RESUMO: Analisa-se, neste trabalho, as teorias de interpretação da Constituição, bem como a relação existente entre o Poder Judiciário, a democracia e os direitos humanos, mormente as formas e os limites que recaem sobre este poder do Estado, quando ele se propõe a realizar, em controvérsias concretas, os direitos humanos e a democracia em sua plenitude. Ademais, faz-se um exame minucioso da democracia deliberativa, abordando seus compromissos, suas raízes históricas e seu apelo geral, além de sua influência no desenvolvimento dos princípios hermenêuticos aplicáveis ao direito.
Palavras-chaves: Poder Judiciário; direitos humanos; democracia.
1. INTRODUÇÃO:
Busca-se desvendar a melhor forma como deve ser interpretada a Constituição. Nesse diapasão, deve-se considerar as distribuições existentes para a sua análise, a natureza da razão no Direito Constitucional, qual a base para os princípios interpretativos - se eles decorrem das ideias da democracia deliberativa ou não, entre outros aspectos.
Questiona-se se o Poder Judiciário pode agir ativamente no afã de efetivar os direitos dos cidadãos, sem desrespeitar os princípios democráticos do Estado de Direito, bem como quais dos Poderes do Estado possui legitimidade para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
Estudar-se-á se o pensamento republicano de Cass Sustein está em consonância com o pensamento de Ronald Dworkin (liberalismo igualitário) quanto à atuação do Poder Judiciário como meio de transformação do status quo.
É impossível interpretar qualquer texto escrito sem recorrer a princípios externos a ele e à estrutura da Constituição, como ocorre ao utilizarmos as fontes de direito. O processo não é de dedução ou pura lógica, mas, ao contrário, constitui um método valioso de raciocínio com vistas a avaliar as questões humanas.
O compromisso com o entendimento original constitui um princípio substantivo: não há um entendimento pré-interpretativo das disposições constitucionais nem um tratamento diferenciado entre elas, como prega o formalismo. Os formalistas tentam fundamentar uma versão do positivismo, especialmente no concernente à distinção entre moral e direito.
Qualquer debate sobre princípios interpretativos deve ser sanado necessariamente por meio de uma sondagem sobre que tipo de sistema constitucional resultará de um conjunto de princípios e não de outro. Uma teoria de interpretação deve, portanto, ser também uma teoria da democracia constitucional.
Texto, estrutura e norma, fundações básicas das decisões constitucionais, são fundamentais para a interpretação, uma vez que o significado dessas fontes de direito é uma função de princípios interpretativos.
O desenvolvimento de princípios interpretativos visa garantir o funcionamento pleno de uma democracia deliberativa.
Em regra, o Judiciário deve deferência ao Legislativo, devendo deixar questões em aberto. Apenas em casos excepcionais o Judiciário deve interferir em políticas públicas, pois, em regra, o status quo deve sujeitar-se à democracia e, portanto, à deliberação democrática próprias dos processos legais. Desse modo, o Poder Judiciário possui um reduzido papel de transformador social, pois sobre ele recaem limites institucionais.
As Cortes devem adotar uma postura ativa somente para garantir o núcleo de compromissos democráticos, valorizando, portanto, a democracia deliberativa. Existem princípios interpretativos da Constituição que garantem a realização plena da democracia deliberativa: deliberação política; cidadania; acordos como ideal regulatório e; igualdade política.
O status quo deve se sujeitar, em regra, à democracia, não devendo ser isolado da deliberação democrática. Raramente, porém, os tribunais devem demolir as distribuições atuais de ofício, quando forem aprovadas pela política democrática.
Em suma, defende-se, neste artigo, que uma determinação especial da Constituição permite ou proíbe o que o governo faz, ao invés de usar uma doutrina da ação de estado que automaticamente trate o status quo como linha básica para uma distinção entre “ação” e “inação”.
