RESUMO: A expressão “jurisdição constitucional” deve ser entendida como aquela que decide sobre a validade constitucional das leis, enquanto que a “criação de Direito” deve ser relacionada com o estabelecimento de normas jurídicas, isto é, de preceitos dotados de eficácia erga omnes.
Palavras-chaves: Jurisdição Constitucional; validade; criação de direito.
1. INTRODUÇÃO:
Francisco Llorente trata do problema da legitimidade e dos limites da atuação da jurisdição constitucional, analisando a compatibilidade desta atuação do Poder Judiciário (poder antimajoritário) com os institutos da democracia e o seu alcance em relação aos outros poderes políticos do Estado (Legislativo e Executivo).
Para tanto, o autor faz um estudo comparado das técnicas concretas que a jurisdição utiliza para a criação de Direito, nos sistemas norte-americano e da Europa Ocidental (notadamente da Áustria, da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal), analisando quais são as consequências que o emprego destas técnicas acarreta no ordenamento vigente e como ocorre esta criação do Direito pela jurisdição.
2. PREMISSAS PARA A CRIAÇÃO DO DIREITO POR MEIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL:
A jurisdição constitucional cria Direito, inovando no ordenamento jurídico. Esta criação, distintamente da criação realizada livremente pelo legislador, não se sujeita a considerações de oportunidade, sendo, ao contrário, vinculada, pois se refere, na verdade, a uma declaração de um Direito preexistente.
Esta criação se desenvolve em dois planos: o constitucional, mediante a concretização do conteúdo dos preceitos constitucionais, e o legal, através da eliminação, com eficácia erga omnes, de um enunciado legal, de uma disposição ou de uma norma derivada dele contrária à Constituição.
Assim, a concepção hodierna da jurisdição constitucional determina: o real objeto de invalidação, atribuindo um sentido concreto ao conceito genérico de invalidação; a natureza específica da norma que pode ser invalidada, e; a forma de invalidação.
Diante deste quadro, percebe-se a capacidade da jurisdição constitucional para criar Direito e, para entender melhor este fenômeno, é imprescindível a análise, em conjunto, das técnicas que a jurisdição constitucional emprega com o estudo da concepção que inspira os sistemas de jurisdição constitucional dos Estados Unidos e da Europa Ocidental.
Primeiramente, delinearam-se os traços marcantes da jurisdição constitucional no sistema norte-americano e no sistema europeu, para posteriormente expor as características gerais da criação do Direito e seus elementos, considerando as especificidades de cada ordenamento jurídico.
a) O sistema norte-americano:
No sistema norte-americano, a eficácia erga omnes das decisões da Corte Suprema é uma consequência de uma concepção de Direito em que o juiz é quem deve interpretar e integrar a norma para dar solução ao litígio no caso concreto, não sendo, assim, derivação de nenhum preceito constitucional. Neste sentido, possui relevo o princípio “stare decisis”, pois o respeito aos precedentes dos tribunais pelos demais julgadores decorre do fato de ser a jurisdição a atuação de um poder único, em que seus operadores se vinculam reciprocamente. Ademais, a unidade deste sistema requer a existência de uma instância suprema, que é exercida, no caso americano, pela Corte Suprema, cujas decisões têm que ser aceitas como obrigatórias pelos demais tribunais, sob pena de se afastar do Direito vigente. Na Europa, ao contrário, o juiz está sujeito somente à lei e, quando sua interpretação da lei diverge do entendimento do Tribunal Supremo, sua sentença pode ser revogada por este, mas não deixa de ser uma aplicação do Direito vigente.
A introdução, no sistema norte-americano, da judicial review of legislation não modifica a relação existente entre a Corte Suprema e os outros órgãos judiciais, pois as formas de jurisdição (original e recursal) se mantêm imutáveis.
A Corte Suprema atualmente se ocupa mais das questões de constitucionalidade da lei, em razão da própria função que exerce ao aplicar a regra jurídica no caso concreto, não tendo sido criada apenas para este fim.
