RESUMO: A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos encontra diversos óbices para a sua aplicação, seja pela imprecisão do conteúdo de suas normas, pela ausência de força coatora sobre os Estados ou pela carência de regras claras acerca de sua interpretação. Diante dessas dificuldades, mostra-se importante a interpretação de cada caso concreto à luz dos princípios, de modo que a aplicação dos direitos humanos se adeque à prática social de determinado lugar. Assim, os direitos humanos não estão restritos à legalidade dos tratados, pois se deve analisar o contexto em que se encontram inseridos, adaptando-se às circunstâncias do momento de sua aplicação e à prática moral de cada sociedade, de modo que prevaleça sempre a regra mais favorável ao ser humano. Para tanto, é imprescindível, que a aplicação dos direitos humanos esteja embasada em valores, mais do que em regras, para que se tornem efetivos.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Aplicação. Valores. Legalidade.
ABSTRACT: The application of international human rights treaties finds many obstacles to its implementation, is the inaccuracy of the content of its norms, lack of constraining force on the States or by the lack of clear rules concerning its interpretation. Faced with these difficulties, shown to be important to the interpretation of each case in the light of the principles, so that the application of human rights to social practice fits a particular place. Thus, human rights are not restricted to the legality of the treaties, because it should analyze the context in which they are inserted, adapting to the circumstances at the time of their application and practice of every moral society, so that the rule always prevails more favorable to human. For this it is essential that the application of human rights is grounded in values, rather than rules, to become effective.
Keywords: Human rights. Application. Values. Legality.
1. INTRODUÇÃO
Conforme já alertado por Gadamer[1], é necessário que o intérprete analise os textos, não com base em suas opiniões prévias consideradas isoladamente e, que porventura podem ser arbitrárias, mas buscando sua origem e validez. Ou seja, o intérprete deve ter conhecimento dos pontos de partida de cada texto.
Assim, a compreensão realizada pelo intérprete constitui um processo amplo, pois o texto deve ser lido como parte de um todo e não somente com base na pré-compreensão do intérprete. Há, dessa forma, como denominado por Heiddeger e Gadamer, um “círculo hermenêutico” entre a compreensão e a pré-compreensão, ou seja, um destes elementos influencia o outro constantemente. Por exemplo, as ciências do espírito, como o Direito, estão dentro deste círculo hermenêutico, pois são históricas.
Por conseguinte, somente se terá uma interpretação correta se o intérprete partir de uma pré-compreensão adequada. Em outras palavras, a validade pré-compreensão é que determina a validade da compreensão, que, por sua vez, influencia a legitimação daquela.
Desse modo, para a real compreensão dos direitos humanos, é preciso buscar a pré-compreensão existente a respeito do conteúdo e da interpretação dos direitos humanos, isto é, deve-se indagar quais são os direitos humanos e sobre quais direitos humanos se deve interpretar, sendo as respostas a estas perguntas as formadoras da nossa pré-compreensão. Por isso, mais importante que as respostas para a evolução do conhecimento, é fazer as perguntas certas.
Outrossim, o problema hermenêutico da aplicação dos direitos humanos atrela-se intrinsecamente ao círculo hermenêutico supramencionado, uma vez que a compreensão, a interpretação e a aplicação destes direitos são indissociáveis[2], haja vista a historicidade dos objetos de interpretação, quais sejam: os direitos humanos.
Dessa forma, é imprescindível se perquirir, dentro do Jusnaturalismo, do Positivismo e da Teoria do Direito como Integridade dworkiniana, o conteúdo e a interpretação dos direitos humanos, no afã de se obter soluções para os problemas de aplicação dos direitos humanos no âmbito internacional ou, pelo menos, algumas respostas, sob pena de estes direitos se tornarem inócuos na nossa sociedade atual.
2. DIREITOS HUMANOS À LUZ DO JUSNATURALISMO
Dentro da chamada “escola do direito natural”, encontram-se diversas correntes e autores, podendo-se distinguir um jusnaturalismo medieval, formado pelos juristas filósofos (como Pufendorf, Thomasius e Wolff), que tratava mais do direito privado do que do direito público, e um jusnaturalismo moderno (Escola do Direito Natural Racional), que surgiu nos séculos XVII e XVIII, sendo seus maiores expoentes Hobbes, Locke e Rousseau, cujas obras tratavam especialmente do direito público e sobre o problema do fundamento e da natureza do Estado.
Entretanto, não obstante possuírem perspectivas diferentes, todos estes autores pertencem à mesma escola do direito natural, mormente em virtude do “método” que utilizam para o estudo do direito, qual seja: o método racional. Em breves linhas, este método objetiva converter o Direito, a Moral e a Política em uma ciência demonstrativa, como o é a matemática.
Desse modo, a unificação desses vários autores dentro da escola do direito natural, deve-se, nas palavras de Bobbio (BOBBIO, 1986, p. 17), tanto ao seu princípio metodológico como ao seu objetivo:
“a construção de uma ética racional, separada definitivamente da teologia e capaz por si mesma, precisamente porque fundada finalmente numa análise e numa crítica racional de fundamentos, de garantir (...) a universalidade de princípios da conduta humana. Historicamente, o direito natural é uma tentativa de dar uma resposta tranquilizadora às consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise do universalismo religioso.”
Durante muito tempo, antes da filosofia política do direito natural, dominara no campo das ciências morais, o “modelo aristotélico”, baseado no fato de que as ações humanas não possuem o mesmo grau de certeza da natureza, devendo nos contentar apenas com o conhecimento provável. Assim, o jurista, à semelhança do teólogo, corresponderia a um comentador de textos, compreendendo-os e interpretando-os.
