RESUMO: No presente artigo faremos um estudo do bem de família, desde a sua origem no ordenamento jurídico brasileiro, com enfoque na impenhorabilidade instituída pela Lei 8.009/90. Nesse contexto, faremos uma análise, à luz da doutrina e da jurisprudência pátrias, da possibilidade de se caracterizar o único imóvel do devedor, cedido a familiares, como bem de família, conferindo-lhe, portanto, o benefício da impenhorabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: Bem. Família. Único. Imóvel. Devedor. Cedido. Familiares. Impenhorabilidade.
1. INTRODUÇÃO
O direito à moradia digna somente encontrou guarida na Constituição Federal, como um direito fundamental social do indivíduo, com a Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou a redação do art. 6º da Carta Magna, incluindo a moradia no rol dos direitos que exigem o amparo estatal, como, por exemplo, o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados. Antes disso, o direito à moradia estava previsto constitucionalmente apenas como um direito do trabalhador urbano e rural (art. 7º, inciso IV).
Na lição de Walber de Moura Agra
Direitos sociais são a espécie de direitos humanos que apresenta, como requisito para sua concretização, a exigência da intermediação dos entes estatais, quer na realização de uma prestação fática quer na realização de uma prestação jurídica. Os direitos de liberdade são forcejados para o individualismo, posteriormente sendo reestruturados para o consumidor. Já os direitos sociais consideram o homem além de sua condição individualista, abrangendo-o como cidadão que necessita de prestações estatais para garantir condições mínimas de subsistência. A titularidade dos direitos fundamentais sociais é deslocada da esfera exclusiva do indivíduo para incidir na relação cidadão-sociedade[1].
Muito embora o direito à moradia tenha sido elevado à condição de direito fundamental social somente com a EC 26/2010, há muito existe no ordenamento jurídico brasileiro uma preocupação com a finalidade social da moradia, tendo a Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990, sido concebida para garantir a dignidade e a funcionalidade do lar (STJ – Corte Especial, REsp 109.351, Relator Min. Gomes de Barros, DJU 25.5.98)[2].
De acordo com o art. 1º da referida Lei 8.009/90, “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida (...), contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam”.
A despeito da expressa disposição do art. 5º, da Lei 8009/90, no sentido de que “para os efeitos de impenhorabilidade, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”, os juristas brasileiros vêm buscando, desde a edição da EC 26/2000, conferir a maior amplitude possível ao conceito de bem de família.
Na mesma esteira, verifica-se uma mudança constante na jurisprudência pátria, objetivando atingir a máxima proteção à prerrogativa constitucional da moradia digna.
2. O BEM DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O bem de família está previsto no direito brasileiro desde o Código Civil de 1.916, tendo sido inserido inicialmente na Parte Geral, no livro dos bens (arts. 70 a 73), o que mereceu diversas críticas dos doutrinadores, levando à sua inserção na Parte Especial, especificamente no direito de família, como está atualmente no novo CCB (arts. 1.711 a 1.722)[3].
Da análise da legislação que rege a matéria, observa-se que a intenção do legislador evoluiu no sentido de ampliar o conceito de bem de família, a fim de garantir que o imóvel destinado à moradia atenda amplamente às necessidades do núcleo familiar que ali reside. Com efeito, o art. 1.712 do Código Civil prevê, em sua redação atual, que o bem de família consiste em “prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família”.
Essa grande inovação legislativa trouxe, portanto, para o instituto do bem de família, os bens móveis que guarnecem a residência e até mesmo os valores mobiliários utilizados na conservação do imóvel e no sustento da família.
Desde o Código Civil de 1.916, já existia, no ordenamento jurídico brasileiro, a previsão de se isentar o bem de família da execução por dívidas posteriores à sua instituição, excetuadas as decorrentes de tributos relativos ao prédio. Entretanto, optou o legislador infraconstitucional por regulamentar a questão da impenhorabilidade desse bem em ato normativo especial, a fim de garantir maior estabilidade ao núcleo familiar, surgindo daí a Lei 8.009/90.
Esta lei confere a proteção da impenhorabilidade ao imóvel residencial da entidade familiar, independentemente de registro imobiliário, conforme explica Theotonio Negrão (2013, p. 1.271)
Diversamente do que ocorre com o bem de família previsto no CC (arts. 1.711 a 1.722) e na LRP (arts. 260 a 265), o benefício da isenção da execução instituído na Lei 8.009/90 independe do registro imobiliário (RSTJ 107/232, RT 725/368), mas ao interessado caberá provar, no processo de execução, que o imóvel tem destinação residencial para o casal ou a entidade familiar. O registro do bem de família instituído conforme o CC tem a função de preconstituir essa prova[4].
