Resumo: Interpretar o negócio jurídico é interpretar a declaração de vontade ou as declarações de vontade que o integram; é determinar o sentido, o conteúdo da declaração[1]. Através da interpretação será possível estabelecer quais os efeitos que as partes pretenderam produzir ao ajustarem um determinado negócio jurídico. A lei pode explicitar algumas diretrizes que auxiliam a interpretar o contrato. Por vezes, o processo hermenêutico impõe-se como etapa imprescindível para a aplicação do contrato, de maneira a afastar as dúvidas, omissões, obscuridades ou contradições existentes.
Palavras-chave: Interpretação. Vontade e declaração. Motivo. Negócio jurídico.
Sumário: 1. Interpretação do negócio jurídico: breve introdução. 2. Dispositivos legais sobre interpretação contratual. 3. O problema da interpretação e o da divergência entre a vontade e a declaração. 4. Ainda sobre o problema da interpretação. 5. O problema da interpretação e o da divergência entre a vontade e a declaração: a perspectiva de Natalino Irti. 6. O motivo do negócio jurídico: alguns exemplos. 7. O motivo e a causa do negócio jurídico. 8. O motivo e o objeto do negócio jurídico. 9. O motivo ilícito como causa de nulidade do negócio jurídico. 10. O erro de direito como motivo único e principal do negócio jurídico. 11. O falso motivo. 12. A teoria da pressuposição. 13. Notas conclusivas. 14. Referências bibliográficas.
1. Interpretação do negócio jurídico: breve introdução
Interpretar o negócio jurídico é interpretar a declaração de vontade ou as declarações de vontade que o integram; é determinar o sentido, o conteúdo da declaração[2]. Através da interpretação será possível estabelecer quais os efeitos que as partes pretenderam produzir ao ajustarem um determinado negócio jurídico[3].
Assim como as leis, também são possíveis várias formas de interpretação do contrato, a saber: a interpretação literal, autêntica, judicial, declarativa, extensiva, restritiva, sistemática, histórica etc. [4]
Washington de Barros Monteiro propõe uma série de orientações que auxiliam o intérprete a interpretar os negócios jurídicos. Dentre as sugestões propostas, sinale-se as seguintes: os contratos devem ser interpretados conforme a boa-fé; a melhor interpretação é aquela realizada com base nos eventos posteriores à perfectibilização do negócio; as dúvidas de uma venda devem ser interpretadas, modo geral, contra o vendedor; em relação às obrigações, a estipulação deve ser interpretada da maneira menos onerosa para o devedor; se os termos são claros e apropriados, não há como fugir do sentido literal; as várias cláusulas devem ser interpretadas de maneira sistemática de forma a se construir um resultado harmônico[5].
A lei também pode explicitar algumas diretrizes que auxiliam a interpretar o contrato. É o que se passará a analisar no tópico a seguir.
2. Dispositivos legais sobre interpretação contratual
O Código Civil estabelece alguns dispositivos sobre a matéria da interpretação dos negócios jurídicos.
O artigo 112 do novo diploma civil, por exemplo, estabelece que, “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. É de se registrar que, em relação à antiga redação do dispositivo – art. 85[6] do CC/16 – o novel Código acrescentou que a intenção das partes é aquela consubstanciada nas declarações de vontade.
O espírito do dispositivo continua sendo rigorosamente o mesmo, qual seja, “a interpretação gramatical não deverá prevalecer sobre a verdadeira intenção das partes”[7]. Todavia, a modificação referida sinaliza que a vontade é aquela declarada pelas partes.
Dessa forma, se a primeira leitura induz à convicção de que o Código adotou o dogma da vontade, a releitura faz perceber que não é bem assim. José Carlos Moreira Alves, nesse discorrer, afirma que, muito embora tenha sido mantida a concepção subjetiva, o novo código afastou-se dos exageros dessa concepção lastreada na rígida observância do dogma da vontade. O novel diploma adotou, assim, a teoria “subjetiva mitigada pelos princípios da auto-responsabilidade do declarante e da confiança nessa declaração pelo seu destinatário”[8]. A vontade das partes buscada pelo hermeneuta, nesse sentido, é aquela consubstanciada nas cláusulas contratuais, cujo alcance somente será definido levando-se em conta, dentre outros, o princípio da boa-fé e a confiança dos interessados.
O artigo 114 do Código Civil de 2002, por sua vez, estabelece que “os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”. De fato, considerando que os contratos benéficos consagram liberalidade de uma das partes em benefício da outra, a interpretação não pode permitir que se extraiam mais vantagens que não aquelas expressamente previstas no pactuado. Se assim não fosse, o intérprete incorreria no risco de conferir maiores vantagens do que aquelas pretendidas pelo beneficiador.
O artigo 113 explicita que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração”. Trata-se de dispositivo de grande relevância em razão da função hermenêutica que atribui ao princípio da boa-fé objetiva. Tal princípio já se encontrava albergado no Código de Defesa do Consumidor e, antes deste, pelo Código Comercial de 1850. Por ora, interessa-nos apenas mencionar a existência desse artigo, relegando-se para outros estudos seu aprofundamento, considerando as limitações físicas desse trabalho.
O artigo 423, a seu turno, determina que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Isso por que, como o nome já evidencia, o aderente apenas adere ao contrato já pré-formatado, dispondo de pouco espaço para discussão do contratado. A ambigüidade e a contradição, dessa forma, devem prejudicar quem redigiu as cláusulas contratuais, e não aquele que a elas apenas aderiu. Para Jones Figueiredo Alves, o princípio da interpretação contratual mais favorável ao aderente “decorre da necessidade isonômica estabelecendo em seus fins uma igualdade substancial real entre os contratantes”[9]. Importa referir ainda que, para o CDC, todas as cláusulas contratuais deverão ser interpretadas em favor do consumidor (art. 47), tendo em vista a sua condição de vulnerabilidade, presumida pelo legislador.