Outrossim, o “modelo aristotélico” se caracteriza por uma evolução entre a sociedade primitiva e a sociedade perfeita que é o Estado, não havendo uma contraposição entre ambas, mas uma relação de continuidade, o que é o oposto ao que preconiza o “modelo hobbesiano”, como veremos a seguir.
Aristóteles também afirmava que as leis naturais eram leis comuns a todos os povos (civilizados), devendo o consenso de todos os povos ser considerado lei de natureza. Os jusnaturalistas, porém, recusam este argumento do “consenso”, pois, para eles, as leis naturais são inferíveis das condições gerais sobre a natureza humana, da natureza das coisas, considerando os homens de forma isolada.
Para a escola do direito natural, a tarefa do jurista não é mais a de interpretar, mas sim a de demonstrar, à imitação do método matemático. Ou seja, os jusnaturalistas defendem que a tarefa do jurista não é a de interpretar regras já existentes, que estariam imbuídas das condições históricas presentes em seu nascedouro, mas sim a de descobrir as regras universais da conduta humana, para além da história, por meio do estudo isolado da natureza do homem, assim como o faz o cientista da natureza.
Tais características foram combatidas veementemente pelo Historicismo, que deu relevo à história e criticou o Jusnaturalismo, tanto por pretender estudar o direito por meio de um método racional abstraído das condições históricas - o que é, na visão dos historicistas, uma contradição intrínseca, pois é inconcebível estudar o mundo da história com base em um raciocínio matemático -, como pelo fato de o abstrativismo do direito da razão causar a subversão da ordem constituída e fomentar a ilusão de que há uma ordem fundada na igualdade e na liberdade, quando, na verdade, o direito natural prestigia a liberdade e a igualdade parciais, ou seja, da classe hegemônica apenas.
Em suma, o jusnaturalismo tentou quebrar o nexo entre o estudo do direito e a retórica como teoria de argumentação e interpretação, com o fito de que os juristas continuem a comentar as leis, mas levando em conta agora as regras de demonstração.
A figura do Estado surgiu, no Estado Moderno, com o fim de legitimar o seu poder por meio da coerção; com a Reforma Protestante, perdeu-se a possibilidade de fundamentar o poder em questões religiosas; já no Renascimento o homem passou a ter autonomia, com liberdade para controlar sua própria vida, alicerçando-se o Estado no indíviduo; por fim, surge, em Roma, o Direito Natural, que preconizava o “jus gentium”, ou seja, que o conjunto de costumes se encontrava em todos os povos, devendo o estudo do Direito ambicionar o grau de certeza e a abstração da matemática.
Assim, possui o indivíduo papel de destaque no Jusnaturalismo, refletindo juridicamente a sociedade burguesa, baseada no individualismo e, por conseguinte, no subjetivismo.
Hobbes tratou do fundamento e da natureza do Estado como um modelo jusnaturalista, isto é, o Estado como produto da vontade racional. O “modelo hobbesiano” distingue o estado (ou sociedade) da natureza do estado (ou sociedade) civil ou político, de modo que o homem ou vive neste mundo ou naquele. O estado político surge com o intuito de eliminar os defeitos do estado da natureza e o estado da natureza ressurge quando o estado político deixa de cumprir a sua finalidade. O estado da natureza não se guia pela razão, mas pelos instintos e paixões, é natural; o estado civil se baseia na liberdade e na autonomia dos homens: é “artificial”, na medida em que os indivíduos definiriam as cláusulas a que se submeteriam e se obrigariam ao que eles próprios teriam estabelecido previamente (contrato social), no afã de sair do estado da natureza e viver conforme a razão.
O Estado se funda, deste modo, no consentimento dos homens. Em outras palavras, a legitimação do Estado dar-se-ia pela garantia de direitos que ele proporciona aos indivíduos, garantia inexistente no estado de natureza, pois neste há uma liberdade natural ruim, porquanto faz os homens se voltarem contra si mesmos.
Assim, pode-se fazer uma contraposição entre o “modelo aristotélico” e o “modelo hobbesiano”, nos seguintes termos: no modelo aristotélico, está no início a sociedade familiar; no “modelo hobbesiano”, o indivíduo; no modelo de Aristóteles, no estado pré-político há uma relação de desigualdade entre superior e inferior na sociedade; no modelo de Hobbes, o estado da natureza pressupõe que os indivíduos se encontram isolados e, portanto, são livres e iguais, o que possibilita a teoria contratualista do jusnaturalismo, ou seja, a ideia de um Estado fundado sobre o consenso dos indivíduos destinados a dele fazer parte.
Outro pensador de relevo desta época foi John Locke, que tratou em sua obra “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, especialmente da propriedade, fazendo um paralelo entre os sistemas feudal e capitalista, ao abordar que o indivíduo seria o proprietário do próprio corpo, que é indivisível e não disponível pelo Estado.
Na concepção naturalista de Locke, a transferência dos direitos naturais para o Estado é parcialíssima, pois os indivíduos renunciam apenas ao direito de fazer justiça por si mesmos, conservando os demais, em especial o direito de propriedade, que depende somente de um ato pessoal e natural: o trabalho. Pode-se dizer, inclusive, que os indivíduos objetivam o estado civil com o fito primordial de proteger o direito de propriedade.
Rousseau, por sua vez, distingue dos escritores anteriores, pois assinala o desenvolvimento histórico da humanidade não somente em dois mundos (estado da natureza e estado civil), mas em três momentos: sociedade de natureza, sociedade civil e república, sendo a sociedade civil o momento negativo e os demais positivos, enquanto que para seus predecessores o estado de natureza, anterior ao estado da razão, é o negativo e o estado civil o positivo.
