RESUMO: Este trabalho procurou discorrer inicialmente sobre a importância dos princípios constitucionais, notadamente aqueles que se aplicam à tributação, e, mais especificamente, sobre o princípio do não confisco. Discutiu-se a imprecisão do termo confisco, bem como sua relação com a extrafiscalidade e com outros institutos jurídicos, tudo à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Em seguida, foram traçados paralelos entre o princípio da vedação ao confisco e outros princípios da tributação, tais como o da igualdade, da legalidade, da capacidade contributiva, da razoabilidade, da proteção à propriedade e do mínimo vital. Por fim, tratamos da possibilidade de aplicar o princípio da vedação ao confisco às multas tributárias, abordando o pensamento da doutrina e a jurisprudência do STF.
ABSTRACT: The present work was devoted to discuss the importance of the constitutional principles, namely those concerning taxation, and more specifically, about the principle of non-confiscation. We dwelled on the inaccuracy of the term confiscation, as well as its relationship with the extratreasury and with other juridical institutes, all in the light of the jurisprudence of the Supreme Federal Court. Then we drew parallels between the principle of obstruction to confiscation and other taxation principles, such as the principle of equity, of legality, of contributive capacity, of reasonableness, of protection of property and of the vital minimum. At last, we dealt with the possibility of applying the principle of obstruction to confiscation to the taxation fines, addressing the thought of the doctrine and the jurisprudence of the Supreme Federal Court.
A Constituição Federal de 1988, no capítulo do Sistema Tributário Nacional (art. 150, IV), proíbe que os entes federativos utilizem os tributos com efeito de confisco. Esse princípio é alinhado pela nossa Carta em seção intitulada “Limitações do Poder de Tributar”.
O tributo com efeito de confisco é aquele flagrantemente excessivo, escorchante, que chega a ser sentido como penalidade; é o que ameaça o patrimônio do contribuinte, em patente menoscabo à sua capacidade contributiva e ao direito de propriedade.
Embora a definição de confisco seja intuitiva, tal princípio está sujeito a alto grau de indeterminação e de subjetividade, não havendo limite seguro para separar a tributação pesada da tributação confiscatória.
A celeuma está em definir até que ponto pode avançar o tributo sem configurar o confisco ou, considerada certa situação tributável, de maneira isolada, estabelecer qual o limite máximo de ônus tributário que legitimamente sobre ela poderia impor-se. Portanto, a questão mais difícil não surge quando se invoca o princípio da vedação ao confisco nos casos extremos e representativos, mas sim naqueles que se situam numa “zona cinzenta” de indeterminação.
É certo que, a priori, não é possível precisar a partir de quando o tributo assume o viés confiscatório. Por isso, a análise deve ser feita em cada caso concreto, com o auxílio dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, dentre outros. Assim, será o Poder Judiciário, diante do caso que lhe for posto, que responderá se o tributo atingiu, ou não, as raias do confisco.
Ao final, fica, ainda, uma indagação mais difícil: tal preceito também se aplica às multas tributárias ou seu campo de aplicação está restrito aos tributos? É o que procuraremos responder neste trabalho, à luz dos esforços da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
1 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO CONFISCO
Antes de adentrarmos no estudo específico do princípio da vedação ao confisco, é mister tecermos algumas considerações sobre os princípios constitucionais da tributação.
1.1 A Importância dos Princípios Constitucionais
Etimologicamente, a palavra princípio (do latim principium) encerra a idéia de início, origem, base. Dito de forma leiga, seria o ponto de partida e a causa (fundamento) de um processo qualquer.[1]
Para os jusnaturalistas os princípios jurídicos constituem o fundamento do Direito Positivo. Nesse sentido, o princípio integraria o próprio direito natural. Já para os positivistas, o princípio seria simplesmente uma norma jurídica, que se distingue das demais pela importância que assume no sistema. Neste particular, a importância dos princípios residiria justamente na sua grande abrangência, universalidade e perenidade.[2]
Assim, os princípios constitucionais são de fundamental importância para o ordenamento jurídico, pois são eles que lhe dão a base de sustentação de todo o sistema. Conforme explica Paulo Cesar Baria de Castilho:
A sustentação do sistema jurídico, ou seja, seus alicerces e vigas mestras, são os princípios constitucionais, que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Os princípios não objetivam regular situações específicas. Desejam, entretanto, lançar sua força sobre todo o mundo jurídico. Assim sendo, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.[3]
Os princípios são, portanto, normas gerais que servem de norte para o legislador ordinário, que, ao elaborar uma norma, deverá prestar particular atenção aos princípios constitucionais. É que uma norma ofensiva a tais princípios deverá ser fatalmente rejeitada pelo sistema, que é um todo coerente e harmônico.
Outra importante função dos princípios é servir como critério de interpretação das normas constitucionais, orientando tanto o legislador ordinário na elaboração de normas, quanto os juízes na aplicação do direito e os cidadãos na realização de seus negócios.
Desse modo, conclui-se que somente com a compreensão do conteúdo e do alcance dos princípios que se consegue entender as diversas normas integrantes de um determinado ramo do direito e, por conseguinte, o todo, formado pelo ordenamento jurídico. Em clássica passagem, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.[4]
Deveras, são os princípios jurídico-constitucionais que dirigem especialmente a atuação de todas as normas jurídicas, interferindo, por conseguinte, no exercício da competência tributária.
1.2 Princípios Jurídicos da Tributação
Como é largamente apontado pela doutrina moderna, a relação de tributação não é mera relação de poder, sendo também relação jurídica, orientada por princípios jurídicos. Nesse viés, os princípios constitucionais tributários existem para proteger o cidadão contribuinte contra a voracidade arrecadatória do Estado. No ponto, elucida Ricardo Alexandre:
Percebe-se que o Estado possui um poder de grande amplitude, mas esse poder não é ilimitado. A relação jurídico-tributária não é meramente uma relação de poder, pois, como toda relação jurídica, é balizada pelo direito e, em face da interferência que o poder de tributar gera sobre o direito de propriedade, o legislador constituinte originário resolveu traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício de tal poder diretamente na Constituição Federal.[5]
Com efeito, a Constituição Federal de 1988 inaugurou um sistema jurídico tributário bastante definido, com características próprias. Em vista da tradição brasileira de abusos arrecadatórios, o legislador constituinte estabeleceu diversas regras, buscando coibir a tributação desregrada. Assim, a criação de nosso sistema tributário foi orientada por diversos princípios constitucionais que devem regular a atividade de tributação praticada pelo Estado.
Desse modo, ao lado dos princípios constitucionais gerais, encontramos uma série de outros, que são voltados, especificamente, ao sistema tributário. Segundo Paulo Cesar Baria de Castilho:
São esses princípios, pois, que oferecem as diretrizes fundamentais da nossa Constituição em matéria tributária e irão nortear todo o sistema constitucional tributário, sendo de vital importância para ele, dando-lhe caráter de coesão e harmonia, constituindo, ainda, a estrutura do sistema jurídico.[6]
Cumpre esclarecer que nossa Constituição estatui as principais limitações ao exercício da competência tributária, mas não necessariamente todas, consoante se depreende da leitura do art. 150 da CF. Este dispositivo inaugura a Seção denominada “Das limitações do poder de tributar”, deixando assente que as garantias asseguradas existem “sem prejuízo de outras [...] asseguradas ao contribuinte”.[7]
Portanto, as garantias ali asseguradas não constituem rol exaustivo, pois existem outras estipuladas em dispositivos diversos da Carta Magna (art. 5º, XXXIV), além daquelas que decorrem do regime e dos princípios adotados pela própria Carta ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, §2º, CF).
