RESUMO: Os direitos culturais e étnicos consistem em direitos fundamentais e, por conseguinte, possuem aplicabilidade imediata, mas a sua eficácia depende da maneira como esses direitos são compreendidos. Defende-se neste trabalho que os aspectos culturais de cada comunidade devem ser respeitados e que seus indivíduos devem se sentir ouvidos pelo legislador. Não se pode mais tratar os direitos dos indivíduos como abstratos e preexistentes, pois a sociedade encontra-se em constante mutação e o sujeito de direito deve ser enxergado em sua inteireza, pois ele possui cara, corpo e alma. Assim, os direitos culturais e étnicos devem ser inteligíveis pela sociedade, pelos operadores de direito e pelo legislador para terem efetividade.
Palavras-chave: direitos culturais; direitos étnicos; direito fundamental; inteligibilidade.
1. INTRODUÇÃO:
É inconteste, hoje, que o Estado Nacional é pluriétnico e multicultural, em sua elaboração e aplicação, tendo a Constituição Federal de 1988 papel fundamental na consolidação dessa compreensão da sociedade.
Vários documentos internacionais de que o Brasil é signatário também reforçam esta ideia, destacando-se: a Convenção 169, da OIT; a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, e; a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Dessa forma, a defesa da diversidade cultural passa a ser, para os Estados Nacionais, um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana, como veremos a seguir.
2. A IDENTIDADE MULTIFACETADA DOS INDIVÍDUOS:
A mudança de perspectiva no campo jurídico foi antecedida por uma relação circular entre movimentos reivindicatórios, elaboração teórica e alterações legislativas, e os marcos dessa mudança foram o Iluminismo e a Revolução Francesa.
Com Kant, inaugurou-se a filosofia do sujeito transcendental, sendo inerente à dinâmica dessa razão a identidade, que possibilita a unidade e as grandes sínteses homogeneizadoras. Também resultou desse idealismo a indistinção entre alter e ego, o que foi observado por Gadamer. O racionalismo condutor kantiano inspirou ainda o Estado-nação, um dos parâmetros do Estado Liberal, consubstanciado em uma identidade cultural e integradora.
Outrossim, a solidificação do poder da soberania robusteceu a identidade da nação e a do povo.
O Direito, neste contexto, é entendido como uma qualidade moral que compete à pessoa, onde o indivíduo ocupa o lugar primeiro e central e é um ser abstrato.
Todavia esse pensamento caracterizado pela unidade caiu por terra, tendo como principais questionadores Nietzsche, Foulcaut, Heidegger, Adorno e Derrida, que deram ênfase ao fragmento em detrimento da totalização, e ao descontínuo e ao múltiplo contra as grandes narrativas e sínteses.
Também vem à luz a falácia da ideia de nação como entidade social originária (Hobsbawm).
O direito deixou de ser cego à qualidade e às competências das pessoas, ou seja, o sujeito de direito, aparentemente intercambiável e abstrato, tinha, na verdade, rosto, corpo e alma.
Neste diapasão, destaca-se também que a linguagem é convencional e diferente nas distintas culturas, pois o significado de uma palavra decorre do uso que dela se faz.
O quadro atual é de um Direito que, de um lado, abandona a visão atomista do indivíduo e o reconhece como portador de identidades complexas e multifacetadas e, de outro, recupera o espaço comum onde são vividas as suas relações definitórias mais importantes.
Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 passa a falar não só em direitos coletivos, mas também em espaços de pertencimento, distintamente da configuração da propriedade privada.
3. CONCLUSÃO:
A Constituição Federal de 1988, em consonância com o direito internacional, rompe a presunção positivista de um mundo preexistente e fixo, assumindo que fazer, criar e viver dão-se de forma diferente em cada cultura, e que a compreensão de mundo depende da linguagem do grupo.
Nesse cenário, a Constituição pátria reconhece expressamente direitos específicos a todos os grupos que tenham formas próprias de expressão e de viver, criar e fazer. Inspirado nessa compreensão, surgiu o Decreto 6.040/2007, que instituiu a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais.
À vista dos novos paradigmas constitucionais, apresentam-se, contudo, alguns desafios.
O primeiro desafio refere-se à aplicação do direito infraconstitucional a esses grupos e indivíduos, tendo em vista que há previsão no direito internacional a despeito da ausência de legiferação no ordenamento jurídico pátrio. Contudo, em virtude dos direitos culturais e étnicos serem indissociáveis da dignidade da pessoa humana, eles têm status de direito fundamental e aplicação imediata, por conseguinte. Assim, é preciso que se considere todo o acervo jurídico existente para assegurar o exercício pleno e imediato de direitos étnicos e culturais; há que se eleger o instrumento de mais ampla e rápida eficácia e adaptá-lo às especificidades desses direitos; e a aplicação do direito nacional requer leitura que leve em conta as suas diferenças.
O segundo desafio diz respeito à aplicação do direito preexistente. Aqui é necessário, primeiramente, desfazer a noção de o intérprete está habilitado, por si só, a decifrar a norma em abstrato, haja vista que norma e prática se interpelam o tempo todo. Depois, é preciso, por mandamento constitucional, reconhecer ao grupo e aos seus membros a sua liberdade expressiva.
Em suma, apenas após compreendido o contexto de uso revelado pelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da norma, será possível, ao aplicador do direito, decidir adequadamente como o direito deve ser aplicado no caso concreto.
5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
Decreto 6.040/2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>. Acesso em: 24 de outubro de 2014.
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