Além disso, dentre os jusnaturalistas, foi Rousseau que concebeu, na sua obra Contrato Social, a renúncia mais totalizante dos direitos naturais, para transferi-los ao Estado, transformando, assim, o homem natural em homem civil. Ressalte-se, contudo, que se trata de uma alienação a si mesmo, na medida em que o homem é livre somente quando obedece à lei que ele mesmo concebeu. Ademais, ao contrário de seus pares, que viam no Estado a finalidade de proteger os indivíduos, para Rousseau, o Estado, produto do contrato social, tinha o condão de transformar os indivíduos, imbuindo-lhes do senso de justiça e emprestando às suas ações a moralidade.
De toda sorte, Rousseau também entende que o Estado é produto do consenso dos homens e, portanto, pura ideia reguladora da razão, representando o “contrato social” o meio através do qual o homem corrompido da sociedade civil deveria reencontrar a felicidade.
Em suma, o ideal do Jusnaturalismo é construir uma sociedade pura de indivíduos, sem laços sociais e políticos, isto é, os indivíduos não teriam nenhum vínculo além do que a natureza lhes confere. O estado da natureza é uma hipótese, sem fundamentação empírica, de natureza universal e a natureza humana é uma natureza individual. Os indivíduos não se confundem entre si nesta concepção, possuindo direitos próprios, independentemente do vínculo social e político.
Desta feita, segundo o Jusnaturalismo, a sociedade política substitui o estado de natureza, uma vez que é produto da conjunção de vontades individuais, e não um prolongamento da sociedade natural. Outrossim, é importante registrar que, no Jusnaturalismo, o princípio de legitimação das sociedades políticas é o consenso; é ele o fundamento da autoridade do Estado e, consequentemente, da obrigação de obediência e o “contrato social” representa o instrumento deste princípio legitimador.
Ademais, não obstante algumas variações ideológicas entre os escritores da escola do direito natural, todos os jusnaturalistas têm o objetivo comum de construir uma teoria racional do Estado, prescindindo de qualquer argumento teológico para tanto, como fazia a doutrina tradicional. O jusnaturalismo busca, portanto, explicar e justificar um fato humano com o Estado partindo do estudo da natureza humana, dos indivíduos.
A lei é o instrumento que explicita esta racionalidade do Estado. Ela corresponde a uma norma geral e abstrata oriunda de uma vontade racional, tal como deve ser a vontade do Estado vislumbrado pelos jusnaturalistas[3]. Já o Estado se caracteriza pelo poder exclusivo de fazer leis, reduzindo, assim, o direito ao direito estatal. Por conseguinte, sobressai-se, dentre as formas de direito estatal, o direito legislativo, no intuito de assegurar o Estado de direito contra o arbítrio.
Em síntese, o Estado, no modelo jusnaturalista, é dicotômico: ou o estado de natureza ou a sociedade civil, equivalendo a um grande indivíduo formado pelos pequenos indivíduos, uma vez que não há entes intermediários entre a sociedade civil e o Estado. Dessa forma, para o Jusnaturalismo, os direitos humanos seriam: direitos naturais, por antecederem ao Estado; direitos universais, pois prescindem de fundamentação empírica, e; direitos cuja racionalidade se confunde com a racionalidade individual.
3. O POSITIVISMO E OS DIREITOS HUMANOS
O Positivismo surgiu no século XIX após o Jusnaturalismo, apontando as falhas deste, bem como dando novas diretrizes para o direito.
Hegel foi um dos primeiros filósofos a criticar a Escola de Direito Natural, superando-o, ao afirmar que, se o Estado fosse apenas uma associação fundada com base no acordo entre indivíduos, guiados pela razão, facilmente este vínculo seria quebrado de acordo com a conveniência dos indivíduos que fazem parte do Estado.
Saint-Simon também criticou o Jusnaturalismo ao afirmar que a verdadeira revolução do período não era política, como diziam os jusnaturalistas, mas sim uma revolução econômica e social.
Norberto Bobbio, por sua vez, é um defensor das leis e codificações. Bobbio critica o Jusnaturalismo, pois, na sua ótica, os fundamentos dos direitos do homem são vários, e não apenas um, como preconizam os jusnaturalistas ao se referirem que esses direitos derivam diretamente da natureza humana. Assim, é uma ilusão, na sua concepção, defender a existência de um fundamento absoluto para os direitos do homem.
O Positivismo estaria relacionado com o “ser”, com a ciência demonstrativa, e o Jusnaturalismo com o “dever-ser”, ligado à moral e à filosofia. Assim, não bastam boas razões para que haja uma ciência, como o é o Positivismo. É necessário que haja critérios de validade do Direito, para que a norma seja válida. Kelsen, por exemplo, atribuía a validade das normas a uma norma fundamental; Hart, a uma regra de conhecimento.
Tem-se, desse modo, na concepção positivista, uma validade formal das normas jurídicas: não interessa o conteúdo da norma, mas sim o procedimento formal para se chegar até elas. Em suma, a validade do Direito prescinde da moral.
Neste sentido, Bobbio assevera que não se pode partir do que o Direito “deve-ser”, mas sim do que o Direito “é”. Ademais, o Direito prescinde de boas razões.
Ao abordar o fundamento dos direitos humanos, Bobbio alerta que, por se tratar de direitos desejáveis, este problema não é de direito positivo. Ou melhor, os direitos humanos estão no plano do “dever-ser”, uma vez que não foram todos eles reconhecidos e, por isso, devem-se buscar os motivos para justificá-los.