Grande parte das limitações constitucionais ao poder de tributar está protegida contra mudanças que lhe diminuam a amplitude, por configurarem verdadeiras garantias individuais do contribuinte.
Ocorre que o art. 60, §4º da CF, ao tratar das chamadas “cláusulas pétreas”, não proíbe quaisquer Emendas sobre aquelas matérias, vedando apenas as mudanças tendentes a abolir o que ali está enumerado. Nesse viés, pode-se concluir que não há vedação a emendas que ampliem ou melhorem a proteção que a Constituição Federal atribuiu ao contribuinte. Não é possível, contudo, que haja supressão ou diminuição dessas garantias.
Em conclusão, trazemos à baila mais uma vez os ensinamentos de Paulo Cesar Baria de Castilho:
Tudo o que foi dito até aqui serve para demonstrar que qualquer lei infraconstitucional (Lei complementar ou Ordinária) sobre matéria tributária (ou qualquer outra) deverá prestar obediência aos princípios constitucionais consagrados em nossa Constituição, que representa o conjunto maior de valores prestigiados por uma determinada sociedade.[8]
1.3 Princípio da Vedação ao Confisco
O art. 150, IV, da Constituição Federal de 1988 proíbe a utilização do tributo com efeito de confisco. Daí surge a primeira indagação: o que é confisco? A partir de qual momento a tributação deixa de ser meramente pesada, assumindo um viés confiscatório?
A doutrina é uníssona em afirmar a extrema imprecisão do termo confisco. Segundo Hugo de Brito Machado:
É certo que o significado da expressão tributo com efeito de confisco é extremamente problemático. Isto, porém, não invalida o dispositivo constitucional, sendo importante observarmos que inúmeros outros dispositivos, da Constituição e das leis, albergam conceitos igualmente vagos, sendo a respectiva interpretação, por isto mesmo, problemática. [9]
Ricardo Alexandre expressa opinião no mesmo sentido, ressaltando, ainda, a importância do trabalho desempenhado pelo Poder Judiciário no caso concreto:
O conceito de confisco é indeterminado, sujeito a alto grau de subjetividade e varia muito de acordo com as concepções político-filosóficas do intérprete. Isto não impede, contudo, que, em casos de notória ausência de razoabilidade de uma exação, o Poder Judiciário reconheça a existência de efeito confiscatório da tributação.[10] (grifo do autor)
Nesse viés, o prof. Eduardo de Moraes Sabbag destaca que não há parâmetros objetivos no Brasil para estabelecer o que seja confisco, sendo certo que tal análise deve ser levada a efeito pelo Poder Judiciário, com base nos princípios consagrados pela Constituição:
[...] faz-se mister destacar que a limitação à tributação confiscatória é casuística. Não há, no Brasil, parâmetros objetivos, com moldes cartesianos preestabelecidos, delimitadores do que vem a ser uma tributação excessiva. A aferição do aniquilamento da riqueza tributável compete ao Poder Judiciário, quando provocado pelo contribuinte prejudicado, no caso concreto.[11]
Hugo de Brito Machado ensina que mesmo diante das dificuldades resultantes da indefinição do que seja um tributo com efeito de confisco, o preceito constitucional, por certo, demonstra um rumo a ser seguido pela tributação no Brasil. Ela deve ser um meio pelo qual o Estado há de obter os recursos financeiros para o atendimento de suas finalidades. Nunca, porém, um instrumento de extinção da propriedade privada. “Essa diretriz servirá de bússola para o hermeneuta. Especialmente para o juiz, posto que o Judiciário a final caberá dizer, em cada caso, se o tributo tem, ou não, o efeito de confisco”.[12]
De seu turno, Luciano Amaro leciona que “o princípio da vedação de tributo confiscatório não é um preceito matemático; é um critério informador da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgador”.[13] Por isso, as fórmulas utilizadas para separar o tributo confiscatório do não confiscatório se inspiram nos princípios da equidade e da razoabilidade, sempre levando em conta as circunstâncias especiais de cada caso concreto.
Já Paulo Cesar Baria de Castilho, embora também tecendo considerações acerca da indeterminação do conceito de confisco, chega à seguinte conclusão:
Confisco, portanto, é a absorção da propriedade particular pelo Estado, sem justa indenização. Nesse sentido, todo tributo, em princípio, é confiscatório. Isso porque, se o fisco não indeniza, tanto por tanto, as rendas que aufere, positiva-se, ao menos formalmente, o confisco. E, se este é expressamente vedado pela lei suprema, seguir-se-á que o imposto, por confiscatório em sua essência, não poderá ser arrecadado. Tal conclusão, porém, soaria esdrúxula. O poder tributário legitima-se pela existência de serviços públicos de interesse coletivo e pela contraprestação que estes envolvem, embora de natureza mediata, inespecífica e de ordinário inequivalente.[14]
Desse modo, o caráter confiscatório inerente a todo tributo cederia ante ao interesse social de que o produto da arrecadação seja revertido em prol do cidadão, através de obras e serviços públicos essenciais. Portanto, a contraprestação estatal, direta ou indireta, deve ser proporcional ao ônus suportado pelo contribuinte.
Nesse sentido, o confisco deve ser entendido como uma injusta transferência patrimonial do contribuinte ao fisco. Em suma, tributo confiscatório é aquele que não é justo nem razoável. Para Hugo de Machado Brito “tributo com efeito de confisco é tributo que, por ser excessivamente oneroso, seja sentido como penalidade”.[15]
É verdade que em nosso ordenamento jurídico o poder de tributar está fundamentado na própria Constituição. Contudo, é essa mesma Carta Política que estabelece seus limites, impondo-lhe severas restrições.
Assim, somente quando a tributação se encontra nos limites autorizados pela Constituição, a transferência de riqueza do cidadão para o Estado é legítima. É que o tributo não deve subtrair mais do que uma parte razoável do patrimônio ou da renda do contribuinte.
Sob o ponto de vista técnico, o tributo não se confunde com a desapropriação, tampouco com o confisco. Contudo, a norma estampada no art. 150, IV, da CF reconhece pontos de contato no tocante aos efeitos dos três institutos. Deveras, nossa Constituição proíbe a instituição de tributos excessivamente onerosos, que acarretem a perda do patrimônio e da propriedade, como aconteceria em caso de confisco. Assim, a Carta veda que a lei regule o tributo, de modo que ele gere os mesmos efeitos econômicos do confisco.[16]
1.3.1 Extrafiscalidade e confisco
Não se pode olvidar que a própria Constituição Federal de 1988 admite a tributação exacerbada em alguns casos, sempre com finalidade extrafiscal. É que conforme a emergência da situação posta, os tributos extrafiscais poderão conter alíquotas excessivamente gravosas, sempre com a finalidade de regulação da economia. Podemos citar como exemplo a tributação da propriedade que não cumpre a função social (art. 153, § 4º, I e art. 156, § 1º c/c art. 182, § 4º, II).