2. LIMITES À ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO COMO FOMENTADOR DA DEMOCRACIA:
Sunstein combate o formalismo, defendido por Robert Bork no livro “The Tempting of America”, bem como a consequente neutralidade constitucional, apontando como seu defeito mais sério a falta de reconhecimento da necessidade de princípios interpretativos na exegese de qualquer texto legal, inclusive da Constituição, uma vez que não existe fato constitucional, a ser desvelado, antes da aplicação destes princípios. Para Bork, ao contrário, evitar juízos de valor é fundamental para o exercício do direito.
Sustein refuta também as teorias antiformalistas: o convencionalismo, que considera que o significado de um texto legal decorre simplesmente das pessoas com poder na comunidade jurídica, pois neste caso há um entendimento equivocado dos princípios interpretativos e; a indeterminação, que considera que a Constituição possui um significado aberto, porém não dispomos de critérios racionais para solucionar os problemas exegéticos. Ademais, tanto os formalistas, como os convencionalistas e os indeterministas refutam a ideia de que a razão ou a argumentação podem dirimir conflitos interpretativos, uma vez que os exegetas seriam incapazes de conciliar sobre quais princípios deveriam ser aplicados no caso concreto em observância ao significado da Constituição.
Qualquer sentença judicial merece ser acatada em razão de um conjunto complexo de motivos, e não apenas se estiver vinculada à Constituição, ou seja, uma estreita conexão com uma decisão prévia e específica da política não é condição necessária nem suficiente para a legitimidade da decisão judicial.
Para se alcançar o significado de um texto, é necessária uma interpretação com base em princípios externos ao texto, sobressaindo-se neste intuito os princípios substantivos em detrimento dos semânticos, uma vez que aqueles constituem justificativas morais e políticas para a decisão judicial, e não apenas interpretam as disposições constitucionais de maneira lexicográfica, como o faz os últimos.
Ao contrário de Bork que defende uma neutralidade interpretativa, desconsiderando os princípios exegéticos necessários para o reconhecimento dos argumentos substantivos do Direito Constitucional, Sunstein assevera que é a própria Constituição que especifica uma série de valores substantivos, não se restringindo à identificação de procedimentos justos, e que a democracia exige uma defesa em termos substanciais.
É preciso uma defesa total das opiniões substantivas juntamente com uma motivação das decisões implementadas pelo Judiciário em nome da Constituição. Desse modo, a Corte utiliza um conjunto de princípios interpretativos, sempre necessários para determinar o significado das disposições constitucionais, produzindo, assim, o atual conjunto de resultados jurisprudenciais.
The Tempting of America de Bork ilustra um “autoritarismo legal”, pois aborda o direito à revelia das razões e confere aos seus argumentos o tratamento de axiomas, considerando, ainda, que a legitimidade jurídica decorre da força ou de algum acordo prévio entre os detentores da autoridade política (prevalência das maiorias). Tal autoritarismo serviria de limite à autuação judicial, bem como para criar âncoras linguísticas: o texto reflete a distribuição autoritária de poder e os desvios dos textos que abandonam os intérpretes em um mundo de juízos de valor e preconceitos.
A visão positivista é incorreta ao afirmar que há uma simples questão de fato a ser descoberta em locais autorizados, enquanto que, para se fazer uma melhor interpretação, deve-se aliar a dimensão avaliativa à dimensão descritiva, sendo ambas igualmente importantes.
A adstrição ao texto disciplina e restringe a atuação judicial, no afã de evitar arbitrariedades; a estrutura constitucional permite a leitura sistêmica dos dispositivos constitucionais, o que permite uma melhor compreensão dos compromissos da Constituição e; a história do significado de determinado texto deve ser levada em conta pelo intérprete para a interpretação de um caso atual. Em suma, a melhor caracterização da história e do texto terá dimensões valorativas e será uma função de princípios interpretativos substantivos, e sempre haverá um compromisso de fidelidade ao texto, à estrutura e à história, que são disciplinadores da investigação.