Ao criticar o Jusnaturalismo, notadamente com relação à busca de um fundamento para os direitos humanos, Bobbio refuta tal pensamento pelas seguintes razões: primeiramente, os termos que os direitos humanos utilizam são muito vagos e, portanto, carentes de concretização; os direitos humanos são relativos, variáveis, uma vez que, com o passar do tempo, eles vão sendo modificados naturalmente, além da variação cultural que estes direitos sofrem a depender da sociedade em que estão inseridos; são direitos heterogêneos na medida em que, diante de uma situação de aplicação, os direitos humanos concorrem entre si e deve-se se fazer uma escolha motivadamente entre eles[4], e; são direitos antinômicos, tendo em vista que a realização de um direito implica a restrição de outro quando invocados pelas mesmas pessoas, a exemplo do que ocorre com os direitos individuais (liberdades) e os direitos sociais (poderes).
Desta feita, Bobbio refuta a ideia da existência de um único fundamento para os direitos do homem - como o faz o Jusnaturalismo -, pois quem busca o fundamento último dos direitos humanos inevitavelmente ficará preso a um dogma. Para Bobbio, há vários fundamentos possíveis dos direitos humanos, e não apenas um. Por isso, é mais importante garantir e proteger os direitos humanos do que perquirir o(s) seu(s) fundamento(s).
Norberto Bobbio, além de refutar o dogma jusnaturalista da demonstralidade dos valores últimos (dogma da potência da razão), que diz que os valores últimos podem ser demonstrados pela razão, como explicitado acima, critica também o dogma do racionalismo ético (dogma do primado da razão), segundo o qual a racionalidade demonstrada de um valor é suficiente para a sua realização, ao observar que não basta a convicção de que a realização dos direitos do homem é uma meta desejável, sendo necessário que haja as condições propícias para que eles sejam efetivados.
Nem mesmo pode-se dizer que os direitos humanos eram respeitados à época em que se entendia que eles derivavam da natureza do homem, pois a história mostra o contrário. Ademais, o principal problema da aplicação dos direitos humanos, segundo Bobbio, refere-se ao modo como eles devem ser protegidos, e não à sua justificação, até porque os direitos humanos possuem vários fundamentos possíveis, e não um fundamento absoluto apenas.
Defende, assim, Bobbio que o problema da efetivação dos direitos humanos deve ser compreendido por meio de um estudo histórico, social e econômico inerente à sua realização.
Outrossim, Bobbio distingue os argumentos jurídicos dos argumentos morais. Segundo ensina, há três modos de fundar os valores: 1. Pela dedução da natureza humana; 2. Pelas verdades evidentes em si mesmas, e; 3. Pelo consenso. Todavia, critica, respectivamente, as duas primeiras formas, pois assevera que os valores não podem ser deduzidos simplesmente da natureza humana por não consistirem em dados objetivos, universais e atemporais, e; não existem condutas que foram sempre verdadeiras, pois os valores são históricos.
Quanto ao consenso, a aceitabilidade de um direito pela maioria, Bobbio assevera que se trata de um aspecto histórico e empírico, e, portanto, não absoluto. Assim, nem tudo o que está fundado no consenso é racional, pois pode ser objeto de crítica e variação na história, ou seja, nem sempre tudo que é empírico também é racional. Já a dedução da natureza humana e as verdades evidentes em si mesmas, que se baseiam em dados objetivos, são racionais. Esse modo de justificar os valores, o consenso, significa que quanto mais aceito um valor mais ele é fundado. A Declaração dos Direitos Humanos é apontada por Bobbio como o maior exemplo de consenso sobre valores existente de fato na história, reconhecendo a universalidade dos valores, acolhidos subjetivamente pelos homens.
Bobbio assinala três fases do universalismo dos direito humanos: 1. Universalismo abstrato, quando as declarações dos direitos nascem como teorias filosóficas e propõe medidas para um futuro legislador; 2. Particularidade concreta, quando os Estados começam a reconhecer os direitos humanos e protegê-los na prática, porém ficam restritos aos Estados em que são reconhecidos, e; 3. Universalidade Concreta, quando todos os Estados passam a reconhecer e proteger os direitos humanos e a afirmação de direitos humanos passou a ser universal e positiva, cujo início se deu com a Declaração de 1948.
Todavia, mesmo nesta última fase, não foi superada o maior problema dos direitos humanos: a sua aplicação em âmbito internacional, pois não há uma força coativa que imponha o respeito aos direitos humanos por todos os Estados.
Assim, a ausência de monopolização da força é, indubitavelmente, um dos maiores impasses hermenêuticos de aplicação dos direitos humanos. Ademais, os direitos humanos são substancialmente históricos e, portanto, são variáveis na medida em que, com as mudanças econômicas e sociais da sociedade, eles devem se adaptar e, muitas vezes, serem ampliados para atender os novos carecimentos do homem. Desse modo, o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do homem não é definitivo, sob pena de se quedar vazio.
É necessário, portanto, tanto o aperfeiçoamento contínuo do conteúdo dos direitos humanos, como a busca de garantias efetivas para os mesmos, pois, como já dito, não basta proclamar os direitos do homem, é preciso protegê-los. Porém, atualmente, o que se vê é que os organismos internacionais não têm muita autoridade a ponto de impor respeito às suas declarações pelos demais Estados e, no plano, interno, há um desprezo generalizado pelos direitos do homem, o que acaba interferindo no plano externo. É preciso, para que haja uma tutela internacional legítima dos direitos do homem, a existência de uma jurisdição internacional que se imponha e se sobreponha às jurisdições nacionais, substituindo a garantia nacional pela internacional.
Outrossim, Bobbio defende a recusa de um fundamento último dos direitos humanos, pois os valores últimos são antinômicos, heterogêneos e vagos, como anteriormente explicitado, e defende o consenso como modo de justificar os direitos humanos, pois os valores são melhor fundados quanto mais aceitos e, como consenso advém da maioria, não podem ser considerados universais e absolutos. Desse modo, Bobbio considera os direitos fundamentais relativos e afirma que é uma questão de opinião estabelecer a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem, que não pode ser determinada por verdades morais.
