1. INTRODUÇÃO
O instituto do bem de família voluntário, que nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 557) se revela um caso especial de inalienabilidade voluntária, foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pelo Código Civil de 1916, sendo também disciplinado pelo Decreto-Lei n.º 3.200/41, pela Lei de Registros Públicos, além do Código de Processo Civil.
Com o advento do novo Código Civil, em 2002, o referido instituto foi deslocado ao Livro do Direito de Família, entre os artigos 1.711 e 1.722, que prescrevem a constituição voluntária do bem de família por meio de registro constitutivo no serviço registral imobiliário da situação do bem, que é destinado à residência e proteção familiar.
Assim, subsistem lado a lado o bem de família voluntário e o legal, instituído pela Lei n.º 8.009/90, que não faz parte do presente estudo, devido à sua extensão. O principal efeito decorrente de ambos os sistemas é a impenhorabilidade do bem, que não poderá sofrer qualquer tipo de constrição como forma de satisfação dos credores.
2. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO
O bem de família se encontra constitucionalmente fundamentado pelos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à moradia. Fundamento da República, que se constitui em Estado Democrático de Direito, a dignidade humana reclama o mínimo necessário para se viver dignamente, sendo a moradia, sem dúvida, parte integrante desse mínimo protegido constitucionalmente.
Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 557) descreve o bem de família como “uma forma de afetação de bens a um destino especial, que é ser a residência da família”. Vale lembrar que o bem de família continua sendo propriedade do instituidor, todavia, se encontra afetado a uma finalidade específica, protegida pelo já mencionado princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
3. O NOVO CONCEITO DE FAMÍLIA TRAZIDO PELO NOVO CÓDIGO CIVIL
O artigo 1.711 tratou de alargar o conceito de família já previsto na Constituição Federal de 1988, abarcando todas as entidades familiares. Vejamos:
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.
Percebe-se que agora não há mais restrição à proteção da entidade familiar, instituída por esta ou aquela forma, pouco importando o estado civil das pessoas protegidas pelo instituto em questão.
Ainda que o presente estudo não tenha a pretensão de abarcar o instituto do bem da família legal, estabelecido pela Lei n.º 8.009/90, calha registrar aresto do Supremo Tribunal Federal no agravo de instrumento 240.297/SP, que tratou da amplitude do conceito de família, e restou vazado nos seguintes termos: “As expressões ‘casal’ e ‘entidade familiar’ constantes do art. 1º da Lei 8.009/90, devem ser interpretadas consoante o sentido social da norma, devendo a família ser caracterizada como instituição social de pessoas que se agrupam por laços de casamento, união estável ou descendência. Considerando que a lei não se dirige a um grupo de pessoas, mas permite que se proteja cada indivíduo como membro da instituição em apreço, mister se faz estender seus benefícios a qualquer pessoa integrante da entidade familiar, seja ela casada, solteira, viúva, desquitada ou divorciada, uma vez que o amparo legal é dado para que seja a esses assegurado um lugar para morar. Precedentes desta Corte.” (DJU de 24/10/2000, p 202 e 203)
Percebe-se, assim, que a jurisprudência em primeiro lugar e posteriormente o novo Código Civil deram a amplitude adequada ao conceito de família, necessária à correta eficácia do instituto.
4. DA LEGITIMAÇÃO PARA INSTITUIR O BEM DE FAMÍLIA
O já citado artigo 1.711 do CC prescreve a possibilidade de instituição do bem de família pelos cônjuges, companheiros e ainda por terceiros. No caso de cônjuges e companheiros, Luiz Guilherme Loureiro (2010, p. 285) ensina que: “É necessário que ambos os parceiros estejam de acordo com a instituição, uma vez que no direito atual o marido não é mais considerado o ‘cabeça’ do casal ou o ‘chefe’ da família.” Considerando que cabe ao casal a administração pelo patrimônio familiar, em caso de divergência, deverá o juiz resolver o litígio.
Novidade trazida pelo Código Civil de 2002 é a possibilidade de terceiro instituir bem de família, que poderá ocorrer por meio de testamento ou doação, logo, impossível a instituição por instrumento particular. A lei não disciplina qual a forma de testamento deverá ser observada, razão pela qual deve-se admitir tanto a instituição por testamento público, cerrado e particular.
