Resumo: O presente artigo traz a lume as diferenças entre o fato gerador e a hipótese de incidência tributária, bem como analisa a possibilidade de tributação de atividades ilícitas.
Palavras chave: Fato gerador, hipótese de incidência, interpretação objetiva.
Sumário: 1. Introdução. 2. Considerações sobre a hipótese de incidência e o fato gerador da obrigação tributária. 3. O princípio da pecunia non olet e a interpretação objetiva do fato gerador. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O Direito Tributário é o ramo do Direito Público que disciplina, por meio de regras e princípios próprios, as relações jurídicas decorrentes da atividade financeira do Estado de captação de tributos dos particulares. Para isso, os entes políticos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), que são os detentores da competência constitucional tributária, devem editar leis próprias que criem as normas jurídicas tributárias.
A doutrina tributarista possui uma série de definições para o tributo, que também possui sede legal no artigo 3º, do Código Tributário Nacional:
Art. 3º tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Característica peculiar que difere o tributo da multa é que ele não é sanção pelo cometimento de ato ilícito, pois seu objeto é a arrecadação devido à prática de fatos econômicos descritos na norma jurídica.
Por força do princípio da legalidade, o tributo deve ser instituído ou majorado por meio de lei, que, conforme o art. 97, do Código Tributário Nacional, deve definir o seu fato gerador, a base de cálculo, as alíquotas, o sujeito passivo, além das sanções em razão do descumprimento de suas prescrições, in verbis:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
§ 1º Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.
§ 2º Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.
2. Considerações sobre a hipótese de incidência e o fato gerador da obrigação tributária
A hipótese de incidência é o elemento econômico do mundo fenomênico (ser) previsto abstratamente na norma jurídica tributária (mundo do dever-ser), capaz de ensejar o surgimento da relação jurídico-tributária. Por isso, a hipótese de incidência é a descrição legal e abstrata dos fatos materiais eleitos pelo legislador para figurar na norma jurídica tributária.
Por outro lado, o fato gerador é a ocorrência, no mundo fenomênico, do fato econômico abstratamente previsto na norma tributária, ou seja, é a realização fática da hipótese de incidência. Desse modo, o fato gerador é a concretização, no mundo do ser, da hipótese de incidência prevista de forma abstrata na norma jurídica, representando o plano fático do fenômeno da subsunção tributária.
Nessa alheta, é o magistério de Eduardo de Moraes Sabbag[1]:
Como se notou, “hipótese de incidência” é a situação descrita em lei, recortada pelo legislador entre inúmeros fatos do mundo fenomênico, a qual, uma vez concretizada no fato gerador, enseja o surgimento da obrigação principal. A substancial diferença reside em que, enquanto aquela é a “descrição legal de um fato (...) a descrição da hipótese em que o tributo é devido”, esta se materializa com a efetiva ocorrência do fato legalmente previsto.
Portanto, a hipótese de incidência e o fato gerador não possuem o mesmo significado, porque aquela é o critério material que descreve, de forma abstrata, na norma jurídica tributária, um fato jurídico econômico, ao passo que este é a materialização daquela no mundo concreto, que oportuniza o surgimento da obrigação tributária.
É digna de críticas a redação do artigo 114, do Código Tributário Nacional (CTN), ao estabelecer que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Ora, o legislador pecou e confundiu os conceitos ao elaborar o dispositivo em epígrafe, visto que fato é a ocorrência de alguma coisa no mundo concreto, sendo a situação definida em lei apenas uma hipótese a ser realizada.
Por oportuno, seguem os ensinamentos de Ricardo Alexandre[2]:
O CTN, em seu art. 114, afirma que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Ora, se apenas está definida em lei, a situação não poderia ser denominada de “fato”. Por isso, a boa doutrina afirma que a previsão abstrata deve ser denominada “hipótese”, pois se refere a algo que pode vir a ocorrer no mundo, tendo como consequência a incidência tributária. Daí a famosa terminologia “hipótese de incidência”.
Assim, a hipótese de incidência da obrigação principal, que, uma vez verificada sua ocorrência no mundo material, enseja o pagamento de tributos e da penalidade pecuniária (obrigação de dar dinheiro ao Estado) é essa prevista no artigo 114, do Código Tributário Nacional, como situação necessária e suficiente.
Por outro lado, a norma do artigo 115, do Código Tributário Nacional, prescreve que a hipótese de incidência da obrigação acessória é qualquer situação que, de acordo com a lei, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal, ou seja, tudo aquilo que consta da norma jurídica tributária e que não seja enquadrado como obrigação principal será acessória (obrigação de fazer e não fazer).
3. O princípio da pecunia non olet e a interpretação objetiva do fato gerador
O mero acontecimento do fato gerador é suficiente para ensejar o fenômeno da incidência tributária, porquanto o tributo é universalmente exigível, pouco importando a natureza da atividade econômica subjacente. Ora, para efeito de tributação, apenas é relevante a ocorrência do fato econômico descrito na hipótese de incidência, sendo impertinente a análise da natureza do ato praticado.
O art. 118, do Código Tributário Nacional, prescreve que não possui valor para a averiguação do fato gerador, a validade jurídica dos atos praticados, a natureza do objeto e os seus efeitos, in verbis:
Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:
I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;
II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.
O dispositivo legal epigrafado é a sedimentação do princípio da interpretação objetiva do fato gerador, que deve ser examinado de maneira direta e concreta, sem levar em consideração fatores extrínsecos ao fato econômico descrito na norma jurídica tributária, em perfeito respeito à isonomia tributária.