Desse modo, a defesa do consenso como forma de fundamento dos direitos do homem, feita por Bobbio, implica que há um compromisso da maioria em protegê-los. Todavia, alerta-se aqui que este compromisso exatamente por ser apenas da maioria refere-se a soluções precárias e provisórias, pois podem mudar com o tempo, uma vez que a maioria é mutável na história.
Por fim, vale ressaltar que Bobbio enfrenta a dificuldade de se estabelecer as condições de efetivação destes direitos e assevera que a solução para este problema ultrapassa a moral, a política, a filosofia e até mesmo o direito, pois se finca no desenvolvimento global da civilização humana, ou seja, o problema da realização dos direitos do homem não pode ser visto de forma isolada, porquanto depende principalmente do desenvolvimento da sociedade como um todo.
Critica-se aqui o consenso como fundamento dos direito humanos, como defende Bobbio, pois o consenso representa apenas a regra de maioria e nem sempre a maioria almeja reconhecer os direitos humanos. Muitas vezes, inclusive, essa maioria representa as classes hegemônicas, e não a maioria numérica, como ocorreu, por exemplo, quando da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Na elaboração deste documento, houve o consenso de apenas 48 países, sendo que nem todos eles eram Estados democráticos e, portanto, legítimos para representar a maioria. Por conseguinte, não se pode dizer que naquele momento houve um real e democrático consenso capaz de legitimar aquela declaração e os direitos ali inseridos.
Ademais, há o problema da semântica em relação ao consenso, uma vez que as palavras podem ter um sentido diferente do original no momento da aplicação dos direitos humanos e o consenso não é capaz de dizer como se deve aplicar e interpretar estes direitos.
Após as considerações acima, pode-se fazer um paralelo entre o Jusnaturalismo e o Positivismo da seguinte maneira: enquanto o Jusnaturalismo atribui o conteúdo dos direitos humanos à natureza humana, o Positivismo remete-o à autoridade, isto é, os direitos humanos são positivos, porque são criados pela autoridade pública e o consenso representa a vontade da autoridade. Em relação à interpretação dos direitos humanos, segundo o Jusnaturalismo, esta deve ser realizada, por meio da dedução de princípios universais e, para o Positivismo, ela deve ser feita pela vontade, e não pelo conhecimento, por se tratar de uma questão de opinião, de compromisso.
Não obstante esta autora não se filiar às ideias jusnaturalistas, critica-se a posição positivista, tendo em vista que, se a interpretação dos direitos se der unicamente pela vontade, o Poder Judiciário terá muita liberdade para definir quais são os direitos humanos e como eles devem ser protegidos e isso é muito temeroso. Se esse pensamento positivista vingasse, causaria muitas incertezas no âmbito internacional, tanto do ponto de vista social, econômico como jurídico, pois deixariam os direitos humanos à mercê da vontade de uma pequena classe, o que não se pode admitir pela própria natureza dos direitos do homem.
O pensamento moderno é dicotômico, desde a teoria da separação do corpo e mente feita por Descartes, porém, para proteger e aplicar efetivamente os direitos humanos, deve-se ultrapassar essas dicotomias (entre moral e direito, razão e história, liberdade e igualdade) no afã de harmonizá-las, prescindindo da necessidade de se fazer escolhas entre uma ou outra posição.
4. APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS CONFORME A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE (DWORKIN)
A teoria do direito como integridade foi criada por Ronald Dworkin, em sua obra “Império do Direito” (1986), tendo como seu principal objetivo refutar o Positivismo e a sua ideia de que há uma separação entre Direito e Moral.
Dworkin defende que se faça uma interpretação construtiva, ou seja, que a interpretação esteja sempre ligada à aplicação e à compreensão, sendo a compreensão, a interpretação e aplicação, portanto, indissociáveis, como um “romance em cadeia”, nas palavras de Dworkin.
A interpretação construtiva difere-se da interpretação conversacional, especialmente porque esta busca a intenção do legislador e aquela não tem este intuito[5]. Assim, a interpretação construtiva implica uma atitude “interpretativa” do intérprete, no sentido de que toda prática tem um valor e serve a algum propósito. Esta atitude interpretativa tem, desse modo, um viés interno, cultural e pode inclusive alterar ou excluir as regras existentes, pois “uma reinterpretação muito abrangente dos valores políticos não deixa nada exatamente como era antes.” (DWORKIN, A Justiça de Toga, p. 243).
Além disso, o Direito é uma prática social argumentativa, por natureza, tendo em vista que não há como afirmar que algo é legal ou ilegal, lícito ou ilícito, sem uma argumentação plausível. Em suma, no Direito, não basta afirmar, é necessário argumentar.
Em outras palavras, o Direito sofre uma interpretação criativa, assim como ocorre com a arte, pois aquilo que é criado se torna relativamente autônomo se seu autor, uma vez que quem cria não possui o controle total sobre o que criou.
Outrossim, a atitude interpretativa da prática possui também como componente, além do seu valor, o comportamento que ela evoca para o alcance de sua finalidade, isto é, o significado que o intérprete atribui à prática de acordo com os propósitos da instituição, o que permite que as práticas sejam compreendidas e não apenas seguidas de forma mecânica. Assim, “as regras estritas devem ser compreendidas, aplicadas, ampliadas, modificadas, atenuadas ou limitadas segundo essa finalidade.” (DWORKIN, O Império do Direito, p. 57-58).
Frise-se, ainda, que o valor e conteúdo andam juntos na interpretação construtiva defendida por Dworkin, pois é imprescindível que as pessoas saibam os motivos da existência das regras (valor) e o que elas exigem para que atinjam sua finalidade (conteúdo). Assim, não se visa à coerência pela coerência, mas sim à convicção e ao máximo de coerência possível entre o valor e conteúdo dos direitos.