A sentença da Corte Suprema pode ser uma decisão de anulação, quando o Tribunal inferior terá que dar uma nova sentença de acordo com a opinião da Corte, ou de ratificação. Aqui, deve-se ressaltar uma característica própria do sistema norte-americano, no sentido de que o núcleo da sentença, o conteúdo normativo relevante da norma constitucional com a qual se contrastou, não se encontra na conclusão da sentença, que possui apenas eficácia res iudicata, mas sim nas razões que a fundamentaram, que possui, esta sim, eficácia erga omnes, desde que se trate de situações concretas semelhantes, ou seja, despidas de elementos diferenciais relevantes.
Desse modo, percebe-se que a declaração de inconstitucionalidade não afeta o enunciado legal, mas sim a interpretação e a aplicação inconstitucional que foi realizada no caso concreto, subsistindo no ordenamento vigente o enunciado legal objeto desta interpretação.
Por conseguinte, como cabe a cada juiz interpretar a aplicação das regras estabelecidas pela Corte no caso concreto, surge uma fronteira tênue e, sobretudo, dinâmica entre a lei constitucional e a lei inconstitucional.
Encontra-se no sistema norte-americano, ainda, a possibilidade de se inferir a inconstitucionalidade da lei quando, em virtude de sua indeterminação ou amplitude excessiva, ela vai de encontro à Constituição.
Nesses casos, a Corte Suprema declara que a norma legal é inconstitucional em seus próprios termos (“on its face”), pois o objeto é o próprio enunciado legal, e não a sua interpretação no caso concreto.
Na teoria, as leis objeto desta declaração de inconstitucionalidade permaneceriam no Direito vigente, pois a Corte pode revogar sua declaração de inconstitucionalidade e recuperar, por conseguinte, sua eficácia, sem atuação do legislador. Neste ponto, percebe-se um traço europeu na jurisdição constitucional norte-americana.
b) O sistema europeu:
A concepção de jurisdição constitucional europeia tem sido objeto de uma profunda revisão, sendo sua introdução no sistema europeu decorrente de uma verdadeira revolução, e não de uma simples evolução, tendo em vista que sempre prevaleceu na Europa o legalismo, a idéia de que o juiz se submete à lei e de que os efeitos da decisão judicial são sempre res iudicata.
Dessa forma, para a efetivação desta revolução, foi necessário atribuir competência ao juiz para controlar a constitucionalidade das leis e dotar suas decisões de eficácia erga omnes.
Os constitucionalistas austríacos foram os protagonistas desta revolução, cujo embasamento foi a doutrina kelseniana, mas ainda de forma conservadora, uma vez que, para eles, a Constituição obriga o legislador, mas não outorga aos cidadãos direitos para que estes possam pedir a tutela judicial, uma vez que tais direitos nascem somente da lei, à qual esta sujeito o juiz. Ou seja, ninguém tem direito frente à lei.
Um papel importante exerce o Tribunal Constitucional, no modelo austríaco, pois apenas este órgão, que não se confunde com o órgão supremo do Poder Judiciário, detém a competência para resolver sobre a validade constitucional das leis e, por conseguinte, ditar decisões com eficácia erga omnes, atuando, assim, como “legislador negativo”, pois a anulação de uma lei equivale à promulgação de uma lei.
Vale destacar que a atuação do Tribunal Constitucional somente pode ser solicitada por determinados órgãos estabelecidos pela Constituição, que possuem legitimação abstrata, uma vez que somente podem invocar direitos que nascem da lei, sem proteger o direito ou interesse de ninguém em concreto.
Nesse modelo de jurisdição constitucional como modelo de controle abstrato das leis, o objeto judicial não pode ser outro senão o enunciado legal, podendo o juiz mantê-lo ou anulá-lo.
Diferentemente do que ocorre na decisão que cassa uma sentença judicial, em que são importantes as razões da anulação, na anulação da lei, ocorre a expulsão de uma norma do ordenamento, de maneira que a simples anulação da lei transforma o sistema, prescindindo do conhecimento de suas razões.