De seu turno, os impostos seletivos também não se submetem ao princípio da vedação ao confisco. Pela seletividade, a variação das alíquotas se dá em função da essencialidade do bem. Assim, os produtos de primeira necessidade devem ter baixa tributação, ao passo que os produtos supérfluos ou até prejudiciais à saúde são submetidos à tributação excessiva. No ponto, elucida Aliomar Baleeiro:
Considerando esses diferentes objetivos que a lei pode perseguir, vale dizer, meramente suprir as burras do Estado, ou, ao contrário, estimular ou desestimular comportamentos na extrafiscalidade, é de se consentir na maior agressividade fiscal em uma tributação que, de fato, possa acarretar desvantagens econômicas àqueles que, embora não pratique ato ilícito, persiste em atuar contrariamente aos interesses políticos, sociais ou econômicos superiores da coletividade.[17]
O postulado da não confiscatoriedade, como se vê, cede frente às políticas tributárias extrafiscais, mormente as expressamente previstas na Constituição.
Ainda assim, Paulo Cesar Baria de Castilho traz lição de grande valia no afã de coibir os abusos arrecadatórios que podem vir camuflados sob o prisma da extrafiscalidade:
Mas é bom lembrar que, ainda que em situações anômalas, não existe uma “carta branca” para o Estado exigir o quanto quer de tributo. Mesmo nesses casos o confisco, disfarçado de tributo, continua proibido. O que se admite é um elastecimento dos critérios preestabelecidos para tributação confiscatória, sendo certo, contudo, que a perda total da propriedade (ou algo bem próximo disso), por óbvio, não deixa de ser confisco, ainda que camuflado sob as folhas da extrafiscalidade.[18]
1.3.2 Pena de perdimento e confisco
A Constituição Federal de 1988 recepcionou a pena de perdimento de bens (art. 5º, XLVI, b). Contudo, não é válido confundir a pena de perdimento de bens com o tributo confiscatório. É que o tributo não é sanção por ato ilícito (art. 3º, CTN), ao passo que pena de perdimento de bens tem nítido caráter punitivo.
No entanto, conforme ressalvado por Ricardo Alexandre: “Nada impede [...] que, em casos de comprovação de graves infrações tributárias, a legislação específica preveja como punição o perdimento de bens”.[19]
1.3.3 Taxas e confisco
A análise do caráter confiscatório da taxa é feito de maneira diversa do imposto. É que este se fundamenta na solidariedade social, ao passo que a taxa não tem por fato gerador uma manifestação de riqueza do contribuinte.
A taxa consiste em contraprestação ao Estado por uma atividade realizada em prol do contribuinte. Por conta disso, a verificação do caráter confiscatório da taxa é feita pela comparação entre o custo da atividade estatal prestada e o valor cobrado a título de taxa.
Embora seja difícil precisar o custo de uma determinada atividade estatal, em determinadas situações o valor cobrado a título de taxa é tão flagrantemente desproporcional que fica evidente seu caráter confiscatório. Sobre a questão, elucida Sacha Calmon Navarro Coêlho:
Oportuna a aplicação do princípio às taxas, por isso que a prestação tributária dessa exação, em grande parte, oferece rebeldia a critérios objetivos de medição, sendo fixada, freqüentemente, a forfait, isto é, aleatoriamente: por certidão de bens antecedentes, 20 dinheiros; por alvará, duzentos mil réis etc. Difícil mensurar o custo dos serviços. Aqui precisamente o domínio da razoabilidade. A desrazão pode descambar para o confisco. Este é vedado pela Constituição quando se perfaz pelo exercício abusivo da competência legislativa tributária. Já não se disse que o poder de tributar envolve o poder de destruir?[20]
1.3.4 Jurisprudência
Como visto, o princípio da vedação ao confisco enquadra-se no que a doutrina chama de cláusula aberta ou conceito jurídico indeterminado, cabendo ao prudente arbítrio do juiz, em cada caso concreto, avaliar a existência ou não de confisco.
Assim, a despeito da imprecisão do conceito de confisco, alguns parâmetros já estão claramente delineados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme veremos a seguir.
Em importante julgado, o STF declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 9.783/1999, que elevava a alíquota da contribuição previdenciária dos servidores públicos ao exorbitante patamar de 25%. Para o Tribunal Excelso, dentre outros vícios, o diploma legislativo afrontava a garantia do não-confisco. Por sua didática, transcrevo alguns excertos da ementa da ADIMC 2.010-DF:
E M E N T A: SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS - CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - LEI Nº 9.783/99 - ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL DESSE DIPLOMA LEGISLATIVO - RELEVÂNCIA JURÍDICA DA TESE PERTINENTE À NÃO-INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE SERVIDORES INATIVOS E PENSIONISTAS DA UNIÃO FEDERAL (CF, ART. 40, CAPUT, E RESPECTIVO § 12, C/C O ART. 195, II, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 20/98) - ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS - ESCALA DE PROGRESSIVIDADE DOS ADICIONAIS TEMPORÁRIOS (ART. 2º DA LEI Nº 9.783/99) - ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO QUE VEDA A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA (CF, ART. 150, IV) E DE DESCARACTERIZAÇÃO DA FUNÇÃO CONSTITUCIONAL INERENTE À CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA EM PARTE. PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DOS PROJETOS REJEITADOS NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA (CF, ART. 67) - MEDIDA PROVISÓRIA REJEITADA PELO CONGRESSO NACIONAL - POSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, NO INÍCIO DO ANO SEGUINTE ÀQUELE EM QUE SE DEU A REJEIÇÃO PARLAMENTAR DA MEDIDA PROVISÓRIA.
(...)
- A contribuição de seguridade social, como qualquer outro tributo, é passível de majoração, desde que o aumento dessa exação tributária observe padrões de razoabilidade e seja estabelecido em bases moderadas. Não assiste ao contribuinte o direito de opor, ao Poder Público, pretensão que vise a obstar o aumento dos tributos - a cujo conceito se subsumem as contribuições de seguridade social (RTJ 143/684 - RTJ 149/654) -, desde que respeitadas, pelo Estado, as diretrizes constitucionais que regem, formal e materialmente, o exercício da competência impositiva. Assiste, ao contribuinte, quando transgredidas as limitações constitucionais ao poder de tributar, o direito de contestar, judicialmente, a tributação que tenha sentido discriminatório ou que revele caráter confiscatório.
(...)
A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de a Corte examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição. Precedente: ADI 1.075-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (o Relator ficou vencido, no precedente mencionado, por entender que o exame do efeito confiscatório do tributo depende da apreciação individual de cada caso concreto). - A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.