Entretanto, a atividade do intérprete não é ilimitada. Os limites do intérprete dizem respeito à história[6] da prática social e à linguagem.
Quanto à prática social, deve-se ter em mente que sempre estaremos partindo de interpretações que foram feitas anteriormente, pois nunca se parte do zero, daí a denominação usada por Dworkin do “romance em cadeia”, pois há sempre uma relação de continuidade entre a interpretação anterior e a posterior. Assim, a interpretação somente pode ser feita dentro da tradição e da história da prática social.
A linguagem, por sua vez, limita a interpretação, pois esta se origina da linguagem e gera uma resignificação desta, quer dizer, pois, que o Direito não existe fora da linguagem. O que importa, porém, é o contexto da linguagem, ou melhor, o uso que o intérprete faz dela. Deve-se ressaltar aqui que a linguagem não é estática, pois a língua é viva, sempre estão surgindo novas palavras e sentidos e isso interfere, por conseguinte, na interpretação.
Dworkin alerta, ainda, que o jurista deve se aproximar do trabalho filosófico, pois, mesmo diante de um Estado totalitário, deve-se buscar o real significado do direito, isto é, sempre se está interpretando para dizer que certas práticas são direitos.
A interpretação construtiva dworkiniana possui três etapas: 1. A etapa “pré-interpretativa”, na qual há um mínimo de consenso sobre o uso das palavras, porém registre-se que, mesmo, nesta etapa, há algum tipo de interpretação, pois “as regras sociais não têm rótulos que as identifiquem” (DWORKIN, O Império do Direito, p. 81); 2. A etapa interpretativa, na qual o intérprete vai perquirir a justificativa (o propósito e o valor de determinada prática) da prática identificada na etapa anterior, o que não impede, contudo, que algumas vezes a etapa interpretativa vá de encontro à etapa “pré-interpretativa” e; 3. A etapa pós-interpretativa, em que o intérprete propõe à sociedade a modificação de certa prática social, revendo as justificativas afirmadas na etapa anterior.
A interpretação de cada intérprete sempre vai depender da sua pré-compreensão, pois é inevitável que o intérprete esteja imbuído de conceitos morais, ao interpretar o direito, pois isso é inerente ao ser humano.
Neste ponto, Dworkin enfatiza que não é possível um conceito neutro do direito, porquanto o conceito de direito tem conteúdo moral, em contraposição à Hart, que afirma, na sua obra “O conceito de direito”, que a identificação do direito se dá por meio de um projeto descritivo, sem interferências morais ou éticas, e de um projeto filosófico, e não jurídico.
Ao contrário da teoria hartiana, a teoria geral sobre a identificação do direito válido, na visão de Dworkin, dá-se por uma interpretação da prática jurídica que visa não apenas descrevê-la, mas principalmente justificá-la. Não se pode, portanto, separar os sentidos descritivo e valorativo, pois eles estão inter-relacionados. Por conseguinte, pode-se afirmar que a teoria jurídica dworkiniana baseia-se em convicções morais e éticas.
Conclui-se, assim, que, para Dworkin, o intérprete busca a “melhor” interpretação, dentro do círculo hermenêutico compreensão-interpretação-aplicação, pois não há como escapar das nossas próprias interpretações “não-neutras”, dos nossos conceitos morais, pois a moral e o direito não são independentes, como preconizavam os positivistas.[7]
Por fim, vale ressaltar que, consoante ensina Dworkin, a “melhor” interpretação pode vir a mudar a prática social, mas, para isso, deve observar os limites da história, ou seja, o intérprete pode ter um papel ativo em relação à história, propondo novos sentidos às práticas sociais, mas sempre dentro dos limites da tradição e inevitavelmente da linguagem.
Dworkin critica o ceticismo, em suas duas feições: a interna e a externa. O ceticismo externo exige que, para que algo seja considerado falso ou verdadeiro, é preciso encontrar uma base metafísica e Dworkin critica-o, pois entende que as ciências da natureza não podem servir de orientação para as ciências do espírito, como o é o Direito. O ceticismo interno, por sua vez, refuta a possibilidade de existir uma interpretação melhor que a outra, porque há várias interpretações possíveis, com o que Dworkin concorda em parte, uma vez que entende que podem realmente existir várias interpretações, haja vista que cada cultura deve viver com suas próprias tradições. Porém, critica o ceticismo interno, por considerá-lo, por si mesmo, uma interpretação, pois trata da substância das afirmações que contesta, isto é, apoia-se em uma atitude interpretativa geral para refutar todas as possíveis interpretações do objeto sob análise.
Dworkin critica o Positivismo e o Jusnaturalismo, pois eles partem de concepções abstratas, que não servem para a prática. Para o Positivismo, o conteúdo do direito decorre das decisões políticas passadas (autoridade), já, para o Jusnaturalismo, os direitos individuais justificam o uso da força pública. Contudo, Dworkin assevera que “o direito como integridade aceita sem reservas o direito e as pretensões juridicamente asseguradas” (DWORKIN, O Império do Direito, p. 119).
Além disso, na ótica dworkiniana, o direito beneficia a sociedade, mormente por assegurar aos cidadãos igualdade e aperfeiçoar a justificativa moral do poder político. Sustenta, ainda, que os direitos decorrem de decisões anteriores, tanto quando estão explícitos, como quando se encontram implícitos nos princípios de moral pessoal e política que justificam as decisões.
A teoria do direito como integridade não se confunde com o Jusnaturalismo nem com o Positivismo, mas supera-as, pois entende que a melhor interpretação do direito é alcançada com uma reflexão sobre as teorias positivistas e jusnaturalistas.
Neste ponto, merece destaque a distinção que Dworkin faz entre a integridade, a justiça e a equidade.
