I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Constituição como conquista da modernidade e como documento fundante e fundamental de um Estado ganhou, especialmente durante o século passado, diversas formas e concepções de como deve ser seu conteúdo e suas funções e objetivos básicos.
Vamos analisar, no presente artigo, a Constituição como instrumento de governo, concepção que existe de há muito e sempre está presente nos debates acadêmicos e políticos. Para tanto vamos abordar se tal classificação de Constituição lhe dá uma maior estabilidade, durabilidade e governabilidade comparando-se com o dirigismo constitucional e se possui um papel mais preponderante na efetivação dos direitos fundamentais. Por fim, em sede de conclusão pretendemos responder o questionamento se é possível, ainda hoje, aplicar essa concepção constitucional na realidade constitucional brasileira.
II – A CONSTITUIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE GOVERNO
Para os defensores da Constituição como Instrument of government deve ser um espaço de disciplina processual e não material, para tanto, deve se ater, tão somente, a "estabelecer competências, regular processos e definir os limites da ação política"[1].
Dentro desse objetivo, de ser um mero instrumento de governo a serviço do programa político da maioria vencedora em uma democracia ou, até mesmo, oriundo de um poder autoritário, tal acepção acerca da Constituição pretende que as funções de Limite e controle do Poder e Organização do Estado, tal qual como concebida pelas revoluções liberais.
Se a Lei Maior compreender esses pontos básicos poderá, segundo os constitucionalistas que defendem tão acepção, "aspirar a converter-se numa ordem fundamental do estado e absorver a clássica tensão entre <constituição> e <realidade constitucional>"[2].
Para os adeptos da Constituição como instrumento de governo, ou, como denominam alguns, Constituição orgânica, somente será alcançada a sua estabilidade e da realidade constitucional subjacente, se essa não pretender conformar a realidade por meio de excessos normativos. Em suma, a Constituição deve ficar adstrita as conquistas do constitucionalismo liberal para cumprir sua função e objetivo de ser um instrumento de governo, que organiza o Estado, limita o poder desse perante o indivíduo para exercer sua autodeterminação e liberdade. Com isso, advogam os constitucionalistas defensores de tal concepção, a Lei Maior permite maior discussão e debate político e tomadas de decisões pelos governantes sem o “caminho de ferro” de uma Constituição que determina os fins e programas para a coletividade, tal qual como concebida no surgimento do Estado Social.
Com uma Constituição Orgânica não só deixa o jogo da política mais livre, mas também permite uma maior predominância econômica e social. Ademais, argumentam os defensores da Constituição orgânica que a abdicação da ideologização da Lei Maior geraria estabilidade política e social e uma durabilidade da Constituição e de sua força normativa.
Recorre-se, invariavelmente, para a defesa dessa compreensão (estabilidade da Constituição), ao exemplo da Constituição dos Estados Unidos da América, para afirmar que essa é a sua fórmula de resistência perante a história e as mudanças culturais. Todavia, vale, lembrarmos o que expõe o professor Canotilho:
"... se uma constituição corresponde (ou deve corresponder) sempre às necessidades de praxis políticas, como, de forma espressa, defende W. HENNIS, só uma visão ahistórica de <constituição ideal> pode sustentar que uma constituição responde hoje - ressalvando o específico caso americano - aos mesmos problemas de uma constituição dos primórdios do Estado de Direito Liberal" (grifo nosso).
Como salientado pelo eminente constitucionalista português, a experiência norte-americana é única (do mesmo modo que a inglesa é o único país sem uma Constituição escrita), a sobreviver durante todos os acontecimentos históricos que vieram após a proclamação de independência e a elaboração e promulgação da Constituição do Estado norte-americano. Além disso, não necessariamente, se deve a duração da Constituição até o presente tempo, ao fato, tão somente, ou até mesmo dito principal pelos defensores da Constituição como Instrumento de Governo, da Lei Maior norte-americana, se ater as funções básicas do estado, mas, sim, principalmente, a realidade política e histórica desse país e suas circunstâncias culturais. Se elevarmos ao máximo a importância para duração de uma Constituição que essa seja eminentemente orgânica, não teria explicações para as diversas Constituições que seguiram tal concepção e sucumbiram em face dos acontecimentos históricos, sendo, o primeiro exemplo, a própria Constituição advinda da revolução francesa que sucumbiu em face dos acontecimentos revolucionários.
Juntamente com a estabilidade da Constituição, outro aspecto levantado, para defesa dessa concepção de Constituição, é a maior governabilidade[3] que possibilitaria. Um dos mais notáveis defensores de tal posicionamento, dentro da doutrina constitucional brasileira, é Manoel Gonçalves Ferreira Filho, segundo o qual, filiando-se aos ensinamentos de W. Hennis:
A importância da contribuição de Hennis está, pois, em valorizar o óbvio esquecido. Ou seja, a Constituição há de organizar o Poder, deve limitá-lo e se, atendendo à moda, quiser programar a atuação governamental, não pode deixar de levar em conta que esse arranjo tem sua valia condicionada pela governabilidade. Do contrário ficará letra morta, ou terá efeitos negativos[4].