No sistema austríaco, entende-se que: a decisão anulatória é uma decisão constitutiva, e não meramente declaratória; a inconstitucionalidade é causa de anulabilidade, não havendo nulidade de pleno direito, e; a sentença anulatória possui eficácia ex nunc e erga omnes.
Destaque-se que esse modelo austríaco de concepção da jurisdição constitucional constitui a essência dos demais sistemas europeus, não obstante as inevitáveis particularidades de cada um.
Assim, a eficácia geral (“a força da lei”, na terminologia alemã) das sentenças anulatórias que declarem a inconstitucionalidade da lei - não da decisão judicial, decorre somente do decisum da sentença, e não das razões que lhe deram fundamento, ao contrário do que ocorre no sistema norte-americano, em que as razões que fundamentam a decisão anulatória possuem eficácia erga omnes. Esta distinção ocorre, sobretudo, porque o juízo sobre a constitucionalidade da norma legal realizado pelo juiz europeu não é um juízo de aplicação, mas um juízo sobre a lei mesma, sobre o seu enunciado (juízo abstrato).
Contudo, a análise dos casos concretos tem mostrado que a identificação simplista da norma legal com o enunciado da lei e a redução da sentença a seu dispositivo podem gerar problemas maiores que as interpretações da lei caso a caso.
Para tentar amenizar tal celeuma, os Tribunais europeus têm adotado diversas vias, como as chamadas sentenças interpretativas, as sentenças de mera inconstitucionalidade sem declaração de nulidade e as sentenças manipulativas.
As sentenças interpretativas são aquelas que emitem um pronunciamento sobre uma norma que pode ser deduzido do enunciado da lei mediante métodos de interpretação, e não sobre o próprio enunciado legal. Tal técnica resulta nas chamadas sentenças desestimatórias, que são aquelas sentenças que declaram que uma lei não é contrária à Constituição, o que implica o afastamento de outras interpretações incompatíveis com a Constituição.
O dispositivo das sentenças desestimatórias produzem efeito apenas inter partes e, ainda assim, limitado ao litígio em que se produz, sendo as razões da decisão despidas de força vinculante. Para serem eficazes e obrigar todos os tribunais, as razões que tacham de inconstitucionais normas derivadas do enunciado legal, sem anulá-lo, hão de vencer dois óbices: o princípio de que o juiz se sujeita exclusivamente à lei e a separação existente entre a jurisdição constitucional e a ordinária.
As decisões dos Tribunais Constitucionais quanto à inconstitucionalidade da lei possui eficácia própria da res iudicata, ainda que suas razões tenham força persuasiva típicas dos Tribunais de cassação.
A extensão da eficácia erga omnes à ratio decidendi das sentenças constitucionais, independentemente do conteúdo anulatório ou não de seu decisum, há de basear-se na força vinculante da sentença. Essa força vinculante tem permitido aos Tribunais Constitucionais atribuir à fundamentação de suas decisões uma capacidade de obrigar todos os demais órgãos do Estado, não obstante ainda haver uma resistência teórica a esta idéia de força vinculante das razões que fundamentam a decisão anulatória.
Já as sentenças declaratórias de inconstitucionalidade da lei, sem anulá-la, que encontra respaldo hodiernamente apenas no ordenamento jurídico da Alemanha, manifestam-se quando são várias as possibilidades que se oferecem ao legislador para eliminar a inconstitucionalidade, o qual é chamado, algumas vezes, a substituir a lei em determinado prazo ou quando for possível.
As sentenças manipulativas, por sua vez, anulam uma ou várias palavras, no afã de modificar o conteúdo normativo do enunciado legal, em verdadeira afronta ao legislador. É, assim, uma via rápida para acomodar os valores constitucionais nos respectivos ordenamentos, porém viola ao máximo o princípio da separação dos Poderes.
c) Modos de criação do Direito:
Qualquer modificação em um sistema normativo cria novas regras, sendo o controle judicial da constitucionalidade das leis realizado, primordialmente, de forma negativa, mediante a supressão da lei.