(ADI 2010 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/1999, DJ 12-04-2002 PP-00051 EMENT VOL-02064-01 PP-00086) [21]
Na análise do caso, os Ministros enfatizaram que os servidores públicos com maiores rendimentos já são onerados com uma alíquota de imposto de renda de 27,5%. Assim, tais servidores entregariam praticamente metade (a sistemática de cálculo não é a simples soma de alíquotas) de sua remuneração para a União, ente credor de ambas exações.
Neste julgado paradigmático, a Suprema Corte também fixou o entendimento de que o caráter confiscatório deve ser aferido não a partir de um tributo isolado, mas sim tendo a conta a totalidade da carga tributária suportada pelo contribuinte. Nas palavras de Ricardo Alexandre:
Assim, nos termos da jurisprudência da Corte, não se deve analisar o tributo isoladamente, pois pode ser que o seu peso, isoladamente, não aparente gerar efeito confiscatório, mas, ao ser acrescido a outros tributos cobrados pelo mesmo ente, a razoabilidade desapareça.[22]
Cumpre observar que ao se falar em “totalidade da carga tributária”, o STF está se referindo à soma dos tributos exigidos por determinada pessoa política. Por conseguinte, não devem ser analisados em conjunto todos os tributos, de competência de todos os entes federados, suportados pelo contribuinte, pois tal analise, por certo, atentaria contra o equilíbrio federativo.
De outro turno, o Pretório Excelso faz clara distinção entre a aplicação da pena de perdimento de bens e o tributo confiscatório. Vejamos:
IMPORTAÇÃO - REGULARIZAÇÃO FISCAL - CONFISCO. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que, a partir de normas estritamente legais, aplicáveis a espécie, resultou na perda de bem móvel importado.
(AI 173689 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/03/1996, DJ 26-04-1996 PP-13126 EMENT VOL-01825-05 PP-00918) [23]
Por fim, impende ressaltar que o STF entende que o caráter confiscatório da taxa deve ser verificado por meio da comparação entre o custo da atividade estatal prestada em favor do contribuinte e o valor cobrado a título de taxa. Sobre a questão, trago à baila o seguinte aresto:
E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - TAXA DE EXPEDIENTE DO ESTADO DE MINAS GERAIS - DPVAT - INCIDÊNCIA DA REFERIDA TAXA DE EXPEDIENTE SOBRE AS SOCIEDADES SEGURADORAS - ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE ATIVA DAS ENTIDADES SINDICAIS QUE FIZERAM INSTAURAR O PROCESSO DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA - INOCORRÊNCIA - PERTINÊNCIA TEMÁTICA CONFIGURADA - ALEGADA UTILIZAÇÃO DO CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO PARA A DEFESA DE INTERESSES INDIVIDUAIS E CONCRETOS - NÃO-CARACTERIZAÇÃO - RECONHECIMENTO, PELO RELATOR DA CAUSA, DE QUE SE REVESTE DE DENSIDADE JURÍDICA A PRETENSÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DEDUZIDA PELOS LITISCONSORTES ATIVOS - INOBSERVÂNCIA, NA ESPÉCIE, DA RELAÇÃO DE RAZOÁVEL EQUIVALÊNCIA QUE NECESSARIAMENTE DEVE HAVER ENTRE O VALOR DA TAXA E O CUSTO DO SERVIÇO PRESTADO OU POSTO À DISPOSIÇÃO DO CONTRIBUINTE - OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA NÃO- -CONFISCATORIEDADE (CF, ART. 150, IV) E DA PROPORCIONALIDADE (CF, ART. 5º, LIV) - ENTENDIMENTO DO RELATOR DE QUE, NÃO OBSTANTE CONFIGURADO O REQUISITO PERTINENTE À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA, NÃO SE REVELA PRESENTE, NO CASO, O PRESSUPOSTO DO "PERICULUM IN MORA" - DECISÃO DO PLENÁRIO, NO ENTANTO, QUE RECONHECEU CONFIGURADA, NA ESPÉCIE, A SITUAÇÃO CARACTERIZADORA DO "PERICULUM IN MORA", O QUE O LEVOU A NÃO REFERENDAR, POR TAL RAZÃO, A DECISÃO DO RELATOR - CONSEQÜENTE DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. INADEQUAÇÃO DO CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO PARA A DEFESA DE INTERESSES INDIVIDUAIS E CONCRETOS: SITUAÇÃO INOCORRENTE NA ESPÉCIE. CONSEQÜENTE IDONEIDADE JURÍDICA DO MEIO PROCESSUAL UTILIZADO
(...)
A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA NÃO-CONFISCATORIEDADE. - O ordenamento constitucional brasileiro, ao definir o estatuto dos contribuintes, instituiu, em favor dos sujeitos passivos que sofrem a ação fiscal dos entes estatais, expressiva garantia de ordem jurídica que limita, de modo significativo, o poder de tributar de que o Estado se acha investido. Dentre as garantias constitucionais que protegem o contribuinte, destaca-se, em face de seu caráter eminente, aquela que proíbe a utilização do tributo - de qualquer tributo - com efeito confiscatório (CF, art. 150, IV). - A Constituição da República, ao consagrar o postulado da não-confiscatoriedade, vedou qualquer medida, que, adotada pelo Estado, possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, em função da insuportabilidade da carga tributária, o exercício a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita, ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, p. ex.). - Conceito de tributação confiscatória: jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (ADI 2.010-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) e o magistério da doutrina. A questão da insuportabilidade da carga tributária. TAXA: CORRESPONDÊNCIA ENTRE O VALOR EXIGIDO E O CUSTO DA ATIVIDADE ESTATAL. - A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei. - Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa, assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição da República. Jurisprudência. Doutrina. TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. - O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. - A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado. (grifo nosso)
(ADI 2551 MC-QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 02/04/2003, DJ 20-04-2006 PP-00005 EMENT VOL-02229-01 PP-00025) [24]
2 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO CONFISCO E OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA TRIBUTAÇÃO
Neste capítulo buscaremos relacionar o princípio da vedação ao confisco com outros princípios constitucionais da tributação, expressos e implícitos.
2.1 Princípio da Igualdade
Nossa Constituição assegura a igualdade de todos perante a lei em duas passagens distintas: de maneira genérica, no art. 5º, caput e, especificamente em matéria tributária, no art. 150, II.
Igualdade significa assegurar o mesmo tratamento às pessoas que se encontram em situação análoga. Na célebre parêmia de Aristóteles, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Tal preceito permite a formação de distinções sempre que sejam razoáveis. Coíbe, por conseguinte, discriminações arbitrárias, injustas ou hostis.[25]
Daí a íntima relação deste princípio com a vedação ao confisco: o que é confiscatório para um grupo de contribuintes que possuem pouca capacidade contributiva pode não ser para outro. Nas palavras de Luiz Felipe Silveira Difini: “Igualdade tributária significa igualdade em condições iguais de capacidade contributiva e desigualdade em condições desiguais de capacidade contributiva”.[26]
Segundo Aliomar Baleeiro, tanto o princípio da igualdade quanto o da vedação ao confisco derivam do princípio da capacidade econômica e têm em comum o caráter pessoal. Assim, ambos levariam em conta os gastos necessários à aquisição e manutenção da renda e do patrimônio do contribuinte e de sua família, dados variáveis e pessoais.