Pode-se mencionar ainda o art. 421, onde se lê que a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Cuida-se de outro dispositivo de inegável importância no âmbito contratual. Com relação ao princípio da função social do contrato, a I Jornada de Direito Civil aprovou alguns enunciados, segundo os quais a função social constitui cláusula geral que a) impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos; b) reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas; c) não elimina, mas atenua o princípio da autonomia contratual[10].
Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva[11], é no campo do controle dos efeitos dos atos jurídicos que a função social melhor se aplica. Havendo mais de uma hipótese de satisfatoriamente executar o contrato, por exemplo, dever-se-á optar pela que promova benefícios sociais. A função social prevista no art. 421, assim, também exerce um importante papel na interpretação do negócio jurídico não só pelas partes, mas também pelo juiz.
Ainda no tocante aos artigos do Código Civil que oferecem orientação para a interpretação contratual, cite-se o art. 843, segundo o qual a transação interpreta-se restritivamente; o art. 819, que estabelece que a fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva; o art. 1.899, que prescreve que, quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador.
Cumpre sublinhar, por fim, alguns outros dispositivos do diploma civil que, “ainda que não se refiram, propriamente, a normas de interpretação contratual, encerram figuras nas quais o papel da interpretação a partir de princípios ganha especial relevo”[12]. São eles o estado de perigo (art. 156) e o instituto da lesão (art. 157).
Tanto num quanto no outro caso, não se está diante de erro na declaração de vontade por parte da vítima. O que ocorre é que a contratação é motivada pela necessidade de salvar a si mesmo ou a pessoa de sua família de grave dano conhecido pela outra parte, no caso do estado de necessidade. Na hipótese do art. 157, por outro lado, a contratação se dá porque uma das partes se encontrava sob premente necessidade ou por inexperiência. Para que a lesão se manifeste, não é necessário a prova do dolo do comprador ou erro presumido do vendedor, pois a invalidade do contrato decorre de vício objetivo do próprio contrato.[13]
3. O problema da interpretação e o da divergência entre a vontade e a declaração
No acordo de vontades estabelecido entre as partes contratantes, é possível que haja simetria entre aquilo que desejaram no momento da avença e as expectativas dos direitos e deveres assumidas. Nesse caso, não haverá necessidade de interpretação propriamente dita, pois o “sentido e o alcance das cláusulas contratuais coincidem plenamente, quer no processo interno de formação do acordo de vontades, quer no processo ulterior de exteriorização dessas vontades”[14].
Quando, por outro lado, não existir dita simetria, o processo hermenêutico impõe-se como etapa imprescindível para a aplicação do contrato, de maneira a afastar as dúvidas, omissões, obscuridades ou contradições existentes[15].
Segundo Manuel de Andrade[16], as dúvidas podem consistir a) na obscuridade ou ininteligibilidade insanável da declaração negocial; b) na equivocidade ou ambigüidade da declaração a interpretar. Indagando-se sobre como resolver esse problema, o jurista sustenta, primeiramente, a possibilidade de anulação do contrato. Aduz também que, se o pacto for gratuito, resolver-se-á a dúvida pela menor transmissão de direitos ou interesses; se oneroso, a solução levará em conta a maior reciprocidade de interesses. Ou seja, prevalecerá “o sentido que conduza a um maior equilíbrio ou proporção entre as prestações das partes” [17].
Esse mesmo autor identifica algumas teorias que buscam solucionar a questão da discordância entre a vontade do agente (presente no momento da declaração) e a declaração propriamente dita.
Para a teoria ou posição subjetiva, o negócio jurídico vale e deve ser interpretado conforme a vontade do declarante. A vontade prevalece sobre a declaração. Essa vontade real “pode ser investigada através de todos os elementos ou circunstâncias que a tal respeito possam elucidar o intérprete” [18].
Segundo a teoria ou posição objetiva, é necessário abstrair-se da vontade real do declarante, ou seja, do sentido que ele quis infundir na declaração negocial. Vale a declaração afirmada. José Abreu Filho, ao comentar essa teoria, afirma que “o que importa é a indagação dos fins ou objetivos perseguidos pelas partes por meio da consumação do negócio respectivo”. Indaga-se não a intenção, mas a “indagação da finalidade, entendido que as declarações determinam a confiança alheia, razão por que é precisamente o critério da confiança que domina a interpretação.” [19]
Em relação à posição adotada pela doutrina geral, Manuel de Andrade afirma não adotar, como também o fazem quase todos os autores, qualquer teoria unitária. Diz que sua posição “compreende antes uma doutrina geral, e depois certas limitações” [20]. Sustenta que “prevalece aquele sentido objetivo que se obtenha do ponto de vista do declaratório concreto, mas supondo-o uma pessoa razoável (e não mais do que isso)”. [21]
Quanto às teorias intermediárias, dignas de menção a teoria da responsabilidade e a teoria da confiança. Pela teoria da responsabilidade, o declarante é responsável, se agir com culpa, pelos prejuízos causados ao destinatário. Pela teoria da confiança, é válida a declaração conforme a confiança que tenha despertado no destinatário. [22]. A tais critérios deve-se acrescentar o princípio da boa-fé. Todos eles se combinam no sentido de precisar a intenção do agente consubstanciada na declaração, não a simples intenção ou vontade interna. [23]
Pela teoria da confiança, Umberto Theodoro Junior sublinha que não é suficiente analisar o dissenso entre vontade e declaração apenas no ângulo de quem a emite. É preciso também levar em conta o comportamento de quem a recebe. É preciso, nesse sentido, indagar se este manteve sua expectativa de vinculação conforme os ditames da boa-fé, ou se de alguma forma concorreu com culpa no evento. A teoria da confiança “retrata bem os rumos da nova ordem jurídica, que se afasta do individualismo para melhor valorizar o interesse social. Daí por que vai além da tutela da vontade do declarante para se ocupar também do interesse daqueles que confiam na segurança das relações jurídicas e que, da mesma forma, devem concorrer para que ela se concretize”[24].