Em regra, o objeto de anulação da jurisdição constitucional, na Europa, é sempre, em princípio, o enunciado legal, o texto aprovado pelo legislador; nos Estados Unidos, é a regra concreta que desse enunciado legal o juiz extraiu para resolver o caso sob sua análise.
Outrossim, o juízo sobre a constitucionalidade da lei é sempre, no sistema norte-americano, um juízo concreto, que leva em consideração as lesões atuais que a lei produz nos direitos fundamentais das partes; no sistema europeu, ao contrário, este juízo é sempre abstrato, inclusive quando se conclui pela invalidação de uma interpretação, uma vez que não lhe é relevante as circunstâncias fáticas do caso concreto.
A forma de declaração da inconstitucionalidade nestes dois sistemas também se distingue, na medida em que, nos Estados Unidos, a Corte Suprema não anula a norma aplicada pelo juiz, sendo sua decisão uma constatação fundamentada de que juiz a quo cometeu um erro, ao interpretar o Direito vigente e atribuir validade a uma norma contrária à Constituição. Na Europa, entretanto, a invalidação da lei somente pode ser obtida através da anulação, havendo uma equivalência entre inconstitucionalidade e anulação. Ademais, a forma de declaração de inconstitucionalidade através de decisão anulatória não é a única adotada na Europa, pois há também as vias por meio das sentenças interpretativas (sentenças puramente desestimatórias), das de mera inconstitucionalidade e das manipulativas.
Assim, contrasta com a rica variedade de formas de declaração de inconstitucionalidade na Europa a forma simplista norte-americana.
Quanto ao âmbito espacial e temporal da declaração de inconstitucionalidade, temos que o alcance espacial desta declaração, em princípio, coincide com o âmbito de validade próprio da lei anulada e que, em relação ao alcance temporal, o momento inicial a partir do qual se produz os efeitos erga omnes da declaração de inconstitucionalidade é o do seu anúncio, nos Estados Unidos, e da sua publicação, na Europa. A partir deste marco temporal, os juízes norte-americanos não devem aplicar a norma nula, a não ser que haja diferenças nas circunstâncias do caso concreto em razão das quais considerem que a norma que apliquem não coincida com a declarada contrária à Constituição pela Corte Suprema; esta ressalva não se aplica aos juízes europeus, haja vista que a decisão anulatória, na Europa, não oferece possibilidades diferentes de interpretações e a lei anulada está fora do ordenamento, não podendo, pois, ser aplicada a nenhum caso.
Além disso, a invalidação da lei se estende ilimitadamente para o futuro, ainda que, a Corte Suprema possa, nos Estados Unidos, ter a possibilidade de overrule suas sentenças anteriores para reincorporar ao ordenamento a norma declarada nula, o que não é cabível na Europa, já que, com a anulação, desaparece o enunciado ou a norma afetada, aos quais somente o legislador poderia dar vida novamente.
Por fim, a declaração de invalidade também surte efeitos para trás (“ex tunc”) e possui eficácia erga omnes, tanto no sistema norte-americano como no europeu (salvo a Áustria), uma vez que resulta de uma decisão que tenta respeitar tanto a segurança jurídica, como a igualdade e a justiça.
3. ASPECTOS SUBJACENTES QUE CORROBORAM COM A CRIAÇÃO DO DIREITO PELA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL:
Não obstante Llorente tratar, em sua obra “La Forma Del Poder”,[1] primordialmente do problema da legitimidade e dos limites da atuação jurisdicional com relação aos outros poderes políticos do Estado nos diversos ordenamentos jurídicos, ele também trata de aspectos secundários, que legitimam os argumentos principais acima expostos.
Dentre estes, podemos citar a necessidade de a Constituição determinar a eficácia geral das sentenças que declaram a inconstitucionalidade da lei, porque essa eficácia, por ser uma exceção ao princípio de que a lei somente pode ser derrogada por uma lei posterior, implica uma divisão do Poder Legislativo.