Existem três alternativas principais à neutralidade do status quo: o abandono de todos os pontos de partida (visão holmesiana); a utilização das distribuições em termos diferentes dos tradicionais e; o desenvolvimento de pontos de partida para sua utilização no Direito Constitucional, por meio de uma abordagem distinta das distribuições existentes.
Existem algumas defesas da neutralidade do status quo: qualquer mudança do status quo pode causar consequências imprevistas, o que é refutado por Sunstein devido à abstração dessa afirmação; algumas determinações constitucionais são melhor interpretadas utilizando o status quo como sendo a linha básica para decidir os casos; um sistema que respeite as distribuições atuais criará muito mais estabilidade, segurança e independência, para os indivíduos e para a sociedade como um todo do que um sistema que não o faça; Edmund Burke defende o status quo e a prática atual por ver nelas uma singular complexidade e sabedoria, que não se sujeitam a críticas, porém, para Sunstein, o Burkenismo é demasiadamente amplo e geral para fornecer uma abordagem útil para o Direito Constitucional e nem sempre resultam de uma reacionalidade profunda e abalizada e; a neutralidade do status quo é decorrente de uma distribuição adequada da autoridade entre juízes e legisladores, que também é criticado por Sunstein por ser demasiadamente geral.
O ideal predominante de democracia deliberativa, que possui um forte apelo independente, relaciona-se de forma estreita com os anseios da Constituição, considerando o modo como eles foram desenvolvidos na história, e o esforço para a criação dos princípios interpretativos a partir desse ideal permite a continuidade com a estrutura e a história da Constituição.
Sunstein desenvolve princípios interpretativos da Constituição com vistas a garantir a realização da democracia deliberativa, dividindo-os em quatro: deliberação política; cidadania; acordos como ideal regulatório e; igualdade política.
O princípio da deliberação política diz que os resultados políticos devem ser produzidos a partir de um extenso processo de deliberação e de discussão, e não com base em interesses de grupos particulares; o princípio da cidadania busca a ampla participação dos cidadãos nos resultados políticos. Para tanto, é necessário que as pessoas possuam um amplo grau de segurança e independência em relação ao Estado; o acordo como um ideal regulatório é um princípio cujo significado se relaciona com a necessidade de existir um compromisso entre os cidadãos acerca de um ideal de desenvolvimento social, sendo a formação de tal consenso imprescindível para a realização do processo democrático; por fim, o princípio da igualdade política implica uma igualdade na influência política por parte de diferentes grupos sociais. Ressalve-se que igualdade política não significa igualdade econômica (igualitarismo), por não promover a liberdade e os incentivos para o trabalho produtivo, e por não reconhecer as realizações e a qualidade do trabalho.
Não obstante a garantia da igualdade política não corresponder à garantia da total igualdade econômica, é indiscutível que elas possuem algumas implicações entre si, o que possibilita o reconhecimento de três percepções sobre a igualdade.
A primeira concepção de igualdade diz respeito ao reconhecimento e proteção de um mínimo de direitos a todos os cidadãos livres (conhecido, no nosso ordenamento pátrio, como “mínimo existencial”), o que não significa, entretanto, igualitarismo, pois há uma variação nos padrões de vida. Esta igualdade relaciona-se com a garantia da cidadania, bem como com a democracia deliberativa.
A oposição ao sistema de castas consiste na outra forma de igualdade, que também, atrela-se aos princípios da democracia deliberativa, da cidadania e da igualdade política.
A terceira acepção de igualdade refere-se à igualdade aproximada de oportunidades, consistindo basicamente que, apesar de existir desigualdades substanciais entre as pessoas em decorrência das distintas constituições familiares no que concerne aos recursos financeiros e educação, o governo pode e deve fazer muita coisa para ajudar a sociedade, como a garantir o acesso a todos a uma digna educação. Neste ponto, Sunstein abre uma exceção ao seu pensamento de minimalismo judicial, ao defender que as Cortes não devem adotar uma postura de deferência ao Legislativo, quando a atuação ativa do Judiciário for necessária para a proteção procedimental da democracia deliberativa.
