Introdução
Uma transformação radical vem se efetuando nos sistemas de desigualdade em curso nas sociedades avançadas: a emergência do conhecimento como princípio de estratificação. Não há nada na história dos países industrializados da Europa Ocidental e da América do Norte que se assemelhe à experiência que viveram entre 1950 e 1985. Embora a pobreza absoluta persistisse até nos países mais ricos, o padrão de vida material da maioria da população havia melhorado de modo ininterrupto. Contudo nenhuma dessas importantes melhorias refletiu-se nas concepções prevalecentes sobre desigualdade social. Segundo, o aumento geral da riqueza privada faz com que a riqueza pública se torne cada vez menos possível.
Desigualdade social e conhecimento
Justamente porque a parte essencial da educação só pode ser, em última análise, adquirida pela atividade individual é que ela dá origem à mais tangível e, portanto, mais inatingível aristocracia, a uma distinção entre alto e baixo que não pode ser abolida nem por um decreto nem por uma revolução. Trata-se da mais injusta forma de desigualdade social existente na sociedade moderna. Embora continue sendo em geral invisível, pelo menos ao olhar profissional, sua importância pode ter se multiplicado desde a virada do século e, por conseguinte, a maior parte das teorias sobre a desigualdade social carece hoje de uma correspondência com as condições sociais às quais pretendem ser aplicáveis.
A questão não é de um crescimento permanente do nível geral de afluência e riqueza na sociedade moderna. A emancipação de amplos segmentos das populações de uma condição de vulnerabilidade e subordinação econômica proporciona as bases materiais para novas formas de desigualdade.
A maior parte de nossas teorias e de nossas pesquisas sobre estratificação e mobilidade social está intimamente associada a uma forma particular de sociedade, a sociedade industrial. À medida que a sociedade moderna, do modo como conhecemos, começa a sofrer uma profunda transformação, as características sociais que convencionalmente serviram de base para a teoria da desigualdade também começam a perder significação. A conseqüência de tudo isso é que, conforme a sociedade industrial vai sendo substituída pela sociedade do conhecimento, torna-se necessário empreender um novo tipo de análise dos fundamentos materiais e cognitivos das novas formas de desigualdade social.
Sociedades industriais e desigualdades sociais
Os diversos estudos teóricos contemporâneos relacionados com a desigualdade social são, antes de mais nada, reflexos das formas de desigualdade social existentes nas sociedades industriais. Tanto as teorias clássicas da desigualdade como suas derivações mais modernas desenvolvem temas que manifestam um interesse comum na natureza vertical dos estratos ou classes sociais e na relação de indivíduos ou grupos com distinções de propriedade e seu preço. A conseqüência da premissa básica das teorias da desigualdade nas sociedades industriais é que a origem e a legitimidade das hierarquias sociais são sempre referidas ao processo produtivo e sua organização, ou seja, da relação do indivíduo com o trabalho. A identidade dos indivíduos é medida por sua relação com o processo de trabalho. Isso leva os cientistas sociais a pensar, que as hierarquias sociais ainda são predominantemente constituídas mais pela classe do que por outras formas de clivagem sociais, independentemente dos fenômenos em exame serem de natureza estrutural ou cultural. É interessante levantar a questão se existe uma forma de trabalho típica da sociedade industrial ou se a forma de trabalho e sua organização social passam por transformações no curso do desenvolvimento das forças produtivas na sociedade industrial, e ainda se e como tais modificações poderiam afetar as formas de desigualdade.
Admite-se que na sociedade industrial a importância do trabalho assegura que atributos adquiridos substituam os atributos imputados. Entretanto os indivíduos ativos no processo de trabalho na sociedade industrial moderna constituem uma minoria no conjunto da população. Apesar disso, o status do que não estão ativos continua a ser visto como dependente do processo produtivo.
