Boa parte dos problemas gerados no meio jurídico tem sua origem ligada aos conceitos ora tratados – hermenêutica e pré-compreensão. Sua influência, no entanto, não é somente de cunho negativo: é por eles que o discurso jurídico ganha formas para se adaptar aos anseios da respectiva sociedade.
A própria ciência do direito em geral tem se demonstrado reflexão da experiência político-social do Estado[1], que forma a bagagem exigida para correta interpretação de seu ordenamento.
Essa bagagem é conquistada aos poucos: nasce, geralmente, de situações extremas e é cunhada ao longo de anos de história.
É o que defende uma das reflexões do italiano Gustavo Zagrebelsky ao reconhecer que o direito constitucional tem renunciado a uma de suas principais tarefas, qual seja, a de intentar sínteses histórico-culturais da época constitucional presente, para se configurar como uma contínua busca de meios emergenciais, perenemente retardatários e necessariamente instrumentalizáveis do ponto de vista político, contentando-se com o fato de ser um subproduto da história e da política.[2]
Segundo afirma, as constituições do nosso tempo se direcionam ao futuro com base no patrimônio de experiência histórico-constitucional que querem enriquecer. Ou melhor, os valores do passado orientam a busca do futuro, assim como, as exigências do futuro obrigam a uma contínua pontualização do patrimônio constitucional que vem do passado.[3]
Como dito, é desse patrimônio histórico-constitucional que devemos retirar as fontes para pré-compreender suas normas. Tal procedimento, no entanto, não está livre de influências subjetivas do intérprete. Pelo contrário: sua história pessoal, suas crenças e até mesmo seus objetivos integram o ato de interpretar como um todo.
Explica-se.
Já de sua essência, a hermenêutica não é tratada como uma “ciência” de resultados exatos ou mesmo previsíveis a priori. Da compreensão até a efetiva aplicação de determinada norma, há um processo complexo que envolve variantes diversas até seu grandfinale: a criação de uma norma para o caso concreto, ou seja, uma norma de decisão.
Essa diferença é tratada pela filosofia da interpretação que, sem abandonar os importantes[4] dogmas clássicos da hermenêutica jurídica, busca não só a interpretação de textos. Vai além e cria normas concretas.
É o que diz Eros Roberto Grau ao reconhecer que o intérprete “não é um criador exnihilo; ele produz a norma sim, mas não no sentido de fabricá-la, porém no de reproduzi-la. O produto da interpretação é a norma. Mas ela já se encontra potencialmente, no invólucro do texto normativo”.[5]
Em outra passagem brilhante enquanto foi Ministro do Supremo Tribunal Federal, assenta o Autor:
Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totalidade. Não somos meros leitores de seus textos – para o que nos bastaria a alfabetização – mas magistrados que produzem normas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento.[6]
Avançando ao estudo da mencionada filosofia da interpretação, dois autores não relacionados ao meio jurídico é que nos dão a base teórica para tanto:Martin Heidegger ("Ser e Tempo”)[7] e de Hans-Georg Gadamer (“Verdade e Método”)[8]. Como afirma Lenio Luiz Streck:
Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e de Gadamer. Com efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a idéia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao dizer que ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a idéia de Heidegger da linguagem como casa do ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí que, para Gadamer, ter um mundo é ter uma linguagem. As palavras são especulativas, e toda interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracterizaria o dogma. A hermenêutica, desse modo, é universal, pertence ao ser da filosofia, pois, como assinala Palmer, a concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobante como a razão e a linguagem. [9]
Da obra de Gadamer extraímos o que chamou de círculo hermenêutico: o ato de interpretar se inicia com conceito prévios carregados pelo intérprete ao longo de sua história, que são substituídos paulatinamente por conceitos diversos com maior grau de adequação.