Por outro lado, tais postulados se distinguem à medida que a vedação ao confisco não suporta comparações. Esta resguarda o direito de propriedade – em sentido lato – mas não assegura a igualdade. O princípio do não-confisco “não compara para verificar se certo grau de justiça material foi razoavelmente incorporado pelo legislador”.[27]
De outro turno, Luiz Felipe Silveira Difini preleciona que o desrespeito ao princípio da igualdade, em regra, acarreta o confisco. Contudo, é possível que a tributação seja confiscatória sem atentar contra o princípio da igualdade (ver ementa da ADI 2.010-2, item 1.3.4). Em suas palavras:
Normalmente, a violação à igualdade implicará efeito confiscatório (salvo a situação de exações desiguais, mas todas moderadas), já por se exigir de um mais do que de outro em idêntica situação (ou seja, com idêntica capacidade contributiva). Mas a tributação poderá ser confiscatória (por extremamente exacerbada), mas igual, com o que o princípio da igualdade em si não seria atingido.[28]
Pelo exposto, conclui-se que o princípio do não confisco tem sentido absoluto, enquanto o postulado da igualdade, por se relacionar com a justiça tributária, é relativo e aferível por comparação. Ademais, é possível que a tributação seja confiscatória sem atentar contra o preceito isonômico. Ambos os postulados, contudo, têm em comum a pessoalidade, vez que derivam da capacidade contributiva.
2.2 Princípio da Legalidade
Pelo princípio da legalidade, tem-se a garantia constitucional explícita de que nenhum tributo será instituído ou majorado, a não ser por meio de lei (art. 150, I).
Para Paulo Cesar Baria de Castilho, a legalidade é o instrumento jurídico da igualdade, vez que a lei garante direitos a todos indistintamente. Através dela, tratam-se todas as pessoas igualmente na lei e perante a lei. Daí sua fundamental importância nos Estados Democráticos de Direito.[29]
Como a lei é a legítima manifestação do povo, levada a efeito através de seus representantes do Parlamento, entende-se que todo tributo instituído em lei é tributo consentido e, portanto, não confiscatório.
Tal raciocínio, se bem que cômodo, está muito distante da realidade brasileira. Comentando o ponto, discorre Sacha Calmon Navarro Coêlho:
Em princípio, tributar é atividade sujeita à legalidade e, pois, à razoabilidade. O confisco é atividade à margem da lei. Aquele que tributa, a Administração Pública (o Executivo), depende do consentimento dos governados, mediante licença do legislador, eleito pelos contribuintes. Pode ocorrer, no entanto, que o próprio legislador incorra em irrazoabilidade. [30]
Assim, o legislador não está autorizado a agir imoderadamente, sob o pretexto de ter sido legitimado pelo povo que o elegeu. O Parlamento deve obediência, em primeiro lugar, à Constituição. Portanto, a lei deve dosar a intensidade da tributação sem perder de vista os mandamentos constitucionais, notadamente o que proíbe a utilização de tributo com efeito de confisco.
2.3 Princípio da Capacidade Contributiva
O princípio da capacidade contributiva voltou a ser expresso na Constituição Federal de 1988, após omissão da Carta anterior. Seu art. 145, §1º determina que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.[31]
Assim, tal princípio impõe observância à aptidão econômica do contribuinte para concorrer com as despesas públicas. Daí sua íntima relação com o princípio da vedação ao confisco. Deveras, quando os tributos obrigam o cidadão a dispor de soma abusiva de seu patrimônio ou de sua renda ocorre simultânea agressão a ambos os princípios estudados. Segundo Roque Antônio Carraza:
Estamos convencidos de que o princípio da não-confiscatoriedade, contido no art. 150, IV, da CF (pelo qual é vedado “utilizar tributo com efeito de confisco”), deriva do princípio da capacidade contributiva. Realmente, as leis que criam impostos, ao levarem em conta a capacidade econômica dos contribuintes, não podem compeli-los a colaborar com os gastos públicos além de suas possibilidades. Estamos vendo que é confiscatório o imposto que, por assim dizer, “esgota” a riqueza tributável das pessoas, isto é, não leva em conta suas capacidades contributivas.[32]
No mesmo sentido, é a opinião de Eduardo de Moraes Sabbag:
Quem confisca, na seara tributária, vai além da capacidade contributiva do cidadão, estiolando-a com intenção predatória. Por outro lado, quem se atém aos limites da capacidade contributiva do cidadão, mantém-se na ideal zona intermediária entre o confisco e o mínimo razoável na tributação. Aliás, o Princípio da Vedação ao Confisco deriva do Princípio da Capacidade Contributiva, [...] pois tal capacidade se traduz na aptidão para suportar a carga tributária sem que haja perecimento da riqueza tributável que a lastreia.[33]
Desse modo, quando o princípio da capacidade contributiva é violado, ocorre verdadeiro confisco do patrimônio e da renda do contribuinte. É que do primeiro princípio resultam limites máximos de tributação. Nesse viés, a proibição do confisco representaria o limite superior do âmbito de extensão da capacidade contributiva: esta começa no limite de preservação do mínimo vital e termina no limite de confiscatoriedade. Nas palavras de Paulo Cesar Baria de Castilho:
A capacidade contributiva revela-se um critério de graduação, atuando como limite da tributação, permitindo a manutenção do “do mínimo vital” e obstando que a progressividade tributária atinja níveis de confisco ou de cerceamento de outros direitos constitucionais.[34]
De seu turno, a doutrina também diferencia os princípios sub examine. O raciocínio leva em conta que o princípio do não-confisco seria abrangido pela capacidade contributiva, de maior amplitude. Nesse sentido, ensina Luiz Felipe Silveira Difini:
Uma lesão de menor intensidade só fere a capacidade contributiva; apenas uma lesão mais grave caracterizaria o efeito de confisco (mas todavia já haveria, antes, malferido a capacidade contributiva, e, já por isso, seria inválida). O âmbito de atuação da não-confiscatoriedade seria menor, mas inteiramente abrangido pelo do princípio de capacidade contributiva.[35]
2.4 Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade
A garantia do não-confisco é entendida, sobretudo, como uma exigência de razoabilidade da carga tributária. A análise leva em conta a carga tributária considerada suportável por determinada sociedade, em certa época e sob específicas conjunturas.
O escopo da garantia é evitar que o Estado, sob a alegação de necessidade de aumentar receitas, acabe por sufocar os esforços produtivos da sociedade com cargas abusivas de tributos, sob pena de ocorrer verdadeira expropriação desses esforços.