Nas chamadas teorias multidimensionais da estratificação as dimensões estratificadoras dos indivíduos em um sentido vertical, tais como educação, renda e prestígio ocupacional são tomadas como derivações do atributo primário, que é a relação da pessoa com seu trabalho. Teoricamente o processo de modernização da sociedade industrial deveria gerar um sistema de desigualdade social menos hierárquico. Contudo isso não passou de mera teoria e a falta de interesse geral nas questões da desigualdade não era de maneira alguma conseqüência de um triunfo da igualdade na sociedade industrial. Os resultados crescentes do processo produtivo compensavam a falta de uma redistribuição significativa dos custos e das recompensas sociais o que explicava o sentimento geral de satisfação dominante na época, ainda que, em certos aspectos, tenha-se verificado um evidente nivelamento – por exemplo, no que diz respeito à expectativa de vida, ao acesso a serviços de saúde e a certos dispositivos de previdência social.
A ênfase nas dimensões de classe e status restringiu a sensibilidade e a visão dos pesquisadores para possíveis mudanças na natureza da sociedade industrial, como conseqüência de transformações lineares no conjunto da estrutura de desigualdade. Algumas análises têm chamado a atenção para novos atributos da desigualdade como, por exemplo, diferenças no acesso à seguridade social, nas condições de trabalho, nos recursos de lazer, ou a desigualdade de tratamento devido a características imputadas que indicam um deslocamento da centralidade da ocupação como princípio primordial de estratificação.
Hoje a questão importante é saber que novas dimensões de desigualdade estão surgindo na sociedade contemporânea. Dimensões que devem ser levadas em conta e talvez mesmo substituir as dimensões típicas das sociedades industriais. Entre essas novas dimensões, a principal e talvez seja a ascensão do “conhecimento” como princípio de estratificação, como condição de acesso a uma posição social elevada.
Sociedade do conhecimento e desigualdades sociais – visão acerca dos direitos individuais e coletivos
O conhecimento não é um fenômeno novo para a análise da natureza da desigualdade. Ao contrário, como uma grande variedade de competências culturais e aptidões, o conhecimento historicamente teve sempre um papel importante na determinação de certos aspectos da desigualdade e em sua avaliação por parte da sociedade. É importante demonstrar de que forma o conhecimento pode substituir os padrões que há muito vem sendo utilizado como determinantes de desigualdade social na sociedade industrial. Pelo menos dois grupos de mudanças societárias podem ser usados como provas da emergência do conhecimento como princípio de estratificação. Nota-se um relativo declínio da importância mediata e imediata da economia para os indivíduos e as famílias, ou seja, tem ocorrido uma diminuição da subordinação material direta dos indivíduos e das famílias a atividades centradas na economia de mercado, principalmente em relação aos seus papéis ocupacionais. O que se tem reduzido é a força do vínculo de dependência material de muitos atores unicamente com seu status ocupacional. Por outro lado, o que vem aumentando é sua relativa emancipação material do mercado de trabalho, pelo acúmulo de riqueza pessoal e familiar.
Outro aspecto importante da transformação da base da desigualdade social na sociedade moderna é o estabelecimento e garantia de um pacote de direitos de cidadania, especialmente de um piso de bem-estar social abaixo do qual não se aceita que pessoa alguma venha cair.
A estrutura de direitos coletivos ou agregados nas sociedades modernas depende, é claro, da disponibilidade de emprego remunerado, e a quantidade de trabalho agregado que será disponível é crucial para a sustentação desses direitos no futuro. A derradeira grande mudança estrutural que acompanha e alimenta o decréscimo da importância da economia é a redução do grau em que a sociedade moderna perdeu os centros anteriores de autoridade e, portanto, os padrões de conduta exemplares ou rigidamente limitadores. Com a expansão ou da homogeneização, as sociedades modernas não tem mais uns poucos partidos políticos, nem padrões familiares, sindicatos, estruturas de gênero, estruturas corporativas coerentes e/ou dominantes. Em todos esses casos está em curso um processo de descentramento. A reconstrução das regras que governam os padrões estruturais habilita as pessoas a fazerem uso de seu “conhecimento” de maneira produtiva.