Ainda segundo o jurista, o novo diploma civil, (ao menos) no campo do erro substancial evoluiu da teoria da responsabilidade para a teoria da confiança, adotando apenas aparentemente a defesa da vontade real.[25]
De fato, para o art. 138 do Código Civil de 2002, “são anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”[26].
Agora, o erro só é causa de anulação do negócio jurídico quando for substancial e, além disso, reconhecível pelo outro contratante. Deslocou-se o olhar, isto é, do declarante para o destinatário da declaração. Assim, “o problema da escusabilidade ou inescusabiliade do erro, por parte de quem o comete, perde totalmente o significado. A causa da anulação é o erro perceptível em face do outro contratante, vício que prevalecerá ainda que inescusável o erro cometido. Despreza-se no regime atual o requisito da escusabilidade do erro porque era dado vinculado à doutrina voluntarista, que foi superada pela moderna preocupação com a segurança das relações jurídicas e com a objetiva partilha dos riscos dos erros acaso ocorridos durante a formação do contrato. Daí por que em lugar da escusabilidade passou-se à cognoscibilidade do erro, como critério de aferição de sua relevância jurídica. Sem esta não se anula negócio algum[27].
Ou seja, o que importa para o direito contemporâneo não é o defeito na formação da vontade, mas sobretudo as conseqüências práticas que podem derivar do erro. O que deve ser levado em conta não é a forma com que o erro foi produzido, enquanto fenômeno psicológico, mas o modo com que sua incidência se deu sobre o contratado[28]. São as naturais expectativas do destinatário da declaração de vontade que devem ser levadas em conta pelo intérprete.
4. Ainda sobre o problema da interpretação
Desarrazoado afirmar que a vontade pode ser pesquisada independentemente da declaração. O ponto de partida é sempre a declaração. Afinal, parte-se da declaração para descobrir a intenção. O objeto primordial da interpretação “nunca é uma vontade real não manifestada”[29]. Objeto de interpretação é a vontade exteriorizada, manifestada pelo declarante. A intenção é a “intenção que resulta da declaração” [30]
Dentro desse ângulo, pergunta-se: a vontade ou a declaração que deve prevalecer? Para Caio Mário, comentado por Antônio Junqueira, esta pesquisa não pode se situar no desejo subjetivo do agente, pois este nem sempre coincide com a produção das conseqüências jurídicas do negócio jurídico. As circunstâncias que envolvem a realização do ato, os elementos econômicos e sociais que circundam a emissão de vontade revelam-se como outros tantos fatores úteis à condução do hermeneuta. [31]
Para solucionar o problema da interpretação do negócio jurídico, mormente no direito brasileiro onde prevalece a vontade, Antônio Junqueira de Azevedo sustenta que se deve alargar “aquele primeiro momento da operação interpretativa, em que se parte da declaração”. A declaração, segundo o jurista, não se limita apenas ao ‘texto’ do negócio, mas a tudo aquilo que, pelas suas circunstâncias, surge aos olhos de uma pessoa normal, em virtude mormente da boa fé e dos usos e costumes, como sendo a declaração. A essência da declaração, nesse sentido, é dada por essas circunstâncias. Somente após, então, é possível passar a investigar a vontade real do declarante. A solução consiste, portanto, em “primeiramente se interpretar a declaração, objetivamente, com base em critério abstrato, e, somente num segundo momento, investigar a intenção do declarante (critério concreto); parte-se, assim, do objetivo (a declaração como um todo) para o subjetivo (a vontade real do declarante). Com essas duas operações, uma boa parte das dúvidas estarão afastadas” [32]
Plagiando Ortega y Gasset, o negócio jurídico é o negócio jurídico e todas as suas circunstâncias. Por outras palavras, “há de se entender por negócio jurídico aquela conduta total socialmente qualificada como negócio” [33]
Para Antônio Junqueira de Azevedo, “não basta, pois, que haja algo que surja aos nossos olhos como exteriorização de vontade, é preciso ainda que essa manifestação venha rodeada de circunstâncias[34] que façam com que ela seja vista socialmente como manifestação jurídica, isto é, como declaração. ‘E a palavra ‘declaração de vontade’ implica este elemento novo, que consiste numa finalidade de manifestação jurídica, não somente de irrevocabilidade jurídica, mas, se se pode dizer assim, de produção, ou de eficácia jurídica’” [35]
5. O problema da interpretação e o da divergência entre a vontade e a declaração: a perspectiva de Natalino Irti
A necessidade de condicionar a interpretação do negócio jurídico ao exame das circunstâncias atinentes à formação e à execução do negócio também é objeto de estudo pelo jurista italiano Natalino Irti.
Em sua obra Texto e contexto, o autor menciona a existência do princípio da ultra-literalidade (ultra-letteralità). Segundo esse princípio, o contexto verbal e o contexto situacional devem ser levados em conta quando da interpretação de um negócio jurídico. A ultra-literalidade exerce a função de alargar a pesquisa e/ou a interpretação do negócio jurídico.
A importância desse princípio se faz presente quando houver divergência entre, de um lado, aquilo que as partes pretenderam pactuar e, de outro, a declaração de vontade realizada e os efeitos derivados dessa declaração. Havendo concordância, não haverá propriamente um problema hermenêutico. As palavras simplesmente descreverão os objetivos juntos perseguidos pelas partes. [36]
Mas, em havendo dissenso entre a comum intenção das partes e o sentido literal das palavras, a questão se faz mais complexa. Importante, nesse aspecto, ter presente que as palavras, segundo Natalino Irti, são dotadas de um sentido primário e de um sentido secundário. O sentido primário é aquele difundido e aceito em uma dada época histórica. O sentido secundário respeita a códigos menores ou a sub-códigos de caráter geográfico ou funcional[37]; age como um outro sentido, mas é extraído dos sentidos objetivamente assinalados às palavras sob exame, e então, literal ele também. [38] O problema está na escolha do sentido, se primário ou secundário. A escolha deverá levar em conta o contexto verbal e situacional, a palavra inserida no meio de outras palavras, na unidade da frase e na integralidade do acordo[39].