O governo autônomo depende da proteção dos direitos democráticos para existir, cabendo ao Constitucionalismo garantir as pré-condições para a democracia, restringindo, assim, o poder das maiorias em eliminar aquelas pré-condições.
A atuação limitada das Cortes (minimalismo judicial), defendida por Sunstein, possui três problemas relevantes: o problema da democracia, da cidadania e do comprometimento; o problema da eficácia e; o problema da adjudicação;
Assim, uma eventual dependência nas Cortes provoca um desvio de energia e dos recursos da política, reduzindo os meios de se alcançar a democracia, pois desconsidera as conquistas alcançadas pelos próprios cidadãos. Em outras palavras, o foco no Judiciário compromete os valores democráticos, na medida em que exclui a atuação dos cidadãos na formação da vontade política, retirando-lhes, dessa forma, os sentimentos de cidadania e de dedicação à comunidade.
O problema da eficácia, por sua vez, refere-se ao fato de que as decisões judiciais são incapazes de provocar mudanças na sociedade, possuindo, portanto, as Cortes uma fraca posição institucional. Na verdade, não há como se ter certeza de que é a atuação do Judiciário que ocasiona certas mudanças sociais, pois estas poderiam ocorrer mesmo sem aquela. Sustein ilustra tal opinião ao falar sobre o caso Brown v. Board of Education (1954), em que, apesar de a Suprema Corte ter declarado inconstitucional a segregação de alunos negros nas escolas norte-americanas, o que é apontado como uma grande contribuição para o fim do apartheid naquele país, muitas crianças negras ainda continuaram estudando em escolas em que não havia sido abolida referida segregação racial, mesmo após essa decisão.
Quanto ao problema do foco limitado da adjudicação, defende-se que as Cortes, ao se deter apenas aos aspectos intrínsecos do litígio a ser solucionado, não leva em consideração a questão em toda a sua complexidade e abrangência, o que implica a fraca posição institucional do Judiciário para fins de reforma social. Corrobora com tal entendimento o fato de o Judiciário atrelar-se basicamente à teoria da justiça compensatória, que se mostra precária para o alcance de uma reforma social, ao contrário do que ocorre com o Legislativo, que decorre de processos democráticos de formação de vontade política.
O Direito Constitucional, sob o ponto de vista do funcionamento do Judiciário, é uma releitura desconfortável da teoria substantiva e uma forma de refreamento institucional, sendo que os limites institucionais obrigam as Cortes a limitar o alcance do refreamento substantivo sobre as ações do governo.
Sunstein trata de algumas determinações que são melhor interpretadas como se incorporassem a neutralidade do status quo (por exemplo, a cláusula das desapropriações e dos contratos) e de outras determinações que rejeitam as distribuições existentes, como é o caso da cláusula de proteção, que consubstancia um ataque ao status quo, pois visa quebrar o sistema de subordinação dos negros. Defende, ainda, a existência de casos intermediários, exemplificando com a primeira emenda norte-americana.
Quanto às consequências sociais da rejeição à neutralidade do status quo, temos: a existência de um risco real de que um direito venha a prejudicar as próprias pessoas que os tribunais pretenderam proteger; a invalidação de medidas com efeitos discriminatórios pode provocar conseqüências sociais enormes; as conseqüências sociais são pertinentes para a perquirição constitucional, tendendo a ser maiores nos casos que outros ramos do governo apóiam a pratica atacada;
Por fim, ao tratar de um Constitucionalismo Pós-New Deal, refere-se aos casos envolvendo os efeitos discriminatórios produzidos pela cláusula de proteção e pelos direitos do bem-estar social. A Constituição impõe aqui um dever ininterrupto sobre os demais poderes do Estado. Neste ponto, Sunstein discorre sobre a ininterrupta legitimidade da revisão de racionalidade da legislação por parte dos tribunais para evitar a pressão de grupos de interesse sobre os legisladores (abordagem madisoniana) e sobre a questão da ação estatal concebida de novo, que diz respeito ao fato de que a Constituição dirige-se contra o governo, restringindo o seu comportamento.