Mais adiante, sustenta o constitucionalista brasileiro, que,
"toda Constituição deve presumir uma equação de governabilidade. Ou seja, deve estruturar o Poder em função dos objetivos a realizar, definir esses objetivos em razão das possibilidades da sociedade e de acordo com estas prelevar os meios suficientes, ao mesmo tempo que dê ao Poder estabilidade, eficiência e democraticidade"[5].
A crise de governabilidade, como uma crise de todo Estado, é, dessa forma, agravada, na compreensão dos defensores da Constituição como Instrumento de Governo, se a Constituição não concebe em seu texto, tão somente, suas funções básicas - advindas do constitucionalismo liberal - sendo que, os objetivos traçados para o Estado, deve se reservar as possibilidades de alcance da sociedade.
A Constituição que foge a essas características e se aproxima das concepções do dirigismo constitucional, que pretende traçar objetivos e meios para reformar a sociedade subjacente, não se restringindo a "fórmula de Constituição" do art. 16 da Declaração francesa, é a um dos fatores responsáveis pela crise de governabilidade, conforme se depreende do posicionamento de Manoel Gonçalves F. Filho: "Sem dúvida, a Constituição brasileira de 1988 é responsável pela ingovernabilidade do País, em decorrência, numa larga medida, do copismo, e do utopismo, como se mostrará adiante."[6]
O argumento sustentado pelos defensores da descrita teoria da Constituição, qual seja, da não ideologização[7] da Constituição, leva a pensarmos que a teoria defendida está coberta de parcialidade e valores superiores. Ora, a própria defesa da Constituição como um Instrument of government está eivada de ideologia política.
Tal afirmação pode ser confirmada na seguinte passagem de José Eduardo Faria, Direitos Humanos e Globalização Econômica:
"no plano estritamente jurídico-positivo o panorama parece sombrio e cinzento, uma vez que estão sendo vitimados pelos já mencionados processos de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização atualmente promovidos pelos Estados-nação para melhor se adaptar às exigências da globalização econômica ..."[8]
Portanto, a Constituição como instrumento de governo leva em seu conteúdo e em seus objetivos concepções políticas-ideológicas e de defesa de interesses econômicos, qual seja, a defesa do (neo)liberalismo e, mais recentemente, a expansão da globalização econômica. Dentro dessa pretensão, a Constituição deve ser essencialmente processual para não ser um instrumento que possibilite ao Estado intervir na vida da sociedade ou, mais especificamente, na economia de mercado e no sistema financeiro. Dessa forma, não há possibilidade da sociedade reclamar a atuação do poder judiciário para o cumprimento da Constituição Social e Econômica, se essa não há.
Embora esse não seja o objetivo desses pensadores e constitucionalistas, o fato é que a Constituição e, por conseguinte, o Estado, restando adstrito as funções alcançadas pelas revoluções liberais e a independência norte-americana, inviabilizam ou estacam os instrumentos estatais que possibilitem a afirmação e efetivação dos direitos fundamentais[9], ainda não concretizados na grande maioria dos países. Dessa maneira, fica à cargo da força política predominante e de suas concepções e interesses, a atuação do Estado sem maiores comprometimentos com a efetivação dos direitos fundamentais. Ao Estado não cabe o papel de pai, nem à Constituição o de mãe, todavia não devem deixar um indivíduo órfão no meio da vida social, competindo, ou, sem possibilidades de competir, ou, ainda, servindo à outros.
Assim, concebendo-se a Constituição como instrumento de governo, corre-se o risco, como bem assinala Canotilho, que "um esquema processual de racionalização e limitação do poder, mesmo que seja um valor em si, só em relação a fins materiais adquire uma dimensão substancial que evite o perigo da sua instrumentalização a favor de qualquer conteúdo".
Ademais, o maior dirigismo constitucional, não compreende a ruptura com a limitação do poder, estabilidade constitucional, mas sim, conformar os poderes estatais, em favor de certos objetivos a serem alcançados postos pela sociedade que os clama(ou).