Pois bem. É possível, como já referido, que haja dissenso entre a intenção das partes e o sentido literal da declaração. Natalino Irti, a propósito, menciona as seguintes hipóteses:
a) Comum intenção não coincide com o sentido literal. Haverá a necessidade de se adotar algum dos sentidos secundários da palavra. E esse sentido secundário se determina justamente com base na comum intenção das partes. Há de se ter em mente, todavia, que esse sentido secundário, de qualquer forma, deve ser extraído da palavra[40] (declaração). Ou seja, a declaração deve possibilitar esse sentido secundário. “Le parole non sono gusci vuoti, riempibili con l’intenzione, di volta in volta accertata dall’interprete. Il senso primario é un limite da oltrepassare; il senso secondario, un limite da rispettare” [41]. “Il senso letterale é sempre un limite da oltrepassare per l’indagine della comune intenzione; ma un limite, entro il quale si ritorna, allorché la comune intenzione s’infrange contro l’unico ed escluvio senso delle parole” [42]
b) Comum intenção não coincide com o sentido literal, mas a palavra sob exame é dotada de um único e exclusivo significado. As palavras não são ambíguas, duvidosas, mas o seu sentido discorda da comum intenção. Nesse caso, para Irti, deverá prevalecer o sentido literal em detrimento da comum intenção[43]. Somente no caso de polissemia é que a intenção das partes exerce uma função seletiva dos sentidos possíveis de serem extraídos da palavra (os sentidos secundários). No caso de monossemia, prevalece o sentido literal, único e exclusivo da palavra.
Com relação ao tratamento legal da matéria, Natalino Irti invoca o art. 1.362 do Código Civil italiano, cuja redação é a seguinte:
Art. 1.362: no interpretar o contrato deve-se indagar sobre qual foi a comum intenção das partes, não se limitando ao sentido literal das palavras.
Para determinar a comum intenção das partes, deve-se valorar o seu comportamento complexivo, mesmo aquele posterior à conclusão do contrato.
Interpretar o contrato, pois, é determinar o conteúdo do contrato; é verificar o sentido das palavras, levando em conta o contexto verbal e o situacional. Os dois contextos viabilizam a escolha dentro de uma pluralidade de sentidos possíveis.[44] Interpretar o contrato, em outras palavras, é um processo circular, não linear. Transcorre do sentido literal das palavras à comum intenção das partes, e daqui retorna ao sentido literal. Havendo concordância, o esforço hermenêutico se exaure; havendo discordância, o intérprete, utilizando a comum intenção, procura verificar qual dos sentidos possíveis extraídos da palavra pode ser utilizado para que esteja em concordância com a comum vontade das partes[45]
Natalino Irti, ainda, invocando o brocardo in claris non fit interpretatio, refere que a clareza não é pressuposto, mas resultado da interpretação: um texto verbal não é de per si claro ou obscuro. Somente o processo interpretativo e a gradual aplicação dos métodos prescritos pelo legislador estão em grau de dizer se o texto é claro ou obscuro[46].
Quanto à complexidade do comportamento das partes, mencionada pelo texto legal, o jurista sublinha que o comportamento se desenvolve em mais de um momento: agir antes do contrato, a conclusão do contrato e o agir posterior à conclusão do contrato. [47]. Haveria, então, dois critérios para valorar o comportamento complexivo:
a) Critério prospectivo: válido quando se analisa o momento pré-conclusão do contrato; as partes estão direcionadas à conclusão do contrato. O pensamento e o agir está direcionado a isso.
b) Critério retrospectivo: válido quando se analisa o momento posterior à conclusão do contrato. “à liberdade de concluir ou não concluir deriva a necessidade jurídica de executar” [48]. O comum modo de se comportar é o comum modo de compreender o acordo já concluído [49].
6. O motivo do negócio jurídico
Examinada a questão da interpretação contratual, passa-se agora a tratar da matéria relacionada ao motivo do negócio jurídico.
7. O motivo e a causa do negócio jurídico
Nesse ponto, poder-se-ia indagar acerca da existência ou não de alguma diferença semântica entre motivo e causa do negócio jurídico.
Inicialmente, cumpre referir que, todo negócio jurídico é precedido de representações psíquicas que se traduzem numa ação humana, qual seja, a declaração de vontade. Tais representações internas ao agente representam os motivos do negócio jurídico que, como se verá a seguir, são – como regra – irrelevantes para a ordem jurídica. A necessidade de morar perto do local de trabalho, por exemplo, pode ser o motivo determinante para a locação de um imóvel. Se, por ventura, após a assinatura do contrato o locatário vem a perder seu emprego, não poderá postular a nulidade do pactuado invocando a inexistência superveniente do motivo que ensejou a contratação. Tal somente se faria possível se o motivo perpassasse a esfera interna do declarante para integrar o próprio contrato. Nesse caso, ocuparia a condição de motivo determinante da contratação, adquirindo relevância jurídica.
Há quem refira, nesse sentido, que quando o motivo passa a ser determinante, confunde-se com a causa do negócio jurídico. Humberto Theodoro Junior, por exemplo, menciona que “tudo que influi na formação da vontade negocial é causa; mas causa jurídica só pode ser o motivo determinante do negócio, dentro do consenso estabelecido entre os seus sujeitos. O motivo, como tal, permanece no âmbito do psiquismo individual do declarante; já o motivo determinante (causa) é o que deixa de ser fato particular de um dos sujeitos e torna-se elemento comum a ambos os agentes do contrato. Opera-se, dessa maneira, o consenso sobre a relevância do motivo na economia do negócio e, portanto, sua essencialidade diante dos fins contratuais”[50]
Manuel de Andrade, a seu turno, subdivide a categoria motivo em motivo próximo e motivo remoto. No caso de uma compra e venda, segundo o jurista, o motivo próximo – que também pode ser concebido como fim próximo – é a obtenção do preço da venda. Trata-se de motivo objetivo, impessoal, típico, constante para uma dada figura negocial. Para a teoria subjetiva, este motivo próximo identifica-se com a causa do negócio.