Em síntese, o Judiciário, raramente, deve atuar de forma ativa em políticas aprovadas por processos democráticos, sendo que, nos casos que envolvem direitos centrais para o processo democrático cuja solução é estranha à política e interesses incompatíveis com uma justa deliberação em processos democráticos, as Cortes devem ter um papel agressivo. No primeiro caso, o Judiciário deve atuar ativamente, por exemplo, para proteger o direito de voto e de expressão, resguardando, assim, as condições de deliberação e vontade política para a cidadania. Já, no segundo caso, visa-se à proteção das minorias, como é o caso dos homossexuais, devendo as Cortes, em nome da democracia, decidir sobre as atitudes governamentais, uma vez que tais grupos ou interesses, por sua própria natureza, possuem dificuldades para se organizar, o que os tornam incompatíveis com uma justa deliberação democrática.
3. DEMOCRACIA DELIBERATIVA SEGUNDO SUNSTEIN:
Frederik Shauer trata de um tipo de formalismo distinto do abordado por Sunstein, compreendendo o formalismo como uma disposição de ser enquadrado pelo sentido literal dos termos legais, sob o argumento de que ele é necessário para limitar a discricionariedade judicial.
Entretanto, Sunstein exemplifica o problema da adjudicação em viabilizar uma reforma social em larga escala ao se referir a uma decisão judicial que pode ocasionar um desequilíbrio entre os recursos destinados a gastos sociais, por determinar a realocação de recursos de uma área para outra (no caso, de transporte escolar), sem considerar qual setor tem maior necessidade.
Ao se reportar aos princípios interpretativos da Constituição, Sunstein faz uma distinção entre princípios semânticos e princípios substantivos. Estes possuem como alicerce os princípios da democracia deliberativa, relacionando-se a uma justiça substantiva; aqueles se restringem à linguagem, ao sentido literal das palavras, sem adentrar, assim, no mérito da justiça presente no caso sob exame.
Dworkin trata os princípios interpretativos distintamente de Sunstein ao considerar que há um “ser” textual, apreendido aparentemente sem o auxílio da interpretação, e um “melhor” caráter normativo, a ser decidido como uma questão de filosofia política.
Sunstein distingue neutralidade interpretativa, própria da corrente formalista, em que se versa mais sobre linguagem do que sobre justiça e não tem fontes, de neutralidade substantiva (neutralidade do status quo), que trata do que o governo está autorizado a fazer e possui fontes.
Para ilustrar a ideia de democracia deliberativa, Sunstein reporta-se a três fontes no sistema norte-americano, quais sejam: republicanismo liberal; Guerra da Secessão e; reforma do sistema constitucional desencadeada pelo New Deal;
Ao falar da igualdade consistente na crença em ser livre da miséria, Sunstein observa que somente os Poderes Executivo e Legislativo possuem legitimidade para fixar o que é o mínimo de direitos que deve ser reconhecido e assegurados a todos os cidadãos (“mínimo existencial” no Direito Brasileiro), pois o Judiciário não possui legitimidade representativa e democrática para este fim.
Na abordagem dos princípios da democracia deliberativa, Sunstein afirma que estes podem ter diversos pontos de partida, como: o liberalismo de Mills e Rawls, em que se verifica uma compatibilidade com o utilitarismo e; o pragmatismo de John Dewey, que enfatizava a necessidade de desenvolver uma concepção de liberdade estabelecedora de pré-condições sociais para a deliberação política;
Aponta, ainda, que a democracia deliberativa desenvolve personalidades e características humanas salutares, incentivando a própria democracia e o desenvolvimento das características valiosas nos seres humanos.
