegados a atuação da atividade privada, ou, até mesmo, desprezados como sendo função da Lei maior ou do Estado.
III – CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, sem rememorar o que já se argumentou no desenvolvimento do texto, é necessário ressaltar os principais legados desse período do constitucionalismo e do Estado social. Para tanto deve se ter presente que esse período da história constitucional ocorreu de formas e modos diversos em cada país, com suas características locais diferenciadas, e cada qual com seu reflexo na realidade constitucional. De todo modo é possível sim sintetizar os legados, mesmo com essa ressalva, em dois grandes vértices: possibilidade de intervenção do estado na economia e igualdade material.
Assim, desde o constitucionalismo social não se discute a possibilidade do Estado intervir na economia, embora em diferentes graus, é certo que há essa possibilidade e é certo que as Constituições preveem essa forma de atuação estatal, nem que seja, ao menos, para regulamentá-la.
Do mesmo modo, não mais contenta-se com a igualdade meramente formal dos textos legais, pois necessário buscar uma igualdade material para possibilitar um mínimo existencial para cada indivíduo. E, para tanto, deve o Estado e toda coletividade agir de forma a possibilitar a minoração das desigualdades sociais.
Dessa forma, o Estado social possibilitou a subida de mais um degrau na evolução do constitucionalismo e das Constituições dando outras possibilidades de ação que o constitucionalismo liberal não vislumbrava.
IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, Rubin Santos Leão de. ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de. FRANCO, Denize de Azevedo. LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos, História das Sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais., 21a ed., Editora Ao Livro Técnico, 1988.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade. Malheiros Editores, São Paulo, 2001.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 20a ed., Saraiva, São Paulo, 1998.
MORAIS, Fernando. Chatô o Rei do Brasil: a vida de Assis Chateaubriand, Companhia das Letras, São Paulo, 1994.
MORAIS, José Luis Bolzan de. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002.
MOREIRA, Vital. O Futuro da Constituição, in Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, Organizadores Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, Malheiros Editores, São Paulo, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direito Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel, Organizador Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha, Cento de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987.
[1] Não cabe uma discussão acerca da terminologia do Estado do segundo pós guerra, para tanto, adotamos os ensinamentos do Professor Ingo Sarlet que, "a respeito da terminologia ‘Estado Social de Direito`, que aqui utilizaremos ao invés de outras expressões, tais como ‘Estado-Providência`, ‘Estado de Bem-Estar Social`, ‘Estado Social`, ‘Estado Social e Democrático de Direito`, ‘Estado de Bem-Estar` (‘Welfare State`) ... Todas, porém, apresentam, como pontos em comum, as noções de um certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais mínimas para uma existência digna". SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direito Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel, Organizador Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 132.
[2] "A compartimentação do mercado europeu devido às barreiras aduaneiras levou as nações capitalistas a se lançar à busca de novos mercados extra-europeus. Essa expansão imperialista, às vezes, assumia características colonialistas quando ocorria a conquista de territórios que ficavam submetidos econômica, administrativa, política e militarmente". AQUINO, Rubin Santos Leão de. ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de. FRANCO, Denize de Azevedo. LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos, História das Sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais., 21a ed., Editora Ao Livro Técnico, 1988, p. 198.
[3]MOREIRA, Vital. O Futuro da Constituição, in Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, Organizadores Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, Malheiros Editores, São Paulo, 2001, p. 315.
[4] Nada ilustra melhor e com tamanha sinceridade tal sentimento das elites econômicas e políticas, no caso a brasileira, quando da chamada revolução de 1930 (em verdade um Golpe de Estado reformista), a seguinte passagem descrita por Fernando Morais: "Para enorme decepção de tenentes e aliacistas, porém, o ‘Cavaleiro da Esperança` já tinha escolhido outro caminho. Prestes também queria uma revolução - mas diferente da que estava sendo tramada por Vargas e cujos objetivos, para ele, tinham sido fielmente traduzidos pela famosa frase do governador Antônio Carlos: ‘Façamos a revolução antes que o povo a faça`". (grifo nosso). MORAIS, Fernando. Chatô o Rei do Brasil: a vida de Assis Chateaubriand, Companhia das Letras, São Paulo, 1994, p. 216.
[5] Acerca da diferença na formação dos tipos de Estado, liberal, socialista e social, é lapidar o ensinamento de Paulo Bonavides: “O Estado liberal e o Estado socialista, frutos de movimentos que resolveram e abalaram com armas e sangue os fundamentos da sociedade, buscavam, sem dúvida, ajustar o corpo social a novas categorias de exercício de poder, concebidas com o propósito de sustentar, desde as bases, um novo sistema econômico adotado por meios revolucionários.
Já o Estado social propriamente dito - não o do figurino totalitário, quer de extrema esquerda, quer de estrema direita - deriva do consenso, das mutações pacíficas do elemento constitucional da Sociedade, da força desenvolvida pela reflexão criativa e, enfim, dos efeitos lentos, porém seguros, provenientes da gradual acomodação dos interesses políticos e sociais, volvidos, de último, ao seu leito normal.” BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade. Malheiros Editores, São Paulo, 2001. p. 150.
[6] "Assumindo amplamente o encargo de assegurar a prestação dos serviços fundamentais a todos os indivíduos, o Estado vai ampliando sua esfera de ação. E a necessidade de controlar os recursos sociais e obter o máximo proveito com o menor desperdício, para fazer face às emergências da guerra, leva a ação estatal a todos os campos da vida social, não havendo mais qualquer área interdita à intervenção do Estado". DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 20a ed., Saraiva, São Paulo, 1998, p. 280.
[7] MORAIS, José Luis Bolzan de. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002. p. 34.
[8] Idem, p. 34.
[9]STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha, Cento de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987, p. 216.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. Origem e significado da Constituição no estado social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40565/origem-e-significado-da-constituicao-no-estado-social. Acesso em: 22 nov 2024.
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