Além disso, há também o problema da mudança na estrutura dos ordenamentos jurídicos europeus com a dissociação entre as leis e seus conteúdos normativos efetivamente vigentes, que a jurisdição constitucional provocou, pela própria natureza de sua produção.
Ao ter como objeto de suas decisões normas jurídicas contidas em um enunciado legal, e não o próprio enunciado, os Tribunais Constitucionais europeus estão criando um Direito que se aparta radicalmente do modelo até então conhecido.
Assim, a invalidação de normas que as regras habituais de interpretação e integração permitem deduzir de disposições legais, cuja validade, apesar disto, mantém-se, estabelece uma dissociação total entre as leis e os conteúdos normativos efetivamente vigentes.
Nesse sentido, temos o uso cada vez mais frequente das sentenças interpretativas desestimatórias. Ademais, é necessário que se entenda que os efeitos gerais sobre todos os cidadãos e a força vinculante da decisão de invalidação possuem o mesmo significado e devem ser analisados conjuntamente como medida de fazer valer o cumprimento daquela decisão de invalidação.
Apesar de possuir origem no modelo austríaco e ter algumas semelhanças com o sistema norte-americano, não é certo afirmar que a jurisdição constitucional, na Europa, implantou um caminho intermediário entre os modelos supracitados.
Quanto à força vinculante da decisão declaratória de inconstitucionalidade, que decorre, no sistema europeu, somente do dispositivo da decisão judicial, há uma problemática no âmbito de sua eficácia.
No sistema espanhol, por exemplo, o exame de inconstitucionalidade das leis está sendo frequentemente realizado através do recurso de amparo contra leis contrárias à Constituição, sendo que, nestes casos, não há uma declaração expressa às leis declaradas inválidas no decisum da sentença, o que não assegura a eficácia desta decisão.
Diante da necessidade de atribuir força à norma estabelecida na fundamentação da decisão jurisdicional, os próprios Tribunais Constitucionais da Alemanha e da Espanha incorporam geralmente estas razões ao dispositivo da sentença. Esta prática se justifica em decorrência de que somente o conteúdo do decisum tem eficácia geral, tanto que a doutrina majoritária entende que a motivação da sentença somente é juridicamente relevante a partir do momento em que é incorporada ao decisum.
Por fim, a invalidação da lei inconstitucional suscita a questão de qual é o efeito desta invalidação sobre o Direito anterior, derrogado, implícita ou explicitamente, pelo enunciado invalidado.
A resposta a essa questão depende a quem se atribua a faculdade de decidir o imbróglio, se ao próprio Tribunal Constitucional, como ocorre na Áustria e em Portugal, ou aos operadores jurídicos, notadamente os magistrados, fórmula esta utilizada na Alemanha, Itália, Espanha e Estados Unidos, em cujos ordenamentos o juiz ordinário é quem, em cada caso, de acordo com os princípios e regras existentes no ordenamento, preencherá a lacuna produzida, resolvendo sobre a vigência do direito derrogado pela lei inválida.
4. CONCLUSÃO:
A afirmação, categórica e simplória, de que a jurisdição constitucional cria Direito pode induzir a interpretações equivocadas, não refletindo o seu verdadeiro significado diante da realidade, pois o que se observa, na maior parte das vezes, não é uma criação original do Direito, mas sim uma releitura do Direito, através de diversos institutos.
Esta “criação” do Direito pode se dar de variadas formas no ordenamento jurídico brasileiro, sendo o controle constitucionalidade a mais conhecida.
Segundo afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“O controle de constitucionalidade é a garantia sine qua non da imperatividade da Constituição. Onde ele inexiste ou é ineficaz, a Constituição perde no fundo o caráter de norma jurídica, para se tornar um conjunto de meras recomendações, cuja eficácia fica à mercê do governante, mormente do Poder Legislativo. Ao contrário, quando não só é previsto na Carta, mas tem meios de impor-se efetivamente, esta é a lei suprema, a que todos os Poderes têm de curvar-se (FERREIRA FILHO, 2000, p. 181).”.