A Teoria Constitucional, assim como, de resto todas as ciências, e a humanidade como um todo, evoluíram sobremaneira desde as revoluções liberais, para recorrer-se a uma fórmula já utilizada e que a história nos mostrou insatisfatória, ou seja, não podemos pretender resolver problemas novos (nem tão novos assim), com fórmulas antigas. A Constituição não pode ficar adstrita a estabelecer, tão somente, a organização do Estado e suas competências e limites. É necessário algo mais, as funções da Lei Fundamental foram acrescidas com o devir histórico, para abranger o que o povo, que de resto é (ou deve ser) o verdadeiro soberano, almeja. Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, "não é aceitável em nossos dias que uma Constituição seja exclusivamente orgânica"[10]. Ademais, afirma Canotilho, "só uma visão ahistórica de <constituição ideal> pode sustentar que uma constituição responde hoje - ressalvado o específico caso americano - aos mesmos problemas de uma constituição dos primórdios do Estado de Direito Liberal"[11].
III – CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, sem retomarmos o debate feito no desenvolvimento do presente para incorrer em redundância, cabe-nos retornarmos a questão proposta no início do texto, qual seja, é possível, ainda hoje, aplicar a concepção da Constituição como instrumento de governo na realidade constitucional brasileira?
Qualquer análise que se faça a respeito da Constituição de 1988 e sua concepção ideal deve se partir, antes de mais nada, de uma dado, ou seja, do texto promulgado e existente até o presente momento, para saber se é possível aplicar-se um concepção constitucional como a ora estudada. Não há como fugir do nosso objeto primordial de análise que é a Constituição da República brasileira tal qual é no atual momento.
Tendo por base o pressuposto do texto já existente, não se torna difícil a resposta a questão proposta. Sendo assim, podemos afirmar que a Constituição de 1988 não é um Instrument of government e não pode vir a ser sem que se viole suas cláusulas pétreas e seu cerne e núcleo. A Constituição brasileira de 1988 não só não é e não pode se tornar uma Constituição ao serviço de governos como, pode se afirmar com boa parte da doutrina ou mesmo sua maioria, que nossa norma maior segue a linha do dirigismo constitucional que pretende não só o controle estatal e estabelecimento de funções básicas como também a conformação da realidade social por meio de normas programáticas e impositivas para o Estado e para sociedade civil.
Desse modo, embora possa parecer tentadora a possibilidade de tornar a Constituição um instrumento de programas de governo, com a nossa, desde 1988, tal tentativa esbarra na imperatividade de seu programa de Constituição.
IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 20a ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: cotributo para compreensão das normas constitucionais programáticas.Coimbra Editora, 1994.
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos e Globalização Econômica: notas para uma discussão. In O mundo da Saúde - São Paulo, ano 22, v. 22, n. 2mar/abr. 1998
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Constituição e Governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. Editora Saraiva, São Paulo, 1995.
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: cotributo para compreensão das normas constitucionais programáticas.Coimbra Editora, 1994, p. 87.
[2] Idem.
[3] "O termo governabilidade é um neologismo construído a partir de governar. Governar, do latim gubernare (que tinha originalmente o sentido de guiar, conduzir um navio - de gobernaculum, leme, depois governar, dirigir etc.), significa ‘dirigir; administrar; reger; conduzir; regular o andamento de; Ter poder ou autoridade sobre`. Governabilidade quer dizer, pois, possibilidade ou aptidão de conduzir. Mas de conduzir, administrando ou regendo, algo que tem movimento próprio: os negócios públicos", citou Governar, in Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Pequeno dicionário brasileiro da lingua portuguesa, 11. Ed., Rio de Janeiro, Ed. Sedegra, v. 2. FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Constituição e Governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. Editora Saraiva, São Paulo, 1995. p. 3.
[4] Idem. p. 23.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] "A superação da crise de ingovernabilidade não prescinde, ao invés, reclama, uma nova Constituição. A de 1988 nasceu fora de época, ainda inspirada por um marxismo vulgar intitulado de socialismo ‘real`, que logo se esboroou. É necessário jogar no arquivo essa obra do copismo de esquerda". Idem. p. 142.
[8] FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos e Globalização Econômica: notas para uma discussão. In O mundo da Saúde - São Paulo, ano 22, v. 22, n. 2mar/abr. 1998, p. 80.
[9] "A cada nova geração dos direitos humanos conforme se vê uma dos poderes do Estado-nação - respectivamente, o Legislativo, o Executivo e o aparato judicial, incluindo-se aí o Ministério Público - é afirmado, destacado e enfatizado. Com o fenômeno da globalização, no entanto, conforme já se viu, todos eles são funcionalmente esvaziados. Por isso, as três gerações de direitos humanos acabam enfrentando problemas para ser efetivadas". [9] FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos e Globalização Econômica: notas para uma discussão. In O mundo da Saúde - São Paulo, ano 22, v. 22, n. 2mar/abr. 1998, p. 78.
[10] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 20a ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 94.
[11] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 90.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. Constituição como instrumento de governo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41010/constituicao-como-instrumento-de-governo. Acesso em: 22 nov 2024.
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