O motivo remoto – no caso, a destinação da casa adquirida para moradia de algum familiar, por exemplo, não passa de simples motivo [51], sendo irrelevante para o mundo do direito. Trata-se de motivo individual, subjetivo, diferente de caso para caso.
Para José Abreu Filho, nesse mesmo sentido, a causa constituiu o último elo da cadeia, o mais próximo da ação; é enfim o que a determina[52]. O autor, citando Ruggiero, define causa “como sendo ‘o fim econômico e social reconhecido e garantido para o direito’” [53].
A identificação da causa ou razão do negócio jurídico com sua funzione economico-sociale também é procedida por Emilio Betti[54]. Theodoro Junior, igualmente, afirma que “o fim jurídico dentro da estrutura negocial é, nessa ordem de idéias, sua causa. Isto é: a transferência da propriedade é a causa da compra e venda, como a transferência da posse é a causa da locação, e como a realização da obra é a causa da empreitada. No plano do direito, cada contrato se justifica pelo efeito que lhe é próprio e que se individualiza na declaração de vontade”[55].
A causa, no âmbito do direito civil brasileiro, não é referida como elemento do negócio jurídico. No entanto, vários dispositivos legais dela tratam. O art. 62 do novo Código Civil, por exemplo, dispõe que a fundação somente poderá se constituir para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência. O art. 876, por sua vez, trata do pagamento indevido, determinando que o que recebeu o que não lhe era devido é obrigado a restituir. O art. 994, a seu turno, disciplina o instituto do enriquecimento sem causa, que, pela própria denominação, põe em realce a causa do negócio jurídico.
A causa também ganha destaque quando da classificação dos negócios jurídicos em abstratos e causais.
Nos negócios abstratos, o elemento essencial é a forma; se essa faltar, o negócio é inexistente como aquele negócio.[56] A letra de câmbio, por exemplo, só vale como tal caso preenchidos os requisitos formais. Se não preenchidos, ela não existirá como letra de câmbio, mas poderá configurar algum outro instituto jurídico. O negócio abstrato pode ser definido, pois, “como aquele cujos efeitos jurídicos se produzem independentemente de causa; ele tem, portanto, causa, mas sua causa é juridicamente irrelevante para a validade ou a eficácia; ele se caracteriza pela forma, e não pelo conteúdo” [57].
No direito brasileiro, não há negócios absolutamente abstratos. A falta de causa terá relevância entre as partes. O pagamento de nota promissória, por exemplo, pode ser impedido quando não houver causa, desde que o título não tenha circulado.
Quanto aos negócios causais, a forma não é essencial para a própria existência do negócio; sem forma, os pactos serão apenas inválidos. A causa é fato externo ao negócio, mas que “o justifica do ponto de vista social e jurídico, enquanto o elemento categorial objetivo é justamente a referência, que se faz a esse fato, no próprio conteúdo do negócio.” [58].
8. O motivo e o objeto do negócio jurídico
Não há de se confundir o motivo com o objeto do negócio jurídico. Anteriormente à edição do Código Civil de 2002, não raro a jurisprudência anulava um determinado negócio jurídico invocando a ilicitude do objeto, quando na verdade o elemento ilícito ou imoral consistia no motivo. A doutrina inclusive questionava tais decisões por serem desprovidas de embasamento legal. Todavia, com a consagração do motivo ilícito como fato de nulidade do negócio jurídico quando for determinante para a conclusão do negócio, além de comum a ambas as partes (art. 166, III, do CC/02), não há mais por que confundir os dois institutos.
O objeto, nesse sentido, faz parte do próprio negócio, é um de seus elementos constitutivos. Os motivos, por outro lado, estão no agente, “ficam na pessoa e fora do negócio” [59]. Somente se os motivos foram transpostos do agente para o conteúdo do negócio, então passarão a fazer parte dele.
Alguns exemplos refletem essa diferença entre objeto e motivo. Na promessa de não cometer crime em troca de compensação financeira, por exemplo, o objeto é lícito. Afinal, apenas não seria lícito promessa de prática de algum crime. Todavia, o motivo se revela ilícito, pois não se pode prometer algo que se deveria cumprir espontaneamente em troca de pecúnia[60].
9. O motivo ilícito como causa de nulidade do negócio jurídico
Como já referido supra, tradicionalmente se entendeu que o motivo somente será relevante para o ordenamento jurídico quando deixar de constituir mera representação psíquica do agente para integrar o negócio jurídico. Em outras palavras, de acordo com a doutrina tradicional, o motivo deve assumir a condição de motivo determinante para que conquiste relevância jurídica. Caso isso aconteça, e o motivo seja ilícito e conhecido de ambas as partes, é hipótese de nulidade do negócio jurídico, como determina o novo Código Civil, em seu art. 166, III.
Cuida-se, é bem verdade, de inovação do diploma civil de 2002, não havendo nenhuma regra semelhante no código revogado. Isso permitirá que, caso preenchidos os requisitos do art. 166, inc. III, a jurisprudência venha a declarar a nulidade do negócio jurídico não mais com base na ilicitude do objeto, como vinha ocorrendo – de maneira errônea, como já salientado –, mas com fundamento na ilicitude do motivo.