De fato, a evolução dos sistemas de controle de constitucionalidade garante a força normativa da Constituição e, seguindo os preceitos constitucionais, surge uma nova interpretação da norma equiparada à criação de um Direito.
De toda sorte, a Constituição não pode ser alvo de experimentos levianos e irresponsáveis pelos operadores do Direito, o que pode comprometer a estabilidade do Estado.
Vale ressaltar, ainda, no ordenamento jurídico pátrio, a existência do sistema de súmulas vinculantes, criado com a Emenda Constitucional n°. 45 de 2004, que se aproxima do princípio do “stare decisis”, típico do sistema de common law. Tal sistema das súmulas vinculantes possui características semelhantes às daquele princípio, uma vez que tais decisões editadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) vinculam a Administração Pública e os demais órgãos do Poder Judiciário, apesar de não vincular o Poder Legislativo, que pode vir a aprovar leis contrárias à orientação sumulada.
Acrescente-se, ainda, que a existência de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas abertas dá ensejo à “criação” do Direito.
Além destas formas de criação, Humberto Theodoro Júnior acrescenta também as normas heterotópicas e bifrontes, que estão sendo cada vez mais utilizadas atualmente, como se percebe pela inserção de alguns dispositivos processuais no Novo Código Civil.
Humberto Ávila, por sua vez, critica o Neoconstitucionalismo no Direito pátrio, pois defende que a Constituição brasileira é essencialmente regulatória, que a subsunção não cedeu lugar à ponderação, que a justiça geral deve prevalecer sobre a justiça singular e é o Poder Legislativo que leva em consideração a pluralidade de concepção de mundo e de valores, e não o Judiciário. Assim, conclui o insigne doutrinador que o Neoconstitucionalismo possui uma contradição performática, pois ao defender a primazia da Constituição, viola-a. Em outras palavras, para ele, a ideologia do Neoconstitucionalismo “barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove sua desvalorização.”.
O agigantamento da jurisdição constitucional também se dá através da judicialização das políticas públicas, apesar de ser infindável o embate existente entre o que é mínimo existencial e reserva do possível e qual deve prevalecer no caso concreto.
Em suma, é inquestionável que a “criação” judicial de Direito é benéfica para a efetivação dos preceitos constitucionais, especialmente diante do dinamismo das transformações que ocorrem cotidianamente na sociedade, o que exige uma eterna acomodação e readaptação das normas jurídicas a fim de se alcançar, principalmente, o respeito aos direitos fundamentais. Contudo, não se pode aceitar acriticamente a tendência de admitir que os juízes e tribunais elaborarem sentenças de conteúdo positivo, sem estabelecer alguns limites claros, pois, caso não sejam impostas balizas a estas decisões judiciais, pode-se surgir um novo problema: a exacerbação da discricionariedade do julgador e, por conseguinte, um autoritarismo desmedido do Judiciário.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Humberto. “NEOCONSITUCIONALISMO”: ENTRE A “CIÊNCIA DO DIREITO” E O “DIREITO DA CIÊNCIA”. Revista Eletrônica de Direito de Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n°. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 05 de setembro de 2014.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27ª ed. atual. SP: Saraiva, 2000.
LLORENTE, Francisco Rubio. La Forma Del Poder (Estudios sobre La Constitución). Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997.
THEODORO JR., HUMBERTO. O Novo Código Civil e as Regras Heterotópicas de Natureza Processual. Disponível na internet: http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo52.htm. Acesso em: 05 de setembro de 2014.
[1] LLORENTE, Francisco Rubio. LA FORMA DEL PODER (Estudios sobre La Constitución). Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, P.463-504.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. A jurisdição constitucional como forma de criação do direito segundo Francisco Llorente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40980/a-jurisdicao-constitucional-como-forma-de-criacao-do-direito-segundo-francisco-llorente. Acesso em: 22 nov 2024.
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