A justiça possui uma dimensão substantiva e é uma questão de resultados, isto é, devem-se conhecer quais são as consequências das decisões judiciais para saber se uma decisão causa injustiça ou não.
Por outro lado, a equidade tem uma dimensão processual e, portanto, diz-se que é uma questão de procedimento, na medida em que se preocupa se a decisão foi tomada com base em um procedimento correto. Frise-se, contudo, que decisões equitativas nem sempre tomam decisões justas, bem como decisões justas nem sempre são tomadas por instituições equitativas.
Quanto à integridade, Dworkin assevera que é ela dá à justiça e à equidade um peso relativo, de forma que nenhuma se sobreponha à outra. E mais: não obstante a integridade vise harmonizar a justiça e a equidade, ela não está acima destas, pois não há uma hierarquia entre elas.
Em outras palavras, a integridade, a equidade e a justiça formam círculos concêntricos, tendo em vista que são princípios que evoluem em conjunto (visão orgânica dos princípios), não havendo hierarquia nem subordinação entre eles. “Tudo depende da melhor resposta à difícil questão de saber que conjunto de princípios oferece a melhor justificação para essa área do direito como um todo.” (DWORKIN, A Justiça de Toga, p. 204).
Outrossim, na sua obra “Justiça de Toga”, Dworkin afirma que os valores, como o são os direitos do homem, são valores integrados, pois eles enriquecem a nossa vida de algum modo, na medida em que os valorizamos ao vislumbrarmos as suas consequências para a nossa vida, enquanto indivíduos e sociedade.
Dworkin afirma que a integridade possui base principiológica, tem fundamentos que a justificam e equipara a integridade ao planeta Netuno. Este planeta foi descoberto pelo comportamento dos planetas mais próximos, e não por observação direta, assim como a integridade foi percebida pela influência que exerce sobre as soluções conciliatórias[8] que recusamos. Neste sentido, Dworkin afirma que “O Estado carece de integridade porque devem endossar princípios que justifiquem uma parte de seus atos, mas rejeitá-los para justificar o restante.” (DWORKIN, O Império do Direito, p. 223).
O modelo de comunidade defendido por Dworkin é o de uma sociedade de princípio, isto é, as pessoas aceitam que são governadas por princípio comuns, e não apenas por regras criadas por um corpo político. Assim, cada membro da comunidade admite que seus direitos e deveres políticos não se limitam àqueles previstos formalmente em decisões particulares, pois aceita-se que há direitos e deveres que decorrem implicitamente do sistema de princípios.
Outrossim, o modelo de princípios é de fundamental importância numa sociedade moralmente pluralista, pois, embora uma associação de princípio não representar, por si só, uma comunidade justa, é o modelo que melhor satisfaz as condições da comunidade que possui divergências sobre a equidade e a justiça a serem adotadas, pois busca harmonizá-las.
Desse modo, para Dworkin, é possível resolver conflitos entre princípios baseado também em princípios. Em suma, para se ter a melhor interpretação do direito, deve-se interpretar o sistema com base em princípios que fazem parte do nosso ordenamento jurídico com vistas a harmonizá-los.
Em relação aos direitos humanos, vale tudo o que foi dito acima, de modo que a interpretação desses direitos seja feita de acordo com o contexto em que estão inseridos, vislumbrando sempre o princípio da regra mais favorável ao ser humano, porquanto não basta que os tratados internacionais de direitos humanos estejam baseados na lei, é necessário que estejam alicerçados em valores. Desse modo, a aplicação dos direitos humanos será efetiva, uma vez que estará fundamentada em princípios que visam harmonizar valores colidentes, permitindo sua maior aceitação pela sociedade.
5. CONCLUSÃO
As concepções sobre a teoria dos direitos humanos do Jusnaturalismo e do Positivismo são insuficientes para resolver o problema hermenêutico da aplicação dos direitos do homem, pois naquele o fundamento desses direitos atrela-se à natureza humana e neste o fundamento se liga à autoridade que os positivam. Todavia, na prática jurídica e social, percebe-se que, muitas vezes, estes direitos conflitam entre si e esta antinomia somente pode ser superada por um princípio que tente harmonizar todos os valores presentes naquele determinado contexto.
Desse modo, refuta-se a ideia de que os conceitos políticos possam ser demonstrados de forma descritiva e neutra, nos moldes de uma investigação científica das espécies naturais, pois os direitos, notadamente os direitos humanos, não possuem DNA. Por isso, é importante perscrutar o que é o direito e como ele pode ser identificado, de modo que sua descrição incorpore o valor da integridade, pois a “teoria do direito é um exercício de moralidade política substantiva.” (DWORKIN, A Justiça de Toga, p. 252).
A integridade implica a igualdade na medida em que o Estado deve aplicar igualmente a todos um conjunto de princípios, não restringindo, assim, a igualdade apenas no sentido de que o direito deva ser imposto conforme escrito, consoante defendem os positivistas.
Ademais, não existe apenas uma única concepção da legalidade aplicável a um caso concreto, pois se deve analisar o contexto dos valores que permeiam determinada prática jurídica, representando o elemento moral a parte mais decisiva de um argumento jurídico.
Outrossim, a prática jurídica tem influência sobre a interpretação do direito, uma vez que a interpretação decorre de um processo de reflexão sobre um valor ou alguns valores, que deve(m) ser considerado(s) dentro de um complexo de valores, apreciados no todo e individualmente.
Registre-se, ainda, que, no âmbito internacional, é quase imperceptível a aplicação dos direitos humanos, em especial por serem as normas de direitos humanos imprecisas, por não haver regras claras de interpretação destas normas nos tratados internacionais e inexistir uma força coatora com ingerência sobre todos os Estados.