Assim, doutrina e jurisprudência tem afirmado que há íntima relação entre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade com a proibição de utilização de tributos com efeito confiscatório. Nas palavras de Ricardo Alexandre:
O princípio da vedação ao confisco também poderia ser denominado de princípio da razoabilidade ou proporcionalidade da carga tributária. A idéia subjacente é que o legislador, ao ser utilizar do poder de tributar que a Constituição lhe confere, deve fazê-lo de forma razoável e moderada, sem que a tributação tenha por efeito impedir o exercício de atividades lícitas pelo contribuinte, dificultar o suprimento de suas necessidades vitais básicas ou comprometer seu direito a uma existência digna.[36] (grifo do autor)
No mesmo sentido, ensina Sacha Calmon Navarro Coêlho:
o princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou patamares de tributação tidos por suportáveis, de acordo com a cultura e as condições de cada povo em particular, ao sabor das conjunturas mais ou menos adversas que estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco se nos parece mais como um princípio de razoabilidade na tributação...[37]
Por isso que o princípio em comento exige do legislador uma conduta marcada pelo equilíbrio e pela moderação na quantificação dos tributos, tudo na busca de um direito tributário justo.
2.5 Princípio da Proteção à Propriedade
O direito de propriedade é um direito fundamental do cidadão, constitucionalmente assegurado nos Estados Democráticos de Direito. Cuida-se de um direito tido por intocável, quase que sagrado. Porém, é certo que já foi muito mais amplo. Atualmente é limitado pela exigência constitucional de cumprimento da função social (art. 5º, XXIII, CF). Assim, num determinado momento, o direito de propriedade deve conciliar-se com o poder de tributar do Estado e subordinar-se a ele.
Segundo Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino o princípio do não-confisco se fundamenta no direito de propriedade.[38] Para o insigne Aliomar Baleeiro, tributos confiscatórios são aqueles que absorvem todo o valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem o exercício de atividade lícita e moral.[39] De seu turno, o prof. Eduardo Sabbag leciona:
Proíbe o postulado da vedação à confiscabilidade a instituição de quaisquer tributos com caráter de absorção substancial da propriedade privada, sem a corresponde indenização. O tributo é inexorável, mas o “poder de tributar” não deve ser o “poder de destruir” ou de aniquilar o patrimônio do sujeito passivo.[40]
Para quem defende que a vedação a tributos confiscatórios é decorrência do direito de propriedade, nem seria necessário um dispositivo constitucional vedando, especificamente, o tributo com efeito de confisco. Tal vedação seria uma decorrência lógica em todas as Constituições que garantem o direito de propriedade.
Assim, desde o regime constitucional anterior alguns tributaristas já sustentavam a inadmissibilidade do tributo confiscatório, posto que ele iria de encontro à proteção constitucional dispensada à propriedade.[41]
No entanto, é importante deixar claro que o princípio em análise não busca conferir à propriedade uma proteção absoluta contra a incidência do tributo, fato que anularia totalmente o poder de tributar. Sua finalidade, outrossim, é evitar que o Estado anule a riqueza privada.
Luiz Felipe Silveira Difini, de seu turno, tece severa crítica àqueles autores que sustentam que o princípio da não-confiscatoriedade é mera reiteração do direito de propriedade. Para ele, aceitar essa tese é o mesmo que retirar toda a eficácia do princípio do não-confisco, em limitada adoração à proteção à propriedade privada. Em suas palavras:
Parece que fundar a não-confiscatoriedade apenas na defesa do direito de propriedade privilegia um dos pratos da balança, a defesa do direito de propriedade, em detrimento de sua função social, quando ambos foram contemplados com igual intensidade pela norma constitucional e devem ser objeto de ponderação sem uma relação apriorística de preferência.[42]
Para Roque Antonio Carraza, o princípio da vedação ao confisco não é apenas uma explicitação do direito de propriedade, mas sim um instrumento apto a reforçar a proteção constitucional dispensada a ela:
Estamos confirmando, destarte, que a norma constitucional que impede que os tributos sejam utilizados “com efeito de confisco”, além de criar um limite explícito às discriminações arbitrárias de contribuintes, reforça o direito de propriedade. Assim, por exemplo, em função dela, nenhuma pessoa, física ou jurídica, pode ser tributada por fatos que estão fora da regra-matriz constitucional do tributo que lhe está sendo exigido, porque isto faz perigar o direito de propriedade.[43]
2.6 Mínimo Vital
O mínimo existencial revela um dos aspectos concretos da afirmação da dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal, ao erigir como objetivo fundamental a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, busca funcionalizar o patrimônio, convertendo-o em verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a separação de uma parcela essencial, que atenda às necessidades elementares da pessoa humana.[44]
Deveras, os recursos econômicos indispensáveis à satisfação das necessidades humanas básicas (mínimo vital), garantidas pela Constituição, especialmente em seus arts. 6º e 7º (alimentação, vestuário, lazer, cultura, saúde, educação, transporte etc.), não podem ser alcançados pelos impostos. Segundo Roque Antonio Carraza: “não se pode, em homenagem aos princípios da capacidade contributiva e da não-confiscatoriedade, assujeitar um mesmo fato econômico à incidência de tantos impostos, que acabem por retirar do contribuinte o mínimo vital“.[45]
Ricardo Lobo Torres, por sua vez, afirma que a vedação ao confisco consiste em conferir imunidade tributária a parcela mínima do patrimônio, necessária à sobrevivência da propriedade privada. [46]
3 O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO CONFISCO E AS MULTAS
3.1 Doutrina
A multa se distingue do tributo à medida que sua hipótese de incidência é um comportamento ilícito (sanção de ato ilícito), ao passo que a hipótese de incidência do tributo é sempre algo lícito. Portanto, a multa não é tributo, mas sanção exigível perante o descumprimento de obrigação tributária.
A finalidade da tributação é formar a receita ordinária do Estado, suprindo-o dos recursos necessários para a realização de suas finalidades precípuas. Já a multa visa desestimular o comportamento que configura sua hipótese de incidência, constituindo uma receita extraordinária ou eventual.
Hugo de Brito Machado entende que a vedação ao confisco é aplicável aos tributos em geral, mas não às penalidades pecuniárias (multas), vez que os regimes jurídicos do tributo e da multa são essencialmente distintos:
Porque constitui receita ordinária, o tributo deve ser um ônus suportável, um encargo que o contribuinte pode pagar sem sacrifício do desfrute normal dos bens da vida. Por isto mesmo é que não pode ser confiscatório. Já a multa, para alcançar sua finalidade, deve representar um ônus significativamente pesado, de sorte a que as condutas que ensejam sua cobrança restem efetivamente desestimuladas. Por isto mesmo pode ser confiscatória.[47]
No mesmo sentido, Aliomar Baleeiro entendia que as sanções de modo geral podem levar à perda substancial do patrimônio do contribuinte, sem ofensa a direito. Em suas palavras:
Aliás, o art. 150, IV, é dirigido ao legislador, o qual não pode criar tributo excessivamente oneroso, expropriatório do patrimônio ou da renda (ou de sua fonte). Não impede, entretanto, a aplicação de sanções e a execução de créditos. Não se pode abrigar no princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco o contribuinte omisso que lesou o fisco, prejudicando os superiores interesses da coletividade.[48]
Na esteira dos renomados autores, parcela da doutrina sustenta que referido princípio não se aplica às multas fiscais (sejam moratórias ou penais), pois as penalidades estão expressamente excluídas do conceito jurídico-positivo de tributo, estando sujeitas a regime jurídico diverso.