O princípio da isonomia tributária, diretamente relacionado com os princípios da capacidade contributiva e da universalidade da tributação, encontra amparo na máxima latina da pecunia non olet[3], isto é, o tributo não cheira, o que faz com que todos os indivíduos que realizem o fato gerador, independentemente de suas características externas, tornem-se sujeitos passivos da obrigação tributária.
Por isso, se o contribuinte pratica atividade ilícita, mas com cunho econômico descrito na norma jurídica tributária, terá realizado o fato gerador e estará sujeito aos efeitos da incidência tributária, devendo, por conseguinte, recolher tributos, pois os aspectos extrínsecos ao fato imponível não possuem relevância jurídica. Sobre o tema, destaca-se o entendimento de Ricardo Alexandre[4]:
Aqui, uma importantíssima observação. O dever de pagar tributo – conforme será detalhado em momento oportuno – surge com a ocorrência, no mundo concreto, de uma hipótese abstratamente prevista em lei (o fato gerador). Portanto, se alguém obtém disponibilidade econômica ou jurídica de rendimentos, passa a ser devedor do imposto de renda (CTN, art. 43), mesmo se esses rendimentos forem oriundos de um ato ilícito, ou até criminoso, como a corrupção, o tráfico ilícito de entorpecentes etc.
A justificativa para o entendimento é que nesses casos não se está punindo o ato com o tributo (a punição ocorrerá na esfera penal e, se for o caso, na administrativa e civil). A cobrança ocorre porque o fato gerador (obtenção de rendimentos) aconteceu e deve ser interpretado abstraindo-se da validade jurídica dos atos praticados (CTN, art. 118, I).
Ainda, ressalta-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal[5]:
Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: "non olet".
Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação.
A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso – antes de ser corolário do princípio da moralidade – constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética.
No mesmo sentido, situa-se o Superior Tribunal de Justiça[6]:
RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. O princípio nemo tenetur se detegere refere-se à garantia da não auto-incriminação, segundo o qual ninguém pode ser forçado, por qualquer autoridade ou particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração que o incrimine, direta ou indiretamente. Trata-se de princípio de caráter processual penal, já que intimamente ligado à produção de provas incriminadoras. Já o princípio pecunia non olet carrega consigo a idéia de igualdade de tratamento entre as pessoas que tenham capacidade contributiva semelhante, independentemente da maneira utilizada para alcançar essa disponibilidade econômica, isto é, não importa se os rendimentos tributáveis tenham ou não fonte lícita. Cuida-se de princípio de direito tributário. Tais princípios não se contrapõem, seja pela questão topográfica em que se encontram no direito, seja porque um não limita ou impossibilita a aplicação do outro, até mesmo porque o princípio pecunia non olet despreza a origem da fonte econômica tributável - se lícita ou ilícita. 2. A necessidade de se recolher impostos surge com o fato de se auferir renda, pouco importando se essa renda é lícita ou ilícita, não ensejando, por isso mesmo, qualquer ingerência no princípio da não auto-incriminação, do contrário dificilmente se vislumbraria a prática de crimes contra a ordem tributária, que geralmente estão ligados ao cometimento de outros delitos, como por exemplo, contra o sistema financeiro nacional. 3. Recurso especial desprovido.
Destarte, desde que haja relevância econômica e exista tipificação na norma jurídica tributária, deve haver a tributação de atividades, atos e eventos com objeto ou efeitos ilícitos.
4. Conclusões
A despeito da imprecisão legislativa do artigo 114, do Código Tributário Nacional, a doutrina é esclarecedora no sentido de diferenciar a hipótese de incidência do fato gerador, sendo aquela a descrição abstrata e apriorística, na norma jurídica tributária, dos fatos econômicos que implicam o fenômeno da tributação, enquanto este é a ocorrência no mundo concreto da situação abstrata prevista na norma.
Como o fato gerador deve ser interpretado de forma objetiva, não possui relevância para o seu acontecimento a validade jurídica dos atos praticados, a natureza do objeto e os seus efeitos, motivo pelo qual é possível a tributação de atividades ilícitas, tal qual restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 77.530/RS, no qual foi admitida a tributação da renda decorrente da exploração do tráfico ilícito de substâncias entorpecentes.
5. Referências bibliográficas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2008.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.208.583/ES, Relatora Laurita Vaz. Disponível em: < http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23027980/recurso-especial-resp-1208583-es-2010-0162642-0-stj/inteiro-teor-23027981>. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 77.530/RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc TP=AC&docID=77385>. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2004l
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
SABBAG, Eduardo de Morais. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] Manual de direito tributário. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 676.
[2] Direito tributário esquematizado. 2. Ed. São Paulo: Método, 2008, p. 276/277.
[3] Referida máxima tem origem no diálogo entre Vespasiano e seu filho Tito, que, questionando o genitor sobre o motivo da tributação dos usuários de banheiros públicos, na Roma Antiga, foi convencido pelo pai que a moeda não exalava odor como os mictórios e, assim, não importavam os aspectos extrínsecos do fato gerador.
[4] Direito tributário esquematizado. 2. Ed. São Paulo: Método, 2008, p.37.
[5] Habeas corpus nº 77.530/RS, relator Ministro Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, julgado em 25.08.1998.
[6] Recurso Especial nº 1.208.583, relatora Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 04.12.2012.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. Especializando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Luís Henrique Assis. O fato gerador, a hipótese de incidência tributária e o princípio da pecunia non olet Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41124/o-fato-gerador-a-hipotese-de-incidencia-tributaria-e-o-principio-da-pecunia-non-olet. Acesso em: 22 nov 2024.
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