Paulo Nader traz alguns exemplos que ilustram a questão. Se um casal, nesse sentido, “desejando aproveitar-se de certos efeitos tributários, realiza a sua separação consensual apenas formalmente, continuando a exercitar os deveres inerentes ao casamento, tem-se que o motivo determinante da separação, comum ao casal, foi ilícito. Situação inversa pode caracterizar também a figura sub examine. Para proteger-se na lei de um Estado estrangeiro, a pessoa casa-se com nacional apenas ‘no papel’, beneficiando-se em seguida dos efeitos jurídicos de seu ato”[61]. Ainda segundo Nader, nessas hipóteses, as partes se acham sob conluio visando a extrair proveito ilícito do ato, proveito esse que não seria atingido não fora a prática do ato negocial. O negócio jurídico, nesse sentir, reúne os elementos essenciais necessários, inocorrendo qualquer vício de consentimento ou vício social, sequer desobediência a qualquer lei imperativa. O que a lei pretende é evitar a fraude sob aparência de licitude[62].
Novamente posta em destaque a relação entre causa e motivo, Antônio Junqueira de Azevedo sustenta que “a causa ilícita se refere aos motivos que levam o agente a realizar o negócio (motivos determinantes). O sentido de causa ilícita é, pois, o de motivo determinante ilícito”[63]. Na verdade, os motivos são irrelevantes para o direito, salvo algumas exceções. Uma delas é justamente o motivo ilícito.
10. O erro de direito como motivo único e principal do negócio jurídico
O inc. III do art. 139 do Código Civil dispõe que o erro é substancial quando, sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico.
Importante salientar que somente o erro substancial, e nunca o acidental, é capaz de ensejar a nulidade contratual. Ou seja, é necessário que a manifestação de vontade equivocada tenha sido a causa determinante do pactuado. Não é, assim, “na declaração que está o erro, mas em sua causa”[64].
Segundo Humberto Theodoro Junior, o erro substancial, como regra, é erro de fato, pois ninguém se escusa de cumprir a lei sob a alegação de não conhecê-la. Todavia, pode ocorrer que alguém venha a contrair alguma obrigação na errônea pressuposição de uma certa regra jurídica que, em realidade, inexiste. Esse é o erro de direito. Assim, o consumidor que adquire um veículo no exterior com a intenção única e declarada de transportá-lo para o seu domicílio, mas desconhecendo da impossibilidade jurídica da importação, pode invocar o artigo supra mencionado como argumento para a anulabilidade de seu contrato.
11. O falso motivo
O artigo 140 do Código Civil também faz expressa menção ao motivo, dizendo que “o falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.
Assim, o que o art. 140 faz é explicitar a exigência de dois requisitos: o motivo deve assumir a condição de razão determinante e sua invocação como causa deve ter sido expressa na realização do negócio. O destinatário da declaração, isto é, deve ter tido ciência da imposição por parte do declarante do motivo como condição negocial[65]. Assim, “não há dúvida que nesse terreno, o requisito da reconhecibilidade é relevante e, a lei, ao exigir a declaração expressa do motivo, prestigia, mais uma vez, a teoria da confiança, ou seja, ‘ o erro, ainda que substancial, só defere a ação de anulabilidade, se reconhecível pelo outro contraente. Provado por este sua boa-fé, ou se for demonstrado ser-lhe impossível saber que o consentimento se inspira no erro, o negócio prevalecerá’” [66]
Nesse mesmo sentido, a ilicitude dos motivos “somente invalida o negócio quando penetra no conteúdo do negócio, isto é, quando se ostenta, reflete ou transparece nas próprias cláusulas que formam tal conteúdo, quer nas cláusulas essências ou típicas, quer só nas estipulações acessórias” [67].
O problema estará na dificuldade da prova do motivo ilícito. É mais aparente a ilicitude do próprio objeto ou conteúdo do negócio, motivo pelo qual a ilicitude ou imoralidade dos motivos “é menos grave e escandalosa, e portanto menos carecida de uma reacção adequada por parte do direito” [68].
12. Teoria da pressuposição
Conforme já mencionado acima, tradicionalmente se defende que os motivos, salvo se expressos como motivos determinantes, passando pois a integrar o teor do contrato, não encerram relevância jurídica[69].
Não obstante tal assertiva, sabe-se que existem determinadas circunstâncias não previstas pelos contratantes quando da perfectibilização do contrato, cuja existência se revelou imprescindível para a realização do contrato e para a determinação do teor das cláusulas contratuais. Essas circunstâncias, como adverte Mario Bessone[70], apesar de serem estranhas à causa, não consistem em meras representações mentais, mas são dotadas de relevante incidência sobre o equilíbrio econômico do contrato. Tais circunstâncias consistem justamente nos motivos do negócio jurídico.
Caso esses elementos, não explicitados no contrato – repita-se –, venham a sofrer alterações durante a execução do negócio jurídico, como proceder? Para responder a essa indagação, importante o estudo da teoria da pressuposição, desenvolvida por Windscheid.
Essa doutrina baseia-se no fato de que existem certas circunstâncias pressupostas pelas partes, apesar de não deduzidas expressamente no contrato, que foram determinantes para a conclusão do acordo[71]. Caso essas circunstâncias mudem quando da execução do contrato, haverá conflito entre elas e a intenção original das partes, colocando em risco a execução do pactuado e a própria sobrevivência do vínculo contratual.
Windscheid, um dos autores que contribuiu fortemente para a difusão do dogma da vontade, entendia que os conflitos entre as circunstâncias e a execução do contrato deveriam ser resolvidos à luz da vontade do sujeito. Ou seja, desimportava que o sujeito contratante não houvesse explicitado que somente estava contratando porque as circunstâncias eram e deveriam continuar sendo aquelas presentes e previstas quando da contratação. Por pressuposição, segundo essa teoria, é possível deduzir que a intenção do agente era contratar nos termos contratados somente porque presentes as circunstâncias sobre as quais se fundou o contrato. Em outras palavras, muito embora o motivo da contratação não tenha sido explicitado, ele acaba vinculando as partes contratantes.
Cláudia Lima Marques, nesse mesmo sentido, ao tratar dos contratos no CDC, sustenta que os motivos do ato jurídico, que sempre foram considerados fora da proteção do direito, podem ser protegidos quando forem razoáveis e estiverem amparados na boa-fé. Nesse caso, passam a integrar a relação contratual.[72]
Luís Renato Ferreira da Silva, igualmente, coloca em destaque que a “atual dogmática contratual encontra-se permeada pelo princípio da boa-fé, o qual põe em relevo a motivação, na verdade apenas em seu aspecto objetivo”. Isso porque o comportamento segundo a boa-fé importa a criação de expectativas legítimas no desenrolar das relações jurídicas. Tal se põe em nítido confronto com a doutrina clássica, que não aceitava que as motivações internas pudessem ser consideradas como fatores influenciadores do desenvolvimento da relação contratual.[73]
Segundo Mario Bessoni, a teoria da pressuposição sofreu várias interpretações com o passar do tempo. Conforme ressalta Luís Renato Ferreira da Silva, tal teoria foi também alvo de críticas pelo fato, por exemplo, de se confundir com os motivos[74].
Vale referir ainda que a teoria da pressuposição de Windscheid serviu de fundamento para a criação da teoria da base subjetiva do negócio jurídico, por obra de Paul Oertmann. Para esse autor, não haveria necessidade de uma parte dividir a pressuposição com a outra; bastaria que ela ao menos tivesse conhecimento da decisão do contratante e a aceitasse[75]. Segundo Judith Martins-Costa, a fragilidade dessa doutrina “estava justamente no recurso à representação subjetiva acerca dos motivos da existência ou do surgimento futuro de circunstâncias sobre cuja base se forma a vontade negocial”[76].
A segunda variante da teoria – a da base objetiva do negócio jurídico – se deve a Karl Larenz, para quem a base engloba cada circunstância cuja presença ou manutenção se faça necessária para que o pactuado possa se constituir em uma regulamentação sensata[77]. A quebra da base se dá, pois, quando ocorrer o desaparecimento do fim essencial do contrato ou da relação de equivalência das prestações[78].
Essa teoria, embora deite raízes na cláusula rebus sic stantibus, viabiliza a revisão ou resolução contratual sem a necessidade de prova da previsibilidade do evento causador do desequilíbrio contratual. O que marca essa doutrina é “entender desaparecida a base do negócio jurídico quando a relação de eqüiponderância entre prestação e contraprestação resta deteriorada em tão grande medida que não se pode mais, ‘de modo compreensível’, falar de ‘contraprestação’. No seu cerne estão, pois, os topoi da comutatividade e sinalagmaticidade, conquanto possa ser aplicada a contratos com prestações futuras, como já decidiu a jurisprudência”[79].
A doutrina é pacífica no reconhecer no direito inglês a origem da teoria da quebra, revelando-se uma constante a referência aos coronation cases. O direito alemão, por sua vez, desenvolveu o tema com maior profundidade dogmática[80].
Os coronation cases representam uma série de casos onde pessoas que haviam alugado cadeiras, janelas e embarcações de modo a presenciar o cortejo de coroação do rei Eduardo III viram frustrada suas intenções, dado o adiamento da cerimônia por motivo de doença do rei. No mais citado dos casos – Krell v. Henry – , desobrigou-se o locatário do pagamento devido porque o motivo/finalidade da locação havido sido frustrado. Buscou-se, no julgamento, não as condições pré-estabelecidas ou implícitas – como ocorre pela teoria da pressuposição –, mas sim a finalidade contratual[81].
13. Notas conclusivas
Interpretar o negócio jurídico, portanto, é interpretar a declaração de vontade ou as declarações de vontade que o integram, determinando-lhes o sentido. Através da interpretação será possível estabelecer quais os efeitos que as partes pretenderam produzir ao ajustarem um determinado negócio jurídico. Assim como as leis, também são possíveis várias formas de interpretação do contrato, a saber: a interpretação literal, autêntica, judicial, declarativa, extensiva, restritiva, sistemática, histórica etc. [1]
Um dos tópicos do presente artigo consistiu em analisar como a lei pode explicitar algumas diretrizes que auxiliam a interpretar o contrato. Discorreu-se, igualmente, que no acordo de vontades estabelecido entre as partes contratantes, é possível que haja simetria entre aquilo que desejaram no momento da avença e as expectativas dos direitos e deveres assumidas. Nesse caso, não haverá necessidade de interpretação propriamente dita, pois o “sentido e o alcance das cláusulas contratuais coincidem plenamente, quer no processo interno de formação do acordo de vontades, quer no processo ulterior de exteriorização dessas vontades”[1]. Quando, por outro lado, não existir dita simetria, o processo hermenêutico impõe-se como etapa imprescindível para a aplicação do contrato, de maneira a afastar as dúvidas, omissões, obscuridades ou contradições existentes[1]. Existem, nesse compasso, algumas teorias que buscam solucionar a questão da discordância entre a vontade do agente (presente no momento da declaração) e a declaração propriamente dita.
Examinada a questão da interpretação contratual, passou-se a tratar da matéria relacionada ao motivo do negócio jurídico, diferenciando-o da causa e do objeto deste negócio. Tradicionalmente, entendeu-se que o motivo somente será relevante para o ordenamento jurídico quando deixar de constituir mera representação psíquica do agente para integrar o negócio jurídico. Em outras palavras, de acordo com a doutrina tradicional, o motivo deve assumir a condição de motivo determinante para que conquiste relevância jurídica
Apontou-se, porém, que existem determinadas circunstâncias não previstas pelos contratantes quando da perfectibilização do contrato, cuja existência se revelou imprescindível para a realização do contrato e para a determinação do teor das cláusulas contratuais. Essas circunstâncias, apesar de serem estranhas à causa, não consistem em meras representações mentais, mas são dotadas de relevante incidência sobre o equilíbrio econômico do contrato. Tais circunstâncias consistem justamente nos motivos do negócio jurídico.
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[1] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 305.
[2] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 305.
[3] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 420.
[4] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 306.
[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1975, v. I, p. 182-183.
[6] Art. 85: “nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”.
[7] LUCCA, Newton de. Normas de interpretação contratual no Brasil. In: Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região. N. 81, jan.fev./07, p. 40.
[8] MOREIRA ALVES, José Carlos. O novo código civil brasileiro: principais inovações na disciplina do negócio jurídico e suas bases romanísticas. In: Revista Jurídica n. 305, ano 51, mar./03, p. 11.
[9] ALVES, Jones F. Novo Código Civil Comentado. FIUZA, R. (coord.). 1. ed. 8ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 376.
[10] LUCCA, Newton de. Normas de interpretação contratual no Brasil. In: Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região. N. 81, jan.fev./07, p. 64.
[11] SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: O novo Código Civil e a Constituição. SARLET, I. (org.). 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 134.
[12] LUCCA, Newton de. Normas de interpretação contratual no Brasil. In: Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região. N. 81, jan.fev./07, p. 57.
[13] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 6 e pp. 33-35.
[14] LUCCA, Newton de. Normas de interpretação contratual no Brasil. In: Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região. N. 81, jan.fev./07, p. 31.
[15] LUCCA, Newton de. Normas de interpretação contratual no Brasil. In: Revista do Tribunal Regional Federal 3ª Região. N. 81, jan.fev./07, p. 31.
[16] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 312-313.
[17] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 314.
[18] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 308.
[19] ABREU FILHO, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 131.
[20] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 311.
[21] ANDRADE, M. Teoria geral da relação jurídica, op. cit., p. 312.
[22] AMARAL, Francisco. Direito civil, op. cit., p. 421.
[23] AMARAL, Francisco. Direito civil, op. cit., p. 421.
[24] THEODORO JUNIOR, H., op. cit., p. 25-26.
[25] THEODORO JUNIOR, H., op. cit., p. 26.
[26] A parte destacada em itálico corresponde à inovação determinada pelo Código de 2002.
[27] THEORODOR JUNIOR, H.. op. cit., p. 41-42.
[28] THEORODOR JUNIOR, H.. op. cit., p. 57.
[29] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 99.
[30] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 100.
[31] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 100.
[32] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 103.
[33] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 120.
[34] Para Antônio Junqueira de Azevedo, as circunstâncias negociais são “conjunto de circunstancias que formam uma espécie de esquema ou padrão cultural, que entra a fazer parte do negócio e faz com que a declaração seja vista socialmente como dirigida à criação de efeitos jurídicos (isto é, como ato produtivo de relações jurídicas) (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 122).
[35] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 121.
[36] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 42.
[37] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 7.
[38] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 45.
[39] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 8.
[40] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 42.
[41] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 44.
[42] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 54.
[43] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 52.
[44] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 15.
[45] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 54.
[46] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 64.
[47] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 19.
[48] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 36.
[49] IRTI, Natalino. Texto e contesto. Padova: Cedam, 1996, p. 36.
[50] THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 89.
[51] ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. V. II. Coimbra: Almedina, 1998, p. 344.
[52] ABREU FILHO, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 79.
[53] ABREU FILHO, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 79.
[54] BETTI, Emilio. Novíssimo Digesto Italiano. V. III, p. 35. Sobre outras obras de Emilio Betti, consultar Novíssimo Digesto Italiano, v. II, p. 383.
[55]THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao novo código civil: dos defeitos do negócio ao final do Livro III. Arts. 138 a 184. v. III, t. I. TEIXEIRA, S. F. (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 87.
[56] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 140.
[57] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 141.
[58] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 150.
[59] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 101.
[60] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 108/109. O autor retira essas ilustrações da obra de Ripert.
[61] NADER, Paulo. Curso de direito civil: parte geral. V. I. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 534.
[62] NADER, Paulo. Curso de direito civil: parte geral. V. I. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 534.
[63] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 104.
[64] THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 70.
[65] THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 90.
[66] THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 91.
[67] ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. V. II. Coimbra: Almedina, 1998, p. 347.
[68] ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. V. II. Coimbra: Almedina, 1998, p. 342.
[69] Clóvis do Couto e Silva, comentando sobre a boa-fé e os motivos, sublinha que, segundo o Código Civil, “os motivos só são relevantes quando expressos como razão determinante do ato ou sob a forma de condição” (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 39.
[70] BESSONE, Mario. Enciclopédia del diritto. V. XXXV, p. 330.
[71] BESSONE, Mario. Enciclopédia del diritto. V. XXXV, p. 326. Sobre a teoria, consultar também FIGUEIREDO, Alcio Manoel de Souza. Cláusula rebus sic stantibus: teoria da imprevisão. In: Revista dos Tribunais, ano. 95, v. 845, mar./06, p. 732-734.
[72] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. 3ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 128.
[73] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 34.
[74] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 103.
[75] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 135.
[76] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. V. V, T. I, Arts. 304-388. TEIXEIRA, S. (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 241.
[77] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 136.
[78] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 136.
[79] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. V. V, T. I, Arts. 304-388. TEIXEIRA, S. (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 240-241. Segundo a autora, o CDC adotou a teoria da quebra do negócio jurídico, ao passo que o novo Código Civil adotou a teoria da onerosidade excessiva. Porém, segundo Martins-Costa, a teoria da base deve servir para iluminar a aplicação do art. 317 do diploma civil.
[80] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 127.
[81] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 130.
Procuradora Federal. Mestre em Direito pela PUC/RS.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FACCHINI, Nicole Mazzoleni. Os motivos e a interpretação contratual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41106/os-motivos-e-a-interpretacao-contratual. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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