No entanto, até mesmo Hugo de Brito Machado acabou por concordar com a conclusão a que chegou o STF – de que as multas não podem ser confiscatórias –, criticando, contudo, o fundamento adotado. Segundo ele, a vedação ao tributo com efeito confiscatório, a rigor, não se estende às multas. Assim, o que impediria multas de valores exorbitantes seria o princípio constitucional (implícito) da proporcionalidade.[49]
No mesmo sentido, é a doutrina de Antonio José da Costa:
As penalidades de caráter tributário, civil, penal ou administrativo, apesar de no caso de multa moratória ser, na maioria das vezes, um acessório do principal (tributo), em nenhuma hipótese se confunde com o tributo (art. 3º, do CTN), uma vez que a penalidade, além de excluída expressamente do próprio conceito legal de tributo, possui natureza jurídica e está sujeita a regime jurídico diferente. No caso de penalidade exacerbada, poderia ser alegada a quebra do princípio da proporcionalidade, mas nunca o efeito (tributário) confiscatório.[50]
Em síntese, tais autores entendem que no caso de penalidade exacerbada, poderia ser alegada ofensa ao princípio da proporcionalidade, mas nunca o efeito confiscatório.
No ponto, cumpre esclarecer que a referência à proporcionalidade deve ser entendida como noção genérica de equivalência ou congruência entre gravidade da infração e o valor da multa, e não no sentido técnico de proporcionalidade consagrado pela jurisprudência e doutrina alemãs, onde o princípio teve origem.[51]
Por sua vez, Paulo Cesar Baria de Castilho aduz que a multa, por não ser tributo, na consagrada definição estampada no art. 3º do CTN, estaria, a princípio, fora do alcance do preceito constitucional que veda a utilização de tributo com efeito de confisco (art. 150, IV, CF). Ressalva o autor, contudo, que em um Estado Democrático de Direito não haveria espaço para nenhuma sorte de confisco e conclui que a proibição da multa confiscatória seria uma das “outras garantias asseguradas ao contribuinte”:
Vale dizer, não é só o confisco tributário que está vedado por nosso ordenamento jurídico, mas qualquer forma de expropriação da propriedade sem justa indenização. E isso pode ocorrer por meio de multas tributárias com valores abusivos.
Essa garantia constitucional está amparada no próprio direito de propriedade assegurado no art. 5º, inc. XXII, e art. 170, inc. II, ambos da Carta Magna de 1988 e nas demais garantias dos contribuintes próprias de um Estado Democrático de Direito (art. 150, caput, e art. 5º, § 2.º, também da Constituição da República de 1988).[52]
Já Luiz Felipe Silveira Difini entende que a despeito de a multa não ser tributo, o tratamento legal dispensado é equivalente, consoante se depreende do art. 113, §3º, do CTN. Portanto, nada obstaria o mesmo tratamento legal:
O princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco aplica-se às multas ou penalidades. É certo que a multa não é tributo e que a própria definição de tributo do Código (art. 3º) expressa não constituir sanção de ato ilícito. Ocorre que o art. 113, § 1º, do CTN, dá o mesmo tratamento tributário ao tributo e à multa, sendo ambos objeto da obrigação tributária.[53]
Pelo exposto, observa-se que embora o fundamento para afastar a aplicação de penalidades exacerbadas divirja, todos os autores acabam por concluir que a multa confiscatória atenta contra os valores consagrados pela Constituição Federal de 1988.
3.2 Jurisprudência
Em paradigmático julgado, o STF suspendeu a execução e aplicabilidade de dispositivo de lei federal (art. 3º, par. único, da Lei n. 8.846/1994) que previa multa de 300% sobre o valor da mercadoria na hipótese de o contribuinte não haver emitido nota fiscal relativa à venda. O Tribunal considerou juridicamente relevante a tese de ofensa ao art. 150, IV, da CF. Impende frisar que a garantia do não-confisco foi proclamada, mesmo sendo o caso de multa e não tributo. Por certo, levou-se em conta o fundamento mais amplo de proteção ao direito de propriedade. Vejamos a ementa da ADIMC 1.075-DF:
E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 8.846/94 EDITADA PELA UNIÃO FEDERAL - ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA FEDERAÇÃO E DA SEPARAÇÃO DE PODERES - INOCORRÊNCIA - EXERCÍCIO, PELA UNIÃO FEDERAL, DE SUA COMPETÊNCIA IMPOSITIVA, COM ESTRITA OBSERVÂNCIA DOS LIMITES QUE DEFINEM ESSA ATRIBUIÇÃO NORMATIVA - DIPLOMA LEGISLATIVO QUE NÃO USURPA A ESFERA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA DOS ESTADOS-MEMBROS E DOS MUNICÍPIOS - LEGITIMIDADE DO PODER REGULAMENTAR DEFERIDO AOS MINISTROS DE ESTADO -ATRIBUIÇÃO REGULAMENTAR DE SEGUNDO GRAU QUE POSSUI EXTRAÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 87, PARÁGRAFO ÚNICO, II) - INOCORRÊNCIA DE OUTORGA, PELA LEI Nº 8.846/94, DE DELEGAÇÃO LEGISLATIVA AO MINISTRO DA FAZENDA - PODER REGULAMENTAR SECUNDÁRIO DESVESTIDO DE CONTEÚDO NORMATIVO PRIMÁRIO - TRANSGRESSÃO, NO ENTANTO, PELA LEI Nº 8.846/94 (ART. 3º E SEU PARÁGRAFO ÚNICO), AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO--CONFISCATORIEDADE TRIBUTÁRIA - SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DE TAL PRECEITO LEGAL - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA, EM PARTE. A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - É cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição da República. Hipótese que versa o exame de diploma legislativo (Lei 8.846/94, art. 3º e seu parágrafo único) que instituiu multa fiscal de 300% (trezentos por cento). - A proibição constitucional do confisco em matéria tributária - ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias - nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do "quantum" pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.
(...)
(ADI 1075 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/1998, DJ 24-11-2006 PP-00059 EMENT VOL-02257-01 PP-00156 RTJ VOL-00200-02 PP-00647 RDDT n. 139, 2007, p. 199-211 RDDT n. 137, 2007, p. 236-237) [54]
Posteriormente, por ocasião do julgamento da ADI 551, Relator Min. ILMAR GALVÃO, o STF decidiu que os pisos estipulados para as multas, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, agrediam o princípio da vedação ao confisco. A ementa do julgamento teve o seguinte teor:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 2.º E 3.º DO ART. 57 DO ATO DAS DOSPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FIXAÇÃO DE VALORES MÍNIMOS PARA MULTAS PELO NÃO-RECOLHIMENTO E SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO INCISO IV DO ART. 150 DA CARTA DA REPÚBLICA. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. Ação julgada procedente.[55]
No caso, os dispositivos questionados previam a multa mínima de duas vezes o valor do tributo para o seu não recolhimento no prazo e de no mínimo cinco vezes o valor do tributo para as multas decorrentes de sonegação de impostos ou taxas.