Após o registro de instituição do bem de família, o prédio ou bem é declarado inalienável, que poderá ser removida com a anuência dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público, nos termos do artigo 1.717 do Código Civil, vazado nos seguintes termos:
Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.
Além da inalienabilidade, o bem de família também é dotado de impenhorabilidade, ou seja, o imóvel fica isento de execução por dívida. Luiz Guilherme Loureiro (2010, p. 286) adverte que a impenhorabilidade não é absoluta, uma vez que o bem responde pelas dívidas provenientes de tributos relativos ao mesmo prédio ou quando se verificar que a instituição do bem de família foi feita em fraude ou prejuízo a débito anterior.
5. DO VALOR DO BEM DE FAMÍLIA
Novidade trazida pelo Código Civil de 2002 foi a imposição de limite de um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição. Veja-se:
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Tal medida tem por objetivo evitar a fraude contra credores, preservando-se de maneira solvente o patrimônio para a quitação de eventuais dívidas anteriores.
A presente limitação vem recebendo diversas críticas, uma vez que o limite estabelecido impedirá os menos favorecidos economicamente de se utilizar do referido instituto. O cumprimento de tal critério ocorre mediante declaração expressa a ser feita pelos instituidores do bem de família, de que o bem não ultrapassa o limite permitido, respondendo, por obvio, perante terceiros, pela veracidade de tais alegações.
6. O OBJETO DO BEM DA FAMÍLIA
O objeto do instituto se mostrou delimitado pelo artigo 1.712 do Código Civil:
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
Assim, poderá recair o bem de família em prédio residencial urbano ou rural, não podendo recair, por exemplo, em prédio comercial ou industrial, de lazer ou em terra nua. Além do prédio residencial e dos valores mobiliários, outros bens como veículos, direitos e ações reais podem ser instituídos como bem de família.
No que tange ao imóvel, a lei determina que a família deve nele residir, sendo que parte da doutrina discorda dessa posição, afirmando ser possível o aluguel ou arrendamento do bem de família. Quanto aos bens móveis instituídos como bem da família, sua renda deverá ser necessariamente utilizada para o sustento da família. Tais bens não poderão ter destino diverso ou mesmo ser alienados sem o consentimento dos interessados e de seus representantes legais.
Importante alteração do novo código civil foi a abolição do limite legal de destinar apenas um prédio como bem de família. O limite estipulado é de um terço do patrimônio líquido, assim não há impedimento de que, por exemplo, dois prédios sejam instituídos como bem de família, desde que não ultrapassem o limite de um terço.
7. CANCELAMENTO OU REVOGAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA
O cancelamento do bem de família depende de ordem judicial, uma vez comprovada a impossibilidade de sua manutenção. Dessa forma, o bem fica alienável.
O bem de família extingue também com a morte de ambos os cônjuges ou companheiros e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos à curatela. Importante registrar que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família, ainda que não haja filhos.
A revogação do bem de família apenas se opera com a competente anotação no Registro de Imóveis, averbando-se o cancelamento do registro, sendo exigido, para tanto, o competente mandado judicial, com decisão transitada em julgado.
8. CONCLUSÃO
Diante do que restou exposto, verificamos do instituto do bem de família voluntário, seus requisitos e sua abrangência.
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHAVES, Carlos Fernando Brasil e REZENDE, Afonso Celso F. Tabelionato de Notas e o Notário Perfeito. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2003
FILHO, Nicolau Balbino. Registro de Imóveis. Doutrina. Prática e Jurisprudência. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012
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LOPES, Seabra. J. Direito dos Registos e Notariado - 2ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002
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RIBEIRO, Luiz Paulo Aliende. Regulação da Função Pública Notarial e de Registro. São Paulo: Saraiva, 2009
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Pós-Graduado em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp<br>Procurador Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SECCO, Henrique de Melo. Da instituição do bem de família voluntário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41028/da-instituicao-do-bem-de-familia-voluntario. Acesso em: 22 nov 2024.
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