Nas palavras do Autor: “uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem neutralidade com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes”.[10]
Mais uma vez é Eros Roberto Grau quem nos esclarece com exatidão a ideia: “aparecendo no texto um primeiro sentido, o intérprete imediatamente projeta um sentido do todo; este sentido manifesta-se apenas porque aquele que lê o texto o faz desde determinadas expectativas [..] a compreensão do texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que deve ir sendo constantemente revisado”. [11]
E arremata:
Por isso é importante que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, desde as opiniões prévias que em si subjazem, porém examine tais opiniões no que respeita à sua legitimação, isto é, quanto à sua origem e validade. [..] Heidegger, de quem Gadamer toma a concepção de círculo hermenêutico, descreve-o de forma tal que a compreensão do texto se encontra continuamente determinada pelo momento antecipatório da pré-compreensão – o círculo do todo e as partes não se anulam na compreensão total, porém nela alcançam sua realização mais autêntica. [12]
Exemplificado todo o raciocínio, o alemão Arthur Kaufmanntraz o seguinte:
O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segundo o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porventura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma ‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos problemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’ do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado, posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia, não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso concreto. [13]
O fato de trazer consigo, no entanto, elementos subjetivos faz com que o círculo hermenêutico englobe a pré-compreensãoe os pré-objetivos do intérprete.
É daí que nascem as legítimas discussões sobre determinado texto normativo que, de um modo geral, engrandecem o sistema e a ciência jurídica como um todo. O conceito de segurado especial (Lei nº 8.213/91, art. 11, VII), por exemplo, por mais delimitado que seja na respectiva legislação, pode tomar caminhos distintos em uma discussão formada por um juiz que foi criado no meio rural e um agente do INSS que nunca visitou um imóvel rural.
O grande problema, porém, é que,por abarcar os pré-objetivos do intérprete, o círculo hermenêutico viabiliza interpretações ilegítimas. É o que se daria, por exemplo, na apuração e punição de determinada infração administrativa que envolva conceito jurídico indeterminado feito por um fiscal que possui desavença pessoal com o infrator. Por mais probo que seja, ainda que subconscientemente, sua interpretação será diferente de uma autuação corriqueira.
Aqui vale o registro final: o círculo hermenêutico não legitima ou fomenta interpretações ilegítimas. O ato de interpretar e seus resultados dependem substancialmente da conduta adotada pelo intérprete e só. A teoria de Gadamernão foge de sua proposta essencialmente cientifica: explicar e expor determinado comportamento.
E isso está bem claro em sua obra ao reconhecer que o círculo não é formal, “não é nem objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como a interpretação do movimento da tradição e do movimento do intérprete”.[14]
Bibliografia
Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método. Vol. I, Petrópolis: Vozes, 1997.
Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método. Vol. II, Petrópolis: Vozes, 2002.
Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
Guerra Filho, Willis Santiago. Teoria da Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2001.
Heidegger, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
Kaufmann, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: ______.; Hassemer, Winfried. (orgs.).Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2002.
Silva, Virgílio Afonso da.Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: ______. (org.), Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.
Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005.
[1]Guerra Filho,Willis Santiago.Teoria da Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 99.
[2]Zagrebelsky, Gustavo.Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005, p. 27-8.
[3]Zagrebelsky, Gustavo.Historia y Constitución, p. 91.
[4] V. Silva, Virgílio Afonso da.Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: ______. (org.), Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116.
[5]Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 28.
[6] STF, Reclamação nº 3.034-2/PB AgR, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, voto do Min. Eros Grau.
[7] Heidegger, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
[8]Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método. Vol. I, Petrópolis: Vozes, 1997; Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método. Vol. II, Petrópolis: Vozes, 2002.
[9]Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 165-6.
[10]Gadamer, Hans-Georg.Verdade e método. Vol. I, Petrópolis: Vozes, 1997, p. 405
[11]Grau, Eros Roberto. Op. cit., p. 109.
[12]Grau, Eros Roberto. Op. cit., p. 109-10.
[13]Kaufmann, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: ______.; Hassemer, Winfried. (orgs.).Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2002, p. 190-1.
[14]Gadamer, Hans-Georg.Op. cit.,p. 439.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Hermenêutica e pré-compreensão: o círculo hermenêutico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41608/hermeneutica-e-pre-compreensao-o-circulo-hermeneutico. Acesso em: 22 nov 2024.
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