Sunstein faz um paralelo entre o seu pensamento e o de Ronald Dworkin quanto à visão da democracia como incorporadora de um papel judicial passivo, desconstruindo a teoria de Dworkin, em relação ao seu entendimento do relevante papel do Judiciário num Estado Democrático de Direito, mormente refutando a opinião dworkiniana de que os juízes são teóricos políticos mais competentes do que os legisladores ou advogados em geral. Ademais, Sunstein critica Dworkin por este desconsiderar a independência do autogoverno representativo e que este parte do conjunto de direitos que as pessoas têm; por não apontar as deficiências do Judiciário, mas apenas dos demais poderes estatais e; por serem os princípios defendidos por Dworkin excessivamente fluidos.
4. CONCLUSÃO:
O republicano Sunstein defende, com contundentes argumentos, a atuação do Judiciário nas questões políticas da sociedade de forma acentuadamente subsidiária, ao argumento de que este poder estatal não possui legitimidade para representar o povo – verdadeiros atores sociais, segundo ele – nem está fincado em bases democráticas, sustentando, assim, a denominada teoria do minimalismo judicial.
Em sua obra, não obstante Sunstein reconhecer que o pensamento de Ronald Dworkin o influenciou, o mesmo tece críticas ao supracitado pensador, ícone do liberalismo igualitário, por taxar sua teoria de rejeição ao passivismo judicial nas democracias contemporâneas de superficial.
Vale ressaltar que tais pensadores são frequentemente colocados em lados antagônicos, especialmente pelo fato de Dworkin ser um fervoroso defensor do Poder Judiciário como um poder estratégico, capaz de assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos nas democracias contemporâneas, uma vez que concebe um modelo de Constituição como integridade, o que permite a revisão judicial com vistas a garantir os direitos fundamentais. Ou seja, ao contrário de Sunstein, Dworkin defende a atuação do Judiciário a fim de garantir o núcleo de direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos contidos na Constituição e as instituições democráticas, rejeitando a atuação do Judiciário apenas em argumentos de política, e não em argumentos jurídicos, de princípios.
Destoando do pensamento de Sunstein, tem-se também a posição de Rubio Llorente quanto à possibilidade de a jurisdição constitucional criar direito, inovando, assim, no ordenamento jurídico, sendo esta criação, distintamente daquela realizada livremente pelo legislador, não sujeita a considerações de oportunidade, mas sim vinculada, pois se refere, na verdade, a uma declaração de um direito preexistente.
Alexy, por sua vez, assevera que os juízes, ao julgar, devem se pautar pelos princípios contidos nas normas de direitos fundamentais, fazendo a ponderação dos princípios colidentes no caso concreto, entendimento que também vai de encontro ao de Sunstein.