A votação foi unânime no sentido de que os pisos estipulados para as multas agrediam o princípio da vedação ao confisco. Em seu voto, o Ministro Sepúlveda Pertence lembrou interessante passagem de acórdão conduzido pelo Ministro Aliomar Baleeiro:
Recorda-me, no caso, o célebre acórdão do Ministro Aliomar Baleeiro, o primeiro no qual o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de um decreto-lei, por não se compreender no âmbito da segurança nacional. Dizia o notável Juiz desta Corte que ele não sabia o que era segurança nacional; certamente sabia o que não era: assim, batom de mulher ou, o que era o caso, locação comercial.
Também não sei a que altura um tributo ou uma multa se torna confiscatório; mas uma multa de duas vezes o valor do tributo, por mero retardamento de sua satisfação, ou de cinco vezes, em caso de sonegação, certamente sei que é confiscatório e desproporcional.[56]
Noutra ocasião (ADI 1.075-1/DF), o STF concedeu a medida cautelar pleiteada para suspender os efeitos do art. 38 e seu parágrafo único, da Lei n. 8.846/94 (posteriormente revogado pelo art. 82, alínea m, da Lei 9.532/97), que previa multa de 300% pela falta de emissão de documento fiscal, por afronta à proibição constitucional de utilização de tributo com efeito confiscatório. Note-se que a multa de 300% incidia sobre o valor da operação (e não sobre o valor do imposto devido, eventualmente sonegado pela não-emissão de nota fiscal, ou mesmo pago, inobstante descumprida esta obrigação acessória), o que mais sublinhava seu caráter confiscatório.
De outro turno, no julgamento do RE 220.284/SP, o STF considerou válida multa moratória de 30% sobre o valor do tributo. Vejamos o teor da ementa:
EMENTA: - ICMS. Multa de 30% imposta por lei sobre o valor do imposto devido. Alegação de ter essa multa caráter confiscatório. - É de rejeitar-se a preliminar de não-conhecimento do recurso extraordinário pela circunstância de a recorrente não haver indicado a alínea do inciso III do artigo 102 da Constituição, uma vez que, das razões desse recurso, se alega expressamente a ofensa a texto constitucional (ao artigo 150, IV, da Carta Magna), permitindo-se, assim, identificar o enquadramento dele na hipótese prevista na letra "a" do citado inciso III do artigo 102 da Constituição. - Não se pode pretender desarrazoada e abusiva a imposição por lei de multa - que é pena pelo descumprimento da obrigação tributária - de 30% sobre o valor do imposto devido, sob o fundamento de que ela, por si mesma, tem caráter confiscatório. Recurso extraordinário não conhecido.
(RE 220284, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 16/05/2000, DJ 10-08-2000 PP-00011 EMENT VOL-01999-04 PP-00737) [57]
Por fim, cumpre esclarecer que não há maior exame da questão na jurisprudência do STJ, até porque a questão é efetivamente constitucional, como salientado em vários julgados, refugindo, pois, ao âmbito do recurso especial e à competência daquela Corte.
CONCLUSÃO
Na esteira das considerações expostas neste trabalho, conclui-se que a multa, tanto a moratória quanto a decorrente de sonegação, embora não seja tributo, vez que se trata de sanção de ato ilícito, pode ser confiscatória. Deveras, sempre que a punição ultrapasse os limites da razoabilidade e haja um desvirtuamento de sua real finalidade ela será confiscatória.
Importa notar, ainda, que tem andando bem a jurisprudência do STF. As críticas ao fato de que o princípio da vedação ao confisco não seria extensivo às multas são muito mais voltadas ao fundamento utilizado do que à conclusão a que chegou o Excelso tribunal.
Ocorre que mais importante do que o fundamento utilizado para afastar a incidência de multas exorbitantes é a resposta do Poder Judiciário a essa importante questão social. Assim, seja por que fere o direito de propriedade, seja por que atenta contra o princípio da razoabilidade, seja, ainda, por que desrespeita o princípio da vedação ao confisco, o principal é se chegar a uma conclusão justa: a multa confiscatória fere os valores consagrados pela Constituição Federal de 1988.
Portanto, a crítica que se faz é muito mais de rigor científico do que propriamente finalístico. De todo modo, o fato é que uma multa excessiva, ultrapassando o razoável para dissuadir ações ilícitas e para punir os transgressores, caracteriza uma forma indireta de burlar o dispositivo constitucional que veda o confisco.
O impedimento constitucional é que o Poder Público, a pretexto de exercer a atividade de tributação, se aposse dos bens do contribuinte, seja a título de tributo, seja a título de penalidade.
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PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Tributário na Constituição e no STF: teoria e jurisprudência. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito tributário. 9. ed. rev. ampl. São Paulo: Premier Máxima, 2008.
[1] Cf. CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, 2006, p. 36.
[2] Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 1991, p. 11.
[3] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 67.
[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 2006, p. 902/903.
[5] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado, 2008, p. 94.
[6] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 68.
[7] BRASIL, Constituição de 1988.
[8] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 69.
[9] MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 1991, p. 77.
[10] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado, 2008, p. 135.
[11] SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito tributário, 2008, p. 44.
[12] MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 1991, p. 82.
[13] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2008, p. 145.
[14] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 37.
[15] MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 1991, p. 73.
[16] Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, 1999, p. 573.
[17] Ibidem, p. 577.
[18] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 117.
[19] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado, 2008, p. 138.
[20] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, 1998, p. 47.
[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
[22] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado, 2008, p. 137.
[23] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
[25] Cf. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 127.
[26] Ibidem, p. 130/131.
[27] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, 1999, p. 575.
[28] DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 131.
[29] Cf. CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 90.
[30] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, 1998, p. 47.
[31] BRASIL, Constituição de 1988.
[32] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, 2006, p. 99.
[33] SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito tributário, 2008, p. 43/44.
[34] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 92.
[35] DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 122.
[36] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado, 2008, p. 135.
[37] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, 1998, p. 333.
[38] Cf. PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Tributário na Constituição e no STF: teoria e jurisprudência, 2006, p. 116/117.
[39] Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, 1999, p. 564.
[40] SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito tributário, 2008, p. 44.
[41] Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 1991, p. 71.
[42] DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 112.
[43] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, 2006, p. 99.
[44] Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, 2007, p. 348.
[45] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, 2006, p. 100.
[46] Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, 1993, p. 56. Apud: AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2008, p. 144.
[47] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário, 2007, p. 71.
[48] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, 1999, p. 579.
[49] Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário, 2007, p. 72.
[50] MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord). Direitos fundamentais ao contribuinte, Revista dos Tribunais, 2000, p. 432. Apud: DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 237.
[51] Cf. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 84. Segundo a doutrina alemã, o princípio da proporcionalidade possui três acepções: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ou justa medida).
[52] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário, 2002, p. 124/125.
[53] DIFINI, Luiz Felipe Silveira, Proibição de tributos com efeito de confisco, 2006, p. 238.
[54] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
[55] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
[56] Ibidem.
[57] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Viviane Pereira de. O princípio da vedação ao confisco e as multas tributárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 set 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40992/o-principio-da-vedacao-ao-confisco-e-as-multas-tributarias. Acesso em: 22 nov 2024.
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