3. A ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE BEM DE FAMÍLIA DIANTE DA GARANTIA DA IMPENHORABILIDADE
Ressalvadas as hipóteses previstas no art. 3º da Lei 8.009/90, em que fica afastada a prerrogativa da impenhorabilidade do imóvel – créditos de trabalhadores da própria residência e respectivas contribuições previdenciárias; crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel; créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; crédito de pensão alimentícia; impostos, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; imóvel adquirido com produto de crime; obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação – desde a EC 26/2000, existe uma tendência na doutrina e jurisprudência brasileiras, conforme já mencionado, no sentido de conferir a maior amplitude possível ao conceito de bem de família, atendendo-se à finalidade social da Lei n. 8.009/90.
A impenhorabilidade do bem de família é oponível inclusive contra a execução de dívida ativa promovida pela Fazenda Pública, valendo transcrever os comentários de José da Silva Pacheco (2002, p. 138) sobre o assunto
É impenhorável o imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar. A família recebe proteção especial do Estado. Não pode a Fazenda Pública levar desgraça a quem deve receber inalienável proteção. O Judiciário não pode permitir vingar o entendimento de que o art. 3º da Lei 6.830/80, mal redigido, permite a penhora de bem impenhorável (STJ, REsp 6.780-PR, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU, 18 mar. 1991)[5].
Além disso, conforme entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, a Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência (Súmula 205), tendo a impenhorabilidade do bem de família passado a abranger o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas (Súmula 364).
Todavia, até pouco tempo atrás, ainda pairavam dúvidas, no âmbito da Corte Superior, acerca da aplicabilidade da Lei 8.009/90, quando, no único imóvel do devedor, residiam apenas seus familiares.
A Primeira Seção do STJ solucionou a questão, em recentíssimo acórdão, proferido em sede de embargos de divergência, nos quais a parte recorrente demonstrou a necessidade de pacificação do tema, diante da disparidade de posicionamentos até então existentes entre a Primeira e a Segunda Turma daquela Corte.
Trata-se do EREsp 1.216.187, assim ementado
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. ÚNICO IMÓVEL DO DEVEDOR CEDIDO A FILHO. BEM DE FAMÍLIA. EMBARGOS REJEITADOS.
1. Constitui bem de família, insuscetível de penhora, o único imóvel residencial do devedor em que resida seu filho ou demais familiares. A circunstância de o devedor não residir no imóvel, que se encontra cedido a familiares, não constitui óbice ao reconhecimento do favor legal. Inteligência dos arts. 1º e 5º da Lei 8.009/90.
2. Embargos de divergência rejeitados.[6]
No voto condutor desse acórdão, o relator Ministro Arnaldo Esteves Lima destacou a importância da proteção à família, asseverando que
Impõe-se lembrar, a propósito, o preceito contido no art. 226, caput, da Constituição Federal, segundo o qual a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, de modo a indicar que aos dispositivos infraconstitucionais pertinentes se confira interpretação que se harmonize com o comando constitucional, a fim de assegurar efetividade à proteção a todas as entidades familiares em igualdade de condições[7].
Fixou-se, portanto, o entendimento de que a proteção da impenhorabilidade, conferida pela Lei 8.009/90 ao único imóvel residencial do devedor, não se desconstitui, ainda que o bem esteja cedido para residência de filhos, netos ou enteados.
Assim, permanece como bem de família o imóvel do devedor destinado à residência de familiares, não constituindo óbice ao reconhecimento do favor legal da impenhorabilidade, o fato de o devedor nele não residir.
4. CONCLUSÃO
O direito à moradia constitui direito fundamental da pessoa humana, que deve ser amparado pelos entes estatais, uma vez que intrinsecamente relacionado à proteção da família, considerada constitucionalmente como base da sociedade (art. 226, caput da Constituição Federal).
Desse modo, o benefício da impenhorabilidade ao bem de família, instituído pela Lei 8.009/90, não deve ser interpretado como incentivo à contumácia do devedor. Trata-se, em verdade, de instrumento legal utilizado pelo Estado para resguardar a dignidade da moradia, protegendo a entidade familiar e, por conseguinte, a estabilidade do indivíduo e de toda a sociedade.
[1] MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Tratado de Direito Constitucional 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 515
[2] NEGRÃO, Theotonio et al . Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 45ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1.270
[3] FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil Comentado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1.571.
[4] Ob. cit. p. 1.271
[5] PACHECO, José da Silva. Comentários à Lei de Execução Fiscal (Lei n. 6.830, de 22-9-1980). 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 138
[6] STJ, EREsp 1.216.187/SC, Min. Arnaldo Esteves Lima. Primeira Seção, 14.5.2014, DJe 30.5.2014
[7]https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=34893914&sReg=201100707186&sData=20140530&sTipo=91&formato=PDF
Procuradora Federal. Pós-graduada em Direito Processual Civil - Universidade do Sul de Santa Catarina -UNISUL - conclusão em junho/2008. Graduada em Direito - Universidade Federal de Uberlândia - UFU - conclusão em janeiro/2000.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Letícia Mota de Freitas. O único imóvel do devedor pode ser considerado bem de família, ainda que cedido a familiares? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40876/o-unico-imovel-do-devedor-pode-ser-considerado-bem-de-familia-ainda-que-cedido-a-familiares. Acesso em: 22 nov 2024.
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