De toda sorte, não se pode infirmar, pelas razões acima expostas, a aplicabilidade dos direitos humanos na esfera internacional, uma vez que os tratados de direitos humanos podem (e devem) ser interpretados com base na boa-fé, à luz de seu objetivo e finalidade e considerando o contexto do tratado, em busca da efetividade de seus dispositivos.
Em outras palavras, a interpretação dos direitos humanos não pode se limitar aos termos legais constantes nos tratados, pois os direitos humanos exigem uma interpretação extensiva, de acordo com o contexto em que estão inseridos, de modo que prevaleça o princípio da regra mais favorável ao ser humano.
Outrossim, é importante ressaltar que os dispositivos internacionais sobre direitos humanos possuem significados autônomos daqueles existentes no direito interno, por isso devem ser analisados conforme sua finalidade e seu contexto.
No que tange especificamente ao problema hermenêutico da aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos, aponta-se como um de suas causas a linguagem, pois esses direitos estariam limitados pelo texto do tratado. Porém, isso não quer dizer que esses direitos são estáticos, pois os tratados internacionais, assim como as demais normas jurídicas, são instrumentos vivos.
Dessa forma, os tratados internacionais de direitos humanos devem ser interpretados à luz das circunstâncias atuais e do seu objetivo e finalidade, não estando presos à intenção do autor, apesar de estarem, de certa forma, limitados pela linguagem, como afirma Dworkin. Uma Corte pode inclusive mudar radicalmente sua posição sobre determinado assunto, como o que ocorreu com o tratamento dado aos transexuais pela Corte Europeia.
Outro ponto importante no que pertine aos direitos humanos previstos nos tratados internacionais, diz respeito ao conteúdo e à interpretação dos direitos humanos, pois cada Corte internacional interpreta um direito de forma distinta das demais, de acordo com sua tradição e cultura. Daí porque Dworkin entende que história da prática social é um limite à atividade do intérprete.
Por fim, defende-se aqui que as decisões internacionais sobre direitos humanos somente terão aplicação em âmbito internacional se tiverem fundamentadas em valores, pois não é suficiente o embasamento meramente legal. Partindo do pressuposto que a aplicação é indissociável da interpretação e da compreensão, entende-se que a aplicação dos direitos humanos deve ser pautada por valores morais, que formam a nossa pré-compreensão.
Assim, os princípios possuem fundamental importância para que se encontre a melhor forma de interpretação e aplicação dos direitos em questão. Ou seja, uma boa fundamentação das decisões – o que se defende seja feita com base em princípios – levará, consequentemente, a uma melhor execução das decisões dos tribunais internacionais, por auxiliar a sua aceitação social e permitir a harmonização dos valores em conflito.
É preciso, assim, que os direitos humanos tenham um conteúdo suficiente para evitar a falta de sentido, mas também um nível de abstração suficiente para evitar o casuísmo e poderem ser protegidos.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. O modelo jusnaturalista. In: Bobbio, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, cap. 1 e 2.
BOHÓRQUEZ MONSALVE, Viviana; AGUIRRE ROMÁN, Javier. As tensões da dignidade humana: conceituação e aplicação no direito internacional dos direitos humanos. Sur, vol. 6, n° 11, p. 41-63, dez. 2009.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo, Martins Fontes, 2003, cap. 1, 2, 3, 6 e 7.
DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, cap. 6.
GADAMER, Frederick. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
KILLANDER, Magnus. Interpretação dos tratados regionais de direitos humanos. Sur, vol. 7, n° 13 p. 149-175, dez. 2010.
[1] GADAMER, Frederick. Verdade e Método, Ed. Vozes, p. 236.
[2] Esta interrelação entre a compreensão, interpretação e aplicação foi abordada por Ronald Dworkin ao tratar da teoria do direito como integridade, especialmente no que concerne ao “romance em cadeia”, em que um intérprete sempre parte de uma interpretação anterior e assim sucessivamente, como se estivessem construindo uma história em conjunto, mas cada um a seu tempo.
[3] Hobbes, por exemplo, é contrário à common law e só admite o direito oriundo da vontade do soberano; para Locke, o governo civil se funda na supremacia do Parlamento, e; Rousseau defende que a criação das leis é produto da vontade geral e são estas normas gerais e abstratas os vetores da igualdade civil.
[4] Bobbio ressalva apenas dois direitos que não poderiam ser limitados nem diante de casos excepcionais, quais sejam: o direito de não ser escravizado e o direito de não sofrer tortura.
[5] Dworkin diz, ainda, que talvez a verdadeira razão do autor, no momento em que a lei foi feita, nem queira ser revelada. Ademais, o legislador pode possuir várias razões para o estabelecimento de uma regra, e não apenas uma. Por fim, a intenção do autor não é possível nem desejável, porque, além de haver uma pluralidade de intenções, o que impossibilita tal busca, não se trata de algo empírico e, se cada intérprete for dizer o que o direito é, de acordo com suas convicções, pode haver um subjetivismo desmedido.
[6] O limite “história” de Dworkin equivale à “tradição” apontada como limite por Gadamer. Gadamer afirma que a interpretação reconhece as imposições da história ao mesmo tempo que luta contra elas.
[7] Frise-se que “melhor” não necessariamente é sinônimo de bom, pois não é o “melhor” considerado abstratamente, mas sim o melhor de acordo com a pré-compreensão do intérprete, com os seus pressupostos morais.
[8] As soluções conciliatórias são compromissos internos e, assim, não se baseiam em princípios. Ademais, as soluções conciliatórias podem resolver questões de princípio com fundamento em bases arbitrárias, o que é refutado por Dworkin, que defende que as decisões políticas devem se fundamentar em algum princípio coerente.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. Os desafios na aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40906/os-desafios-na-aplicacao-dos-tratados-internacionais-de-direitos-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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