O conhecimento como um pacote de competências
Para se ter uma noção de como o conhecimento envolveu-se na desigualdade social é preciso mencionar as mudanças estruturais como pano de fundo. Também é importante levar em conta que o conhecimento gera vantagens e desvantagens sociais mais imediatas e diretas, na forma de poder e autoridade. Mesmo que seja visto como simples meio ou fundamento da desigualdade social na sociedade moderna, o conhecimento deve ser pelo menos conceituado como um instrumento “metanível”, capaz de afetar a aquisição, defesa e controle de meios mais tradicionais de estratificação. De um ponto de vista material o conhecimento deveria ser visto como um recurso que isola e protege os indivíduos e as famílias do impacto imediato dos caprichos do mercado e da coerção. Nas “sociedades do conhecimento”, a desigualdade torna-se um fenômeno social muito menos óbvio, concreto e visível do que na sociedade industrial e tendem a resultar em estruturas de desigualdade menos firmemente estabelecidas. Como recurso para gerar e manter padrões de desigualdade, o conhecimento é mais tolerante à ambigüidade.
A questão está em saber como essa concepção do conhecimento complementa ou se diferencia das perspectivas recentes sobre a desigualdade social.
As disputas classificatórias na sociedade contemporânea não consistem mais em uma competição por vantagens que giram em torno da renda. Novos tipos de conflitos estão surgindo, centrados em lutas por certificações, questão de gosto e superioridade ética.
Concentrar a análise no conhecimento trata-se, mais especificamente, de que modo o conhecimento funciona como recurso nas lutas por status ou predomínio em representações cognitivas em uma sociedade. Como um pacote amplo e heterogêneo de competências, o conhecimento tem efeitos específicos sobre o processo de formação da desigualdade, ao passo que os resultados continuam a envolver hierarquias distribuídas em dimensões tradicionais ou não tão tradicionais assim.
A desigualdade social torna-se, então, uma configuração heterogênea e depende do contexto. Dentre as diversas competências sociais existentes, destacam-se: a capacidade de tirar partido do discernimento (diz respeito à capacidade dos indivíduos de extrair vantagens comparativas, por exemplo, no campo dos tributos, investimentos, escolaridade, renda); a facilidade para organizar recursos de proteção (é uma questão de competência especializada, que habilita os atores a mobilizar o acesso a um diferencial para assegurar direitos em geral); a autoridade para falar; a capacidade de preparar-se para desafios (elemento crucial da estratificação baseada no conhecimento); a capacidade de evitação e exclusão (permitem distribuir de modo diferenciado certos risco da sociedade moderna). Ainda analisando esse último tópico o enorme crescimento da economia informal, pode ser tomado como uma das conseqüências da ascensão do conhecimento como princípio de estratificação.
Por fim é fácil concluir que a abrangência das competências sociais corresponde a recursos estratificados para ter controle sobre a própria vida, ou seja, são efeitos gerais do controle diferenciado de certas bases relevantes de conhecimento.
Conclusão
Ao propor que as sociedades contemporâneas avançadas estão se tornando cada vez mais “sociedades do conhecimento” evidenciou-se que tanto as explicações convencionais quanto as mais recentes, não captam apropriadamente as novas realidades sociais e econômicas. Os regimes de desigualdade são interpretados como inflexíveis e em grande parte unidimensionais, a estratificação é considerada abrupta e as conseqüências das desigualdades materiais são vistas como duradoura. Assim, o discurso sobre a desigualdade tende a lidar com a coerção, ou seja, com as restrições, a vulnerabilidade e a efetiva impotência dos indivíduos e grupos perante aos poderosos, sendo assim, conclui-se que as novas realidades exigem uma nova linguagem que deveria acentuar a ação, a maleabilidade.
A condição que possibilita obter bases de ação mais amplas e mais numerosas é o conhecimento, cujo impacto sobre as estruturas sociais de desigualdades acelera as oportunidades dos atores de reformular as construções sociais. Todavia, à medida que o conhecimento vai tomando lugar da propriedade e do trabalho como mecanismo constitutivo da desigualdade, a relação dos indivíduos e dos grupos com o conhecimento passa a ter uma importância fundamental para os padrões de desigualdade social nas sociedades contemporâneas.
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Procurador Federal com exercício na Procuradoria Regional da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Edilson Barbugiani. Desigualdade de classe à desigualdade de conhecimento e os direitos coletivos e individuais - uma visão filosófica, sociológico e jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41711/desigualdade-de-classe-a-desigualdade-de-conhecimento-e-os-direitos-coletivos-e-individuais-uma-visao-filosofica-sociologico-e-juridica. Acesso em: 22 nov 2024.
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