Diversos doutrinadores pátrios igualmente divergem do pensamento de Sunstein, como Gisele Cittadino, que trata da importância do fortalecimento do Poder Judiciário e da maior mobilização política da sociedade para garantir os direitos positivados, consoante excerto abaixo transcrito:
O protagonismo do Poder Judiciário pode ser observado tanto nos Estados Unidos como na Europa, ainda que nos países da common law esse ativismo judicial seja mais favorecido pelo processo de criação jurisprudencial do direito. De qualquer forma, mesmo nos países de sistema continental, os textos constitucionais, ao incorporar princípios, viabilizam o espaço necessário para interpretações construtivistas, especialmente por parte da jurisdição constitucional, já sendo até mesmo possível falar em um ‘direito judicial’. (CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, Ativismo Judiciário e Democracia, 2009)
Neste sentido, também temos o ensinamento do célebre jurista Marinoni:
A lei, pois, perdeu seu posto de supremacia, passando a se subordinar à Constituição. De tudo isso, é natural a conclusão de que o juiz hodierno não mais se limita apenas a revelar a letra da lei. Ela, a lei, deve ser compreendida à luz dos princípios constitucionais, notadamente dos direitos fundamentais, circunstância que certamente autoriza o juiz a construir (criar) a norma jurídica concreta, vista não como texto legal, mas decorrente do significado obtido de sua interpretação. É o novo contorno da jurisdição, traçado em conformidade com os ideais de um positivismo crítico, cujo cerne não se restringe ao fato de as normas constitucionais serem o fundamento de todo o sistema jurídico, mas, também, na idéia central de que o texto da lei deve ser submetido aos princípios materiais de justiça e direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele a adequada conformação da lei. (MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado Contemporâneo. Estudos de Direito Processual Civil. Homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005 , p. 13-66)
Neste sentido, também opina Fredie Didier:
A jurisdição é função criativa: cria-se a norma jurídica do caso concreto, bem como se cria, muita vez, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto. (...) Em virtude do pós-positivismo que caracteriza o atual Estado constitucional, exige-se do juiz uma postura muito mais ativa, cumprindo-lhe compreender as particularidades do caso concreto e encontrar, na norma geral e abstrata, uma solução que esteja em conformidade com as disposições e princípios constitucionais, bem assim com os direitos fundamentais. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 7. ed. Salvador: JusPODIUM, 2007, v.1)
Corroborando com os autores já mencionados, o processualista gaúcho Carlos Alberto Alvaro de Oliveira introduziu na doutrina pátria o conceito do formalismo-valorativo, ao considerar que o órgão judicial deve possuir um papel ativo na direção do instrumento processual e na busca da verdade fática e sua valoração, ao mesmo tempo, em que deve intensificar os poderes das partes e elastecer suas garantias, de modo que o processo não seja mais coisa nem das partes nem do juiz, mas sim um valor da sociedade como um todo. Exemplo dessa linha de atuação é a relativização da coisa julgada cada vez mais frequente em nosso ordenamento jurídico, tendo inclusive julgados dos tribunais superiores permitido a rescisão de sentença por alteração a posteriori do entendimento jurisprudencial. Aduz, ainda, o supramencionado doutrinador que a equidade se presta a eliminar a distância entre a abstração da norma e a concretude do caso julgado, sendo o agir equitativo do órgão judicial conatural ao próprio ato de julgar, prescindindo inclusive de autorização legislativa.
Tratando especificamente da implementação de políticas públicas pela jurisdição, Eduardo Cambi prescreve:
Com o intuito de buscar a legitimação social do exercício do Poder Judiciário, há enorme margem de criatividade judicial. (...) Portanto, verifica-se que a jurisdição constitucional não é impotente frente às demais funções estatais (Executivo ou Legislativo), possuindo plenos poderes para a concretização dos direitos fundamentais. O Judiciário, primando pela legitimação do exercício da jurisdição, pode usar diversas técnicas para determinar o cumprimento de suas decisões (desde a formulação de prazos até, em caráter excepcional, a própria formulação da política pública), sendo certo que o direito fundamental não pode ser violado pela omissão ou pela ação inconstitucional dos governantes (legisladores ou administradores). (CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2010)
No que concerne à possibilidade de ingerência do Poder Judiciário em políticas públicas, o Superior tribunal de Justiça já decidiu favoravelmente, como ilustra o julgado colacionado a seguir:
ADMINISTRATIVO – CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS –POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – MANIFESTA NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL.
1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais.
2. Tratando-se de direito fundamental, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
3. In casu, não há empecilho jurídico para que a ação, que visa a assegurar o fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o município, tendo em vista a consolidada jurisprudência desta Corte, no sentido de que "o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.
(REsp 771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005).
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1136549 / RS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJ 21/06/2010)
No julgamento da ADPF 45 MC/DF, o Supremo Tribunal Federal também se posicionou em favor da intervenção judicial nas políticas públicas, tanto no caso de uma conduta estatal ativa como quando há uma inércia governamental, senão vejamos:
A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. (...) Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (ADPF MC/DF 45, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04/05/2004).
Diante de todas estas posições acima expostas, vê-se que o afastamento do formalismo excessivo, e não a eliminação do formalismo, atributo inerente e indissociável do direito processual, é imprescindível para o alcance dos princípios e valores existentes no âmbito processual considerados à luz da Constituição, o que resulta na teoria da “constitucionalização do processo”, defendida ardentemente pela doutrina brasileira hodierna. Neste sentido, o STJ julgou, dando prevalência à finalidade essencial do processo, independentemente do atendimento ao rigorismo formal, no RESP 299-SP, em que se afastou a decadência de ação rescisória, diante das circunstâncias do caso concreto, por ter se constatado que a intempestividade do recurso extraordinário fora declarada um decênio depois por decisão não unânime e de interpretação discutível.
Hoje, percebe-se, portanto, que, não obstante o princípio do dispositivo ou da demanda constituir um limite formal para a atuação do Judiciário, este poder não se encontra mais atrelado à lei como outrora, podendo atuar com certa liberdade no julgamento de um caso concreto, desde que sempre guiado pelos direitos fundamentais e princípios constitucionais. Neste ponto, a argumentação jurídica pautada nos princípios constitucionais é de fundamental importância, a fim de possibilitar um controle dos atos processuais pela sociedade, evitando, dessa forma, uma atuação judicial arbitrária.
Em relação à atuação do Judiciário no implemento de políticas públicas, deve-se abrir um parêntese para analisar os institutos do mínimo existencial e da reserva do possível, tendo Sunstein se pronunciado sobre o primeiro.
O órgão judicial, na aplicação do direito no caso concreto, deve considerar as necessidades básicas inerentes a todos os indivíduos e fazer valer os direitos destes, seja através de uma obrigação de fazer, da aplicação de multas, entre outras formas de coerção. No entanto, não pode o magistrado desconsiderar as possibilidades do caso concreto, pois de nada adianta determinar o cumprimento de uma política pública, se não houver, por exemplo, suficientes recursos financeiros capazes de subsidiá-la. Ressalte-se, ainda, que, na concretização das políticas públicas, tem-se percebido que a atuação do Judiciário tem tido um papel muito mais transformador dos aspectos sociais do que o Executivo e o Legislativo, principalmente por estes podere não possuírem formas de coerção efetivas em relação ao governo como o Judiciário possui, encontrando-se, portanto, aqueles poderes estatais, por vezes, de “mãos atadas”.
Entendo também que o Judiciário a priori não deve ser o principal agente transformador da sociedade, porém não se discute que sua atuação é imprescindível para a realização dos interesses e direitos fundamentais da comunidade. Na verdade, cabe ao Judiciário um controle, uma compatibilização das diretrizes políticas aos valores contemplados na Constituição, e não um esmagamento do Legislativo e do Executivo, poderes, por natureza, de índole democrática.
Em outras palavras, a implementação de políticas públicas pela via judicial deve ser realizada de forma complementar em relação às vias políticas, uma vez que estas são as possuidoras, por excelência, da capacidade de determinar os meios e os objetivos necessários para a realização dos interesses primordiais da sociedade.
Em suma, pode-se afirmar que somente o Judiciário pode garantir a concretização plena dos direitos fundamentais, bem como o respeito às instituições democráticas, sem que isso signifique superioridade do Judiciário em relação aos demais Poderes Estatais nem mesmo usurpação de suas funções, mas apenas que existe uma complementaridade entre estes Poderes, o que é salutar e até mesmo necessário para a efetivação dos fins sociais de um Estado Democrático de Direito.
5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
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OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no processo civil: Proposta de um formalismo-valorativo. São Paulo: Saraiva, 2010;
SUNSTEIN, Cass. A Constituição Parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. O papel do Poder Judiciário na concretização dos direitos humanos no estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41112/o-papel-do-poder-judiciario-na-concretizacao-dos-